(...) os primeiros clarões do dia, como aprendi a gostar desse momento! O silêncio absoluto, quebrado pelo canto de um pássaro camarada que não nos esquece. Seu gorjeio começa tímido, ganhando em intensidade, contagiando os ouvidos atentos e trazendo mais lembranças tenras, suavizando o desalento que me domina. Lamento não ver os primeiros raios do sol já que minha janela está voltada para o oeste e mesmo que ele despontasse por esse lado, haveria a barreira insuperável da muralha prisional...
Redijo essas últimas anotações sem saber exatamente o que dizer, desconcentrado, na verdade fingindo emoções, travestidas de testamento. Sinto-me impotente por lançar-me a qualquer... maquinação que seja, inesgotável, que consiga refletir minha solidão e meu drama, nesses poucos minutos, tenho esse tempo para escrever um pouco, para deixar um... umas impressões, sei lá, desta cela, do que está nela, do que a cerca... não sei se é bem isso, tenho receio que pela urgência este registro não represente exatamente o que sinto, ou pareça artificial... As folhas brancas que disponho à frente prosseguirão incólumes,
(...)
uma interrupção para o café da manhã, bastante especial desta vez. Os companheiros rosnam, um ou outro estica os olhos, não se deram conta do que está acontecendo, preguiçosos. Uns miseráveis! Talvez representem o sono que os poupem de umas palavras finais, vazias... Lerão depois estas linhas e sentirão um frio subir a espinha, um tremor nas entranhas e demorarão a ter belos sonhos, se é que sonham esses... Pois saibam, são uns desprezíveis! Ovos mexidos, chocolate, um bule de café, pão italiano, manteiga, geleia de damasco, (...) estou em bom estado, têm me tratado bem, sobretudo nestes últimos dias, não posso reclamar. Desta vez capricharam, até o aroma (...)
Redijo essas últimas anotações sem saber exatamente o que dizer, desconcentrado, na verdade fingindo emoções, travestidas de testamento. Sinto-me impotente por lançar-me a qualquer... maquinação que seja, inesgotável, que consiga refletir minha solidão e meu drama, nesses poucos minutos, tenho esse tempo para escrever um pouco, para deixar um... umas impressões, sei lá, desta cela, do que está nela, do que a cerca... não sei se é bem isso, tenho receio que pela urgência este registro não represente exatamente o que sinto, ou pareça artificial... As folhas brancas que disponho à frente prosseguirão incólumes,
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uma interrupção para o café da manhã, bastante especial desta vez. Os companheiros rosnam, um ou outro estica os olhos, não se deram conta do que está acontecendo, preguiçosos. Uns miseráveis! Talvez representem o sono que os poupem de umas palavras finais, vazias... Lerão depois estas linhas e sentirão um frio subir a espinha, um tremor nas entranhas e demorarão a ter belos sonhos, se é que sonham esses... Pois saibam, são uns desprezíveis! Ovos mexidos, chocolate, um bule de café, pão italiano, manteiga, geleia de damasco, (...) estou em bom estado, têm me tratado bem, sobretudo nestes últimos dias, não posso reclamar. Desta vez capricharam, até o aroma (...)
Ontem, a conversa com o padre redundou em nada, coisa que já esperava. O Mariano insistiu comigo, dizendo que me faria bem... pra mim, nada mudou. Era um padre estranho, não sabia o que falar, estava mais nervoso do que eu, procurei acalmá-lo comentando sobre generalidades, coisas sobre minha família, sobre minha descrença na política, nada de especial. Falei-lhe de minha irmã, a pessoa que mais me ajudou durante esses momentos difíceis e comecei a me encher quando ele começou com esse papo de ter esperança. Tentou encaminhar a conversa para o lado da salvação, cortei dizendo que minha razão não alcançava sua fé e nos despedíssemos.
Ele me olhou penalizado e lhe pedi para não agir assim comigo. Nunca tiveram pena de mim e não será nesta maldita hora que alguém terá! Disse-me que o senhor poderia me perdoar se me confessasse. Nada de confissões ou segredos, não tenho arrependimentos, olhei para sua face, encarava-me sem saber o que dizer. Pedi que fosse embora, ele saiu desacorçoado por não cumprir com sua obrigação, que satisfação daria ao seu deus?... Não quis pensar nisso, nem em mais nada. Tive tempo de dizer-lhe que não havia o que lamentar, já que eu sempre fora na vida uma ovelha sórdida e desgarrada...
O tempo passa. O Mariano me disse que serão cinco carrascos, quatro com suas espingardas carregadas... Nada acontece e ao mesmo tempo tudo se encaminha para o desfecho, idéias, sonhos, imagens, desejos (...) Não dou conta de mais nada, como se fazer parte ou não deste mundo significasse a mesma coisa... por isso nada mais deve acontecer até o momento final. Avisam para me preparar, acho que em breve me levarão. Mais dois minutos, tempo para tentar concluir as idéias... Hum... Não quero falar sobre culpas, ou sobre falhas, não mais. Poderia falar sobre a imagem mental que tenho daquele descampado, quando atravessava com meus primos, de mãos dadas, cantando (...) o cheiro da casa da minha avó, a cama de molas que ela reservava para mim... A cidade desperta, ouço seu rugido ao longe, superando o canto desse pássaro que não deixa de anunciar o alvorecer de cada dia, todos os dias... Se existe algo a lamentar, é a perda definitiva desse momento íntimo...
... acabou, o Mariano pede para me apressar... Meu último olhar, meus últimos registros, sem que isso possa fazer alguma diferença...
Ele me olhou penalizado e lhe pedi para não agir assim comigo. Nunca tiveram pena de mim e não será nesta maldita hora que alguém terá! Disse-me que o senhor poderia me perdoar se me confessasse. Nada de confissões ou segredos, não tenho arrependimentos, olhei para sua face, encarava-me sem saber o que dizer. Pedi que fosse embora, ele saiu desacorçoado por não cumprir com sua obrigação, que satisfação daria ao seu deus?... Não quis pensar nisso, nem em mais nada. Tive tempo de dizer-lhe que não havia o que lamentar, já que eu sempre fora na vida uma ovelha sórdida e desgarrada...
O tempo passa. O Mariano me disse que serão cinco carrascos, quatro com suas espingardas carregadas... Nada acontece e ao mesmo tempo tudo se encaminha para o desfecho, idéias, sonhos, imagens, desejos (...) Não dou conta de mais nada, como se fazer parte ou não deste mundo significasse a mesma coisa... por isso nada mais deve acontecer até o momento final. Avisam para me preparar, acho que em breve me levarão. Mais dois minutos, tempo para tentar concluir as idéias... Hum... Não quero falar sobre culpas, ou sobre falhas, não mais. Poderia falar sobre a imagem mental que tenho daquele descampado, quando atravessava com meus primos, de mãos dadas, cantando (...) o cheiro da casa da minha avó, a cama de molas que ela reservava para mim... A cidade desperta, ouço seu rugido ao longe, superando o canto desse pássaro que não deixa de anunciar o alvorecer de cada dia, todos os dias... Se existe algo a lamentar, é a perda definitiva desse momento íntimo...
... acabou, o Mariano pede para me apressar... Meu último olhar, meus últimos registros, sem que isso possa fazer alguma diferença...
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