11 setembro 2009

Chile

O ataque ao Palácio de La Moneda, 11.09.1973


A essa altura, há trinta e seis anos, um facínora implantava a ditadura mais perversa do Chile, após o suicídio do presidente eleito, Salvador Allende. Creio ser oportuno reproduzir abaixo uma experiência que tive, ao viajar para Viña del Mar, com um militar golpista de terceiro escalão, que me realçou o caráter abjeto desse episódio, de brutal ruptura constitucional no país.

O texto foi originalmente publicado em meu antigo blog, Caminhos da Liberdade, em 2006, e contou com três comentários de duas pessoas, uma delas chilena. Pela força e delicadeza dos argumentos, tomo a liberdade de incluí-los ao final da narrativa.

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No final dos anos oitenta, realizei uma viagem por terra, de Buenos Aires até Santiago do Chile, e depois de dois ou três dias caminhando pela bela capital chilena, decidi ir até Viña del Mar. Foi um viagem vespertina, no meio da semana. No ônibus, poucos passageiros, a maioria concentrada em sua parte dianteira. Escolhi a primeira poltrona, pois gostaria de realizar o percurso atento à paisagem, desvelando-a pelos amplos vidros dianteiros. 

Seria um cúmplice silencioso do motorista, caso não se acomodasse ao meu lado um senhor, na altura dos cinquenta anos, e que à primeira oportunidade, passou a falar sobre a história chilena. Eu mais ouvia do que falava, permitindo-o embrenhar-se pelos detalhes de acontecimentos por mim desconhecidos. Falou sobre a colonização estrangeira, sobre o processo de desenvolvimento do país no século vinte, até tocar no tema delicado para mim, a política contemporânea, culminando com um desejo, "Há que se erguer uma estátua até o céu para Pinochet".

Poderia ouvir qualquer coisa, menos um comentário como aquele! Olhei para a figura, imaginei que tivesse sido um subalterno qualquer do exército ou da marinha na época do golpe, indaguei-lhe o que sabia sobre o dia da derrubada de Allende. "Uns dias antes nos reunimos em Valparaíso e concluímos que a coisa não estava boa", disse isso com um gesto de mão e uma expressão facial como a denotar a fedentina do momento. Meu comportamento paciente resistiu até aquele momento, então passei a inquiri-lo diretamente acerca do governo pinochetista. 

O velho encarou de bom grado e fomos, durante cerca de uma hora, o centro tempestuoso das atenções naquele ônibus. "Em meu país tomamos o governo Pinochet como uma ditadura cruel", argui, sem alterar o tom de voz, olhando para a frente. O homem estrebuchou na poltrona, senti os passageiros vizinhos agitarem-se, como que preocupados com o que ouviam. "Está mal informado, señor...", "... Não, não creio que eu e o mundo estejamos mal informados!", e assim prosseguiu o duelo. "Há uma conta de milhares de desaparecidos...", ao que me retrucou, "Mentira!", de modo peremptório, como um desesperado ultimato para que me calasse.

Para encurtar a história, o canalha desceu ao avistarmos Viña do alto. Nas escadas do veículo, disse-me que eu "precisava me informar sobre as coisas". Senti pela primeira vez um clima de alívio envolver os passageiros, talvez porque pensassem que teriam de agir, intervindo contra um militar chileno (é preciso lembrar que vivíamos ainda os tempos Pinochet). O importante a dizer aqui é que não desejava ter chegado àquela situação embaraçosa, mas a arrogância me provocou, atingindo-me no âmago de minha dignidade como cidadão e compreendi que não poderia ficar quieto, ao lado de um canalha. Só não mandei o pulha à merda porque ele desceu antes da chegada ao terminal. 

Fiz o que estava ao meu alcance, não recusar o embate ideológico, mesmo em condições adversas. Não poderia fugir aos meus princípios nem ao debate do processo histórico, que condenavam a postura moral de meu interlocutor.

3 Comments:

At Quarta-feira, 08 Novembro, 2006, Sandra said...

Procurando informações na internet para realizar um sonho, o de fazer uma viagem a pé do Brasil até o Chile , encontrei seu texto "A elite vai ao desespero", que me fez reviver emoções fortes. Passei por algo parecido, sem ter a sua coragem e presença de espírito. Viajando em Portugal, um senhor de seus 50 anos sentou-se ao meu lado e começou a fazer um histórico de Portugal, ao qual ouvia atentamente, porém não tardou para que ele iniciasse uma glorificação a Salazar... Seus propósitos eram revoltantes, mas a única coisa que fiz foi controlar a minha raiva e vontade de lhe estrangular. Por isso gostaria de lhe parabenizar pela sua frieza e objetividade, que certamente foram cruciais para poder agir da maneira mais correta. E quanto ao real objetivo do texto, fico feliz em ver escrito de maneira tão brilhante opiniões que compartilho.

At Domingo, 12 Novembro, 2006, PorSiempreAmapola said...

...esta es nuestra tierra nuestra américa, mestizoamérica ungida con tantas sangres. Y en medio de tanta esquizofrenia colectiva, nosotros que nos empeñamos, nosotros que nos olvidamos e insistimos -pobres ciegos y porfiados- en la demencia suprema, en despojar al hombre de lo que es del hombre.

At Domingo, 12 Novembro, 2006, PorSiempreAmapola said...

(no sé por qué después de este texto suyo me dan ganas de darle tantas gracias. Como una mano que recoge un espejo partido en pedacitos)



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