16 setembro 2009

Sobre Sabra e Chatila

(...)
Uma voz possante grita-lhes, do lado de fora: “Rendam-se e estarão em segurança”. Moufid mal chega à porta, três soldados armados invadem a casa. Wafa, Djamila e Zeinab olham, imobilizadas. Intissar levanta-se e aconchega os meninos. Abou mostra desapontamento por não ver o pai. O que parece ser o comandante faz uma inspeção no cômodo, com as mãos nas costas, o passo marcado, sem pressa. Não se ouve mais qualquer ruído vindo das ruas. Ao contrário, distingue-se o som pesado da respiração angustiada... O comandante para ao lado do móvel onde está o rádio, que ainda toca os músicos do Nilo. Toma o rádio nas mãos

COMANDANTE
(mostrando o rádio) Do que se trata?

MOUFID
A música de Shamandi Tewfiq...

COMANDANTE
(caminhando até Moufid) E não me diga que vocês apreciam esse tipo de música?... (atira violentamente o rádio no chão) Ou será uma espécie de escuta clandestina?...

MOUFID
Temos o direito de...

O Comandante cala Moufid desferindo-lhe um tapa no rosto. Wafa dá um grito e tenta levantar-se, mas é contida por um soldado. Intissar e as meninas, Zeinab e Djamila, entremeiam choros e orações. As crianças correm para a mãe...

COMANDANTE
...errado! Começou errado, vovô. Vocês perderam os direitos desde ontem, não sabia disso? (vindo ao proscênio, como se falasse à platéia) Estamos prestes a completar o serviço em Beirute, viemos acertar as contas com... (apontando para Moufid) com gente como você! (deixa escapar um sorriso ensandecido) mas afinal, hoje estou me sentindo verdadeiramente bem, mais leve, diferente dos dias comuns de treinamentos... hoje estou agindo! Hoje sinto meu ser flutuar, o prazer fluir por intermédio das minhas mãos, meus mais profundos desejos ganham vida... não... esse ar que respiro não me basta, esta merda de casebre, uma dentre tantas ocupadas, coisas mundanas que nada querem dizer... mas a ação que empreendo ao fazê-los desaparecer... ah, a volúpia que me sufoca, a ansiedade que antecipa a doce emoção... é a isto que me refiro (gestos enérgicos no ar) a ação... estamos livres para agir, ah, para resolver essas pendências miseráveis... emoção e razão... meu espírito feliz regurgita, mas logo me detenho, sei que desempenho uma função vital, ah, ah... merdas (olhando detidamente para cada componente da família), merdas... esse palpitar, esse palpitar... benditos estes olhos que guiam meus atos, bendito este olfato que me distingue o salubre da imundície, bendito o bom Deus que ilumina meu caminho e me concebe a graça da vingança... falemos diretamente o que interessa: vingança! Vocês são os únicos culpados pelo castigo que agora lhes alcança... trombeteiem, pois, façam o que bem quiserem, esforcem-se para serem ouvidos, lamuriem-se pelas suas dores, chorem pela constatação da sua desgraça... não me interessa o que façam... Ah, esta noite me pertence, sorverei o cálice oferecido e me deleitarei de prazer... tenho pressa... ou não, é claro que não tenho pressa, a bem da verdade nada pode me impedir de completar o que tem de ser completado! Ah, Muster, traga-me o cálice... como eu poderia esquecer?... Um brinde, depois daremos uma salva de tiros ao Ocidente estúpido, que se esforça por interromper nossa ação... (pegando a garrafa que Muster lhe trouxe e dando diversas goladas); a esses Estados ultrapassados, especialistas em soluções... insuficientes, eh, eh... com suas lógicas podres... (mais outra golada) mas o que é que estou dizendo?!... desfrutemos as delícias desses momentos gloriosos... superestruturas, burocratas, políticos... (mais goles) que nós, os verdadeiros agentes da paz não sejamos perturbados... (já meio grogue) que resolvamos assim, com uma dedicação especial as nossas diferenças milenares... ei, não me olhem assim, não fui eu quem começou com essa história, eh, eh... não vou carregar nenhum remorso, esqueçam... posso oferecer razões geográficas para vocês, seus indesejáveis... ocuparam por muito tempo o nosso lugar... (uma rápida olhada para trás) Ah, quanta satisfação! (esvaziando a garrafa e atirando-a contra uma parede) já não sou mais dono dos meus atos... (olhando para as mulheres) bem, sim, agora tenho pressa... ao trabalho... (para Moufid) vamos lá, procurarei ser bonzinho... onde estão os outros?...

MOUFID
Não há ninguém além de nossa família...

COMANDANTE
Terroristas, velho, quero todos os terroristas...

MOUFID
Nossos combatentes já partiram, você sabe do acordo...

COMANDANTE
(irado, outro tapa em Moufid)... não quero saber de acordos... estou aqui para limpar a latrina... (detendo-se, exausto) não quero perder mais tempo com vocês... (para os soldados) revistem a casa. (para Moufid) Pegamos Abdul Youssef saindo daqui... (caminhando até Djamila) estava inquieto, meio apressado, não acha?...

INTISSAR
(assustada) Não, chega... por Allah, que mal fizemos a vocês?...

MOUFID
Calma, Intissar. (para o comandante) Nada sabemos de Abdul Youssef ou de quem quer que seja...

COMANDANTE
(dando uma gargalhada de galhofa, enquanto prossegue se insinuando para Djamila, que se defende como pode) Oh, comovente... Abdul Youssef, terrorista exemplar, profundo conhecedor da resistência em Beirute Ocidental... querido entre seu povo, morador de... como se chama este acampamento de merda, Ernest?...

ERNEST
Sabra, meu comandante...

COMANDANTE
... pois é, Sabra... (cuspindo no chão) e você me diz que não o conhece?... (arrebentando a alça do vestido de Djamila) fale a verdade, velho bastardo.

MOUFID
(desafiador) Não estamos em Sabra... Aqui em Chatila somos apenas velhos, mulheres e crianças, e a não ser que vocês queiram nos levar, peço que se retirem da nossa casa.

(...)

(extraído da peça 'A última noite de Sabra e Chatila')

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