02 setembro 2009

Ignomínia




Mais uma vez o histórico Cala a boca e fique quietinho!

Desta vez, o bairro de Heliópolis e seus sofridos moradores surgem como vilões. Uma jovem de 17 anos foi assassinada por policiais da guarda civil. Não foi em razão de tiroteio, o que não amenizaria a gravidade do problema. A jovem estava no lugar errado, na hora errada; a polícia perseguia um bando, e atirava. Errou o bando, acertou a jovem, mãe de uma garotinha de um ano, que só terá consciência de sua perda daqui a alguns anos.

As comunidades carentes carregam o inconveniente de aparecem no oligopólio midiático quando o fato é brutal, eivado de morte e sangue na sarjeta, sob o olhar assustado dos moradores. Tem de ter esse componente de drama, misturado com passividade. e a morte de uma jovem de 17 anos não seria um destaque suficientemente brutal. Diferente, por exemplo, de um crime ocorrido nos bairros chiques, no Morumbi ou nos Jardins. Aí a cobertura jornalística do oligopólio midiático acompanha o brado de justiça e os pedidos de justiça já, e os desdobramentos em passeatas, com o clamor de redução da maioridade, se o crime tiver como autor um menor abandonado.

Foi assim no episódio do bar Bodega, há alguns anos, quando Adriana foi assassinada e três jovens pobres foram acusados do crime. Mais tarde, depois de reações ensandecidas de nossa burguesia, com direito à formação do movimento Reage São Paulo e passeatas e campanhas midiáticas contra a violência urbana, comprovou-se a inocência dos suspeitos. Na parte final da sentença proferida pelo juiz José Ernesto de Mattos Lourenço, destacava-se: "(...) São Paulo Reage diante da morte de filhos ilustres, mas não se emociona diante da morte dos filhos dos desprovidos de capacidade econômica, que não podem freqüentar casas noturnas de Moema, mas freqüentam os bares dos bairros distantes. A conclusão é dolorosa: matar filho de rico em bairro de classe média alta ou abastada dá notícia, repercute, revolta a sociedade, que reage. O mesmo fato, quando atinge o marginalizado da economia, não desperta nenhuma reação”.

De volta ao assassinato da jovem do bairro de Heliópolis: ele foi o estopim para uma manifestação irada de moradores do bairro, cansados da falta de segurança, da falta de respeito. Sem apoio nem a condolência de nenhuma espécie, as pessoas saíram às ruas frustradas por mais uma injustiça. Quiseram cobrar. E a mensagem midiática foi clara: não pode! Para o oligopólio midiático, para esse jornalismo movido à espetacularidade, pobre tem de sofrer sem direito a manifestar sua indignidade, cala a boca e fique quietinho!, tal como ouvi certa vez, na rua Estados Unidos, nos Jardins.

Em uma bela noite após o trabalho, eu saí de uma lanchonete a dirigir-me ao ponto de ônibus, na rua Augusta. Caminhavam tranquilamente ao meu lado três trabalhadores negros, final de expediente, sacola de marmita na mão, conversa animada e tal. Eis que de repente e não mais que de repente, do nada, surge uma viatura policial, para no meio da rua e dois policiais saltam com arma em punho, empurrando os pobres homens para o muro. Pobres homens que, diga-se, também não têm o direito de se assustar, mas que são regularmente cobrados por assustarem. Pois bem, um deles quis reagir e o policial foi logo dizendo, Cala a boca e fique quietinho! Ele e os demais ficaram, sendo vítimas de uma acintosa revista. Fui poupado por ser branco? Depois da revista, resolveram os policiais darem no pé, deixando aos trabalhadores negros o amargo sabor de mais uma humilhação.

Esse também não seria considerado um fato brutal, não ganharia as manchetes, não passaria de um fato corriqueiro, sem graça, por não conter cenas de emoção e dramaticidade suficientes. Mas no bairro de Heliópolis elas ocorreram, e a impulsiva reação dos moradores foi tachada de vandalismo. É a definição emanada do conforto da redação, tão injusta quanto preconceituosa: protesto de morador de comunidade pobre vira ação de vandalismo! E sofra, e tome batida da polícia, e carregue a pecha de elemento suspeito, e continue mofando horas dentro da condução pública, e sobreviva com um salário pífio, e seja condenado ao faustão e ao gugu nas tardes de domingo, e morra com um tiro equivocado. Morador de comunidade pobre não tem direito a voz, nem a cidadania. E cala a boca e fique quietinho!


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