A sala de estar. Os móveis em madeira rústica, o chão de lajotas cor de terra, tudo muito simples e funcional. Por sobre a mesa de trabalho, além dos papéis e dos livros esparramados, um retrato, o homem com a mulher e um casal de adolescentes, seus filhos, tendo ao fundo a paisagem bucólica das montanhas. Ao longo das jornadas de trabalho solitário, o homem se volta constantemente para a bela imagem familiar, tomada em uma primavera ensolarada e feliz. A apreciação se dá nos momentos de intervalo da escritura de seu romance e assim faz até que, numa adorável manhã, a imagem está suprimida de um dos jovens. Curioso detalhe que não o atinge, como se a falta significativa não lhe dissesse respeito. Ele prossegue concentrado na elaboração do primeiro conflito narrativo, o filho decidido a retirar-se da fazenda para assumir sua independência. O romance se entranha em recortes conturbados, os dias se sucedendo através das amplas janelas, diante da mesa de trabalho. Passam-se os dias e se volta para a foto, que se restringe a um casal maduro, sorridente. Sua memória não distingue o evento original, a imagem de uma família feliz, inspiração do argumento original de seu romance. No romance, a filha se enamorou, mudou-se para um país distante, sobrando ao casal a vida pouco laboriosa às voltas com a enorme propriedade. E passam-se os meses, noutra sossegada manhã está debruçado em seu trabalho, a fadiga a açodar-lhe a noção da realidade, em um momento morto deita as vistas na foto e observa sua silhueta bem disposta, solitária, tendo ao fundo as imponentes montanhas.
Avança a passos largos, não há tempo a perder na conclusão da trama, o personagem que se lamuria pela morte da mulher, por viver solitário, doente, em meio a crises alucinatórias... Então, em uma quieta manhã de outono, em que as folhas desprendem-se dos galhos para aterrar mansas sobre a vegetação desgrenhada, a fotografia registra nada além das ondulações suaves do terreno, até as elevações mais escarpadas, uma reprodução da imagem tomada do ponto de vista da mesa de trabalho, sobre a qual repousa um exemplar de um romance editado, O Regresso.
Pelas janelas, lá ao longe, desvela-se um pequeno ponto que ganha os contornos de um jovem, vindo das montanhas. Ele detém o passo para acender seu cigarro, aconchega-se junto à sombra de uma paineira e seu olhar se volta para a casa, abandonada e convidativa.
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