19 março 2009

Futebol em tempos de ditadura

Eliminatórias da Copa do México, 1969

Eu era moleque e gostava de futebol. Meu pai gostava de nos abastecer de jornais e revistas, de onde eu me alimentava das imagens durante horas, mesmo dias. Não tínhamos a eficiência pós-moderna da televisão de hoje, da abundância de lances, por três, quatro ângulos diferentes, das narrações alienantes (mas isso é tema para outro post) e das reportagens sem imaginação... Bem, tínhamos imagens, e boas imagens. Falo hoje de uma que exerceu tamanha influência em mim, que quando jogava bola com os amiguinhos, procurava reproduzir o movimento do Tostão, aquele maravilhoso centroavante que tivemos no final dos anos 1960 e da Copa do México (a essa altura já não tão magnífico). É uma foto que completa quarenta anos e que a reproduzo de memória.

Como reproduzi-la com palavras? Primeiro, que o fotógrafo estava no lugar certo e fez o clic no tempo exato, mereceu ter sua obra estampada em página dupla da Fatos & Fotos. Estava posicionado bem atrás do gol colombiano, defendido pelo goleiro Largacha. Tomo seu ponto de vista: em primeiro plano, as redes do estádio El Campim e a bola com gomos pretos e brancos congelada a meia altura, a caminho delas. Mais adiante, na entrada da pequena área, o goleiro Largacha estendido ao solo, vencido, olhando desesperado para trás, para a bola que entra. Sobre ele, em um salto acrobático para evitar o choque, aí o punctum da imagem, um Tostão satisfeito, que acaba de tocar a bola para as redes. 


Ao seu lado, direito, esquerdo, não me recordo, um Jairzinho em movimento, olhando igualmente feliz para a bola que entra. Um pouco mais adiante, já na entrada da grande área, pelo lado direito, uma barreira de jogadores colombianos que se desfaz após a bola ter passado por eles e se chocado no peitoril de Largacha, que não pode encaixá-la, permitindo o toque final de Tostão, que já está em pleno voo. Os jogadores colombianos, com suas camisas e meias escuras (quais seriam as cores?), olham entre expectantes e desconsolados, contrastando com os jogadores brasileiros. Mais adiante, quase que encoberto pela barreira que se desfaz, onze jardas para ser mais preciso, um Edu esfuziante inclina a cabeça a tempo de ver o desfecho de seu chute portentoso, defendido parcialmente por Largacha e que redunda no desvio apurado de Tostão, que salta. Edu sorri, como seus companheiros, seus dentes brancos em belo contraste com a tez negra. Pelé, curiosamente, não aparece.

Edu é o último a se distinguir na foto. Para além, temos o negrume não só da noite, mas principalmente ocasionado pelas condições técnicas da época. As imagens estáticas dos jogos noturnos tinham um alcance limitado, de modo a acrescentar mais dramaticidade a uma boa foto. Esta, além de esteticamente bela, correu o mundo pela sua importância: foi o primeiro gol da seleção brasileira, que terminaria invicta as eliminatórias e a Copa do México, doze jogos, doze vitórias! Daí em diante, muita coisa aconteceria. 

Costa e Silva, o ditador de plantão, morreria poucas semanas depois; um algoz da mesma estirpe, Médici, assumiria para dar continuidade ao que um jornal paulista denominou recentemente de ditabranda; Ditão, zagueiro corintiano, acertaria uma bolada no olho de Tostão, deslocando sua retina e quase tirando-o da Copa; o AI-5 e as torturas prosseguiriam; o mestre João Saldanha seria demitido do comando técnico pouco antes da Copa, tornando-se o grande comentarista de nossa época; mais mortes aconteceriam nos porões do regime nefasto e eu, bem, moleque, tentando repetir o pulo acrobático de Tostão a cada gol marcado.


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