Tuttlingen, 1989 |
Voltando a
ser o que nunca deixou de ser
No fim
sobra
a boa senhora
onde
num relance ínfimo
estéril
depara
que está só
numa
bela cozinha.
(abr/83)
O desenvolvimento urbano das cidades chinesas |
Há poucos dias fui consultado por um aluno de jornalismo sobre a possibilidade de uma entrevista a respeito da China, as disputas geopolíticas com os EUA, as relações com o Brasil. Embora não seja um profundo conhecedor do tema, aceitei o desafio, pela chance de estudar um pouco mais e debater principalmente sobre o tema da geopolítica. Utilizei algumas referências que possuo de leituras políticas em sites como Outras Palavras, e de autores pesquisadores que integram o Núcleo de Estudos Brasil-China, da FGV do Rio, que têm produzido um ótimo trabalho sobre o tema.
O resultado me pareceu satisfatório como um exercício para se entender um pouco mais sobre o gigante industrial, maior potência asiática e maior parceiro econômico da América Latina. Por não ser
muito extensa, tomo a liberdade de reproduzi-la abaixo, sem editar, já que será parcialmente divulgada em uma revista acadêmica de pequena circulação.
Entrevista
Como o conflito geopolítico entre China e EUA influenciam na economia e na política brasileira?
Essa tensão de algum modo cria instabilidade não só
ao Brasil como para o mundo. Trata-se de uma disputa geopolítica que deverá se
estender por muitos anos, e que não deverá se resolver de modo fácil. De nossa
parte, convém buscar um distanciamento estratégico, retomando uma política
externa que contemple: a) retomar e avançar nas relações com os países da
região, expandindo a união aduaneira, os acordos econômicos, de defesa, de
saúde, os intercâmbios acadêmicos, a partir da consolidação de organizações
intergovernamentais regionais já existentes (como por exemplo, a Celac, a Unasul),
e b) intensificar as relações multilaterais com os mercados de outros blocos
econômicos, aprofundando de maneira especial nosso papel nos BRICs. Seria a
perspectiva mais promissora de realçar nossa condição de nação soberana, que tradicionalmente
busca seu desenvolvimento sem um alinhamento automático ou dependente a
qualquer das potências.
Como o governo brasileiro deve se portar, se de fato ocorrer uma guerra entre as duas potências?
O que podemos esperar não se contém ao termo “nova guerra-fria”,
porque hoje, ao contrário da guerra-fria dos anos 1950 e 1960, a China não é um
inimigo ideológico, mas uma nação que procura a interdependência econômica e um
intercâmbio de ideias com os EUA e as economias ocidentais, ainda que persista
o discurso retórico, onde as narrativas se entrechocam. Nesse ambiente, será
interessante aguardar o que virá nesse novo horizonte diplomático pós-Trump, e o
Brasil terá sem dúvida melhores chances de preservar seu tradicional status de
nação neutra, mantendo com soberania as relações amistosas e de interesses de
reciprocidade com ambos os países.
Por que o investimento na tecnologia 5G é importante para o Brasil e como devemos nos posicionar em relação à Huawei?
A rede 5G significa um avanço indispensável para as
redes digitais, mais velocidade, maior armazenamento, maior alcance, mais
estabilidade nas conexões. Significa assim mais qualidade no acesso e
compartilhamento de informações. Nesse sentido, não há razão para que, por uma
decisão pautada em duvidosos alinhamentos diplomáticos, o Brasil não possa
abrir seu mercado para a tecnologia da Huawei e utilizar seus serviços de alta
qualidade tecnológica.
O quanto a tensão política e econômica entre esses países irá impactar na nossa forma de pensar a indústria?
Isso depende muito do projeto de desenvolvimento do
governo brasileiro, que até aqui se mostra indefinido, onde as decisões
políticas são tomadas ao sabor dos interesses corporativos. Sem uma perspectiva
definida para os nossos desígnios, os problemas do tabuleiro de disputas
políticas e econômicas entre China e EUA surgem como uma dificuldade a mais
para a retomada do crescimento industrial e do bem-estar social.
Por que existe um preconceito sociocultural com produtos chineses, sendo que grande parte das nossas infraestruturas e produtos são chineses?
O preconceito em grande medida surge em função do
alinhamento ideológico entre o governo Bolsonaro e seu homólogo estadunidense
Donald Trump. Como se não bastasse o natural distanciamento diplomático com o
governo chinês, com o risco de ameaçar futuros investimentos daquele que é
nosso principal parceiro econômico, a agenda política de Bolsonaro, definida ainda
em campanha, promove uma aproximação incondicional com o mercado estadunidense
que nem sempre traz benefícios ao Brasil, mas ao contrário, compromete as
relações de reciprocidade nas relações bilaterais, como foi o caso recente da
importação de 187 milhões de litros de etanol dos EUA isenta de impostos, ou a
restrição da entrada de brasileiros no país que nos foi imposta.
O regime chinês pode ser entendido como um regime economicamente imbatível?
O crescimento da economia chinesa se observa de maneira contínua e programada há mais de trinta anos, com índices anuais que, antes da pandemia, giravam em torno dos 10% ao ano. O desenvolvimento da economia não ocorreu ao acaso, mas a partir de uma orientação estratégica do governo centralizado, com uma planificação de investimento em áreas estratégicas, e assim consolidando uma infraestrutura industrial que, juntamente com os investimentos na educação e com os avanços tecnológicos, passou a ganhar novos mercados e a realizar novas parcerias comerciais.
Existe alguma mudança no paradigma comercial pensando no investimento em tecnologia no Brasil? Por que a China investe mais em tecnologia no Brasil que os EUA?
Os chineses não investem apenas no Brasil, mas em
outras partes do mundo onde as oportunidades se oferecem. Por exemplo, eles
investem fortemente no setor elétrico brasileiro, que não desperta grande
interesse das empresas estadunidenses. De um modo geral, os chineses expandem
seus investimentos em infraestrutura, no Brasil, em países da América do Sul e
da África, financiando a construção de estradas, ferrovias, portos, hidrelétricas.
Também investem em produtos naturais, gás, petróleo, soja, milho. Constroem o
novo caminho da seda, que atravessa a Ásia Central até a Europa, abrindo novos
mercados e realizando novos diálogos diplomáticos.
Qual o cenário hoje de tensão entre os dois países?
A tensão se limita, como dito anteriormente, a uma
disputa de narrativas que ultrapassa a mera identificação com o termo “nova
guerra fria”. O discurso ocidental de isolamento da China não parece salutar,
nem algo próximo da realidade. A China não é um país com pretensões
imperialistas, seu modelo de governança tem origens históricas mais antigas que
o comunismo. Seu modelo de expansão econômica é premido pelas necessidades de
energia e matérias-primas, e não pela necessidade de impor um modelo
capitalista de dominação. Para o chinês, as sanções e bloqueios econômicos
funcionam não como um enfrentamento ideológico, mas como pretexto puro e
simples de vedar o direito de existir da China. Assim, é indispensável
compreender a China como um poderoso ator, que ocupa de modo protagonista seu
lugar na economia de mercado.
O Brasil precisará fazer uma escolha ou posicionar-se?
Como foi dito, será muito importante ao Brasil não
fechar as portas para a China ao optar por uma aliança hemisférica com os EUA.
Seria de grande relevância para nosso protagonismo como nação ampliar os laços
com os BRICs, lembrando que só neste ano (até outubro) com todos os “ruídos”
diplomáticos produzidos pelo governo Bolsonaro, o Brasil exportou só para a
China US$ 51,5 bilhões em commodities primárias (produtos agrícolas, minerais,
combustíveis), com um saldo comercial de mais de US$ 21 bilhões. Já não se trata mais
de fazer uma escolha, mas de nossa política externa atuar de maneira pragmática
e decidida enquanto nação soberana, buscando os melhores caminhos para o
desenvolvimento econômico e social.
Qual o contexto internacional deste conflito? E por que a China cresce mais que os EUA?
Nunca será demais eliminar a imagem uma nação tecnologicamente rudimentar ou defasada em relação aos EUA. É fundamental termos em conta o tamanho e o dinamismo do mercado chinês, a escala de sua produção, e em função disso, os estímulos do governo para a formação de grandes grupos estatais e privados, com aumento veloz de escala e competitividade. Talvez um ponto que mereça uma reflexão seja, para além desse conflito imaginado, como se dá a participação dos trabalhadores. O premiado documentário Indústria Americana, nos dá uma mostra sobre o falso dilema que emerge desse conflito entre as duas maiores economias do mundo, ao expor o mesmo problema estrutural do capitalismo moderno, o processo de precarização e exploração trabalhistas, que atinge de modo agressivo os trabalhadores de ambas economias.
Sabendo que é natural a perda de empregos para as máquinas, como podemos classificar esse cenário para os próximos anos? E por que a China é protagonista neste campo?
A China segue os protocolos de uma economia de mercado,
ainda que se defina como um estado comunista. Dessa maneira, assim como as
economias industriais mais avançadas, buscará a automatização crescente na
produção, sem deixar de lado os cuidados com a farta mão-de-obra que dispõe.
Parece-nos um caso em que a centralização das decisões estratégicas dos rumos
da economia seja bem-sucedida, com sinais de que os chineses experimentam alguma
melhoria nas condições de vida.
Quais ações o governo federal pode tomar para tentar democraticamente manter boas relações com essas potências mundiais caso não tome partido?
Como já arguido, o governo brasileiro precisa ter
clareza em suas decisões enquanto nação soberana, ou seja, não escolher um lado
do ponto de vista ideológico, mas com uma política externa capaz de atuar de
maneira pragmática e decidida, buscando os melhores caminhos para o
desenvolvimento econômico e social.
Como o governo Bolsonaro é visto no exterior?
O governo Bolsonaro tornou-se um pária internacional, pelas suas atitudes marcadas pela intolerância política e racial, pelo seu negacionismo científico, pela virulência de suas decisões diplomáticas. Com o fim do governo Trump, perderá o aliado potencialmente mais representativo e por seu caráter intransigente, terá dificuldades em compor alianças. Seja no cenário internacional, alimentando uma imagem em tons fascistas, seja no âmbito nacional, incapaz de planificar um projeto de desenvolvimento econômico e social, a tendência é que termine seus dias de poder em completo isolamento político.
Plaza de Armas, Santiago, 2008 |
Altazor
(Canto II, trecho)
Minha alegria é
ouvir o ruído do vento em teus cabelos
(Reconheço esse
ruído ao longe)
Quando as barcas
soçobram e o rio arrasta troncos de árvore
És uma luminária de
carne na tormenta
Com os cabelos a
todo vento
Teus cabelos donde
o sol busca seus melhores sonhos
Minha alegria é te
mirar solitária no divã do mundo
Como a mão de uma
princesa sonolenta
Com teus olhos que
evocam um piano de olores
Uma bebida de
paroxismos
Uma flor que está
deixando de perfumar
Teus olhos
hipnotizam a solidão
Como a roda que
segue girando depois da catástrofe
A alegria de te
mirar quando escutas
Esse raio de luz
que caminha até o fundo d'água
E te mantém
suspensa longo tempo
Tantas estrelas
passadas pela tela do mar
Nada possui então
semelhante emoção
Nem um mastro pedindo vento
Nem um aeroplano
cego apalpando o infinito
Nem a pomba decaída dormida sobre um lamento
Nem o arco-íris com as asas seladas
Mais belo que a parábola de um verso
A parábola estendida na ponte noturna de alma a alma
Nascida em todos os lugares onde ponho os olhos
Com a cabeça levantada
E todo o cabelo ao vento
És mais formosa que o relincho de um potro na montanha
Que a sirena de um barco que deixa escapar toda sua alma
Que um farol na neblina buscando a quem salvar
És mais formosa que a andorinha atravessada pelo vento
És o ruído do mar no verão
És o ruído de uma rua populosa cheia de admiração
(...)
(Tradução realizada a partir do original em espanhol Altazor, de Vicente Huidobro, Madrid: Mestas Ediciones, 2002).
Londres, 1989 |
Para Marx, a linha de produção tem a função precípua de alienar o trabalhador em relação ao produto final do seu trabalho e, consequentemente, do valor agregado como resultado de seu esforço. Em outras palavras, torna-se dono apenas de sua força de trabalho, gerando a plus valia ao patrão ou dono dos meios de produção. Contrapõe, então, que o objetivo deve ser exatamente o oposto, o trabalho como um processo de humanização do trabalhador, na medida em que se conscientiza do seu valor. A consciência política o difere da materialidade produtiva da máquina, e sua organização social consolida o processo histórico que culmina na luta de classes. Conforme descrito no final do Manifesto, torna-se indispensável (nos operários) "uma consciência nítida do antagonismo hostil entre a burguesia e o proletariado". Não há como negar esse precipício de diferenças, não há como fugir do embate que se coloca.
O problema está exatamente aí. Em nossos dias, acompanhamos o aprofundamento do disparate entre ricos e pobres, da absoluta insensibilidade política dos governos fundados no neoliberalismo em aprofundar as diferenças, ao eliminar os chamados custos de produção, incluindo os benefícios trabalhistas e previdenciários, conquistados após décadas de lutas renhidas contra o capital. No Brasil, uma parcela substanciosa da população desinformada - e alienada, na descrita por Marx - entrega-se ao jogo perverso das classes dominantes, submetendo-se aos discursos discriminatórios contra o bem-estar social, contra a humanização das relações de trabalho.
Em outras palavras, essa parcela entrega-se aos pretensos privilégios da individualidade, que são disseminados por esse discurso e aprofunda a competição desenfreada, eliminando (e não mais considerando) os direitos do outro. A violência discursiva é institucional, patrocinada por esse desgoverno, que assume o papel da bucha de canhão dos interesses corporativos e difunde a intolerância, o desprezo - e numa palavra mais direta, a ignorância generalizada. O conhecimento científico, como valor indispensável ao desenvolvimento de uma sociedade, é humilhado e ofendido por um punhado de imbecis que ilustram a futilidade, que sabem exatamente o que desejam e onde pretendem chegar.
A fragmentação em que estamos aponta para dificuldades adicionais em um futuro processo de retomada do senso crítico e de humanidade. O trabalho manipulador de um Steve Bannon rendeu um profundo enraizamento da tolice coletiva, que passa a descrer em valores e conquistas já consolidados, desde os mais subjetivos como a prática da política, aos mais alarmantes, como o direito à vacinação contra epidemias. A sapiência com feições de UFC fomentada por gente pretenciosa como Olavo de Carvalho, Bernardo Küster, Nando Moura, Arthur do Val, aprofunda o vale das tormentas por que haveremos de cruzar, antes de alcançar outra vez a luz civilizatória.
Mais de 180 mil mortes, quase sete milhões de contagiados pela Covid-19 não é suficiente para compreendermos com clareza os problemas da saúde pública no país. Uma onda de desinformação subterrânea desestrutura os canais de informação tradicionais, que tratam de informação científica. Estamos nessa encruzilhada. Gente com um mínimo de formação educacional, que poderia atuar de maneira decisiva nessa batalha, passa a reproduzir atos e palavras descabidas desse desgoverno, afinado com a necropolítica a qualquer preço. O histriônico capitão chegou a anunciar lá no começo, vamos primeiro destruir para depois reconstruir. O que quis dizer com isso tem mais a ver com uma espécie não catalogada de demência política, do que com alguma forma de projeto de governo.
Mileto, 1994 |
A condição física do senhor Román se deteriorou desde março, ainda que preserve uma aparência relativamente saudável. Como disse a um amigo comum, pode chegar aos 100 anos, como pode apagar dormindo em três meses. Muito de sua memória perdeu-se nos desvãos do tempo. Com alguma dificuldade consegue lembrar quando jogava futebol há sessenta anos, dos nomes dos primos e de pequenas circunstâncias envolvendo a esposa e os filhos. Tem dormido longos períodos em sua poltrona, e quando desperta, tenta expressar uma ideia que sai confusa em meio às palavras truncadas. Permanece o olhar generoso, tranquilo, muitas vezes perdido, como se estivesse satisfeito em ficar imóvel, observando o contorno do mobiliário, as imagens de um filme de ação, sem se preocupar com o enredo das narrativa.
Em algum momento opta por fechar os olhos e escapar de nosso sistema de valores. É o futebol que permite os comentários mais consistentes, mas desapareceu o interesse em perguntar-me algo da vida dos filhos. Não está triste, nem cansado, mas frágil. Não há forças para uma curta caminhada. Os bons comentários, expressos aqui e ali até há um ano, desapareceram, prefere o agudo silêncio sideral. É como uma nave espacial que viaja por anos a fio e que está para romper com o sistema solar, a fazer parte de um outro universo, de outros referenciais, não mais o nosso. Enquanto for possível a Houston manter a comunicação fragmentada, alguma conexão permanece. Mas há o brilho vago dos sinais de uma outra realidade. Quanto mais ela for desbravada, mais o sentido da vida, tal como a conhecemos, deixará de ser o que é.
(atualizado em 10.02.2021)
De volta ao futuro: o modo de produção escravagista. |
Dezembro
nos alcança sem que haja mudanças positivas no quadro da Covid-19, mas ao
contrário, os últimos dados mostram um certo agravamento nos contágios. Segundo
a agência Reuters, só no dia primeiro deste mês foram mais de 50.000 novos
contágios e quase 700 mortes. No total, já são 173.817 segundo dados oficiais
do ministério da saúde. Deveremos terminar o ano ainda encerrados em casa,
mantendo uma quarentena mínima, evitando aglomerações. O governo estadual e
municipal, gerenciados pelo PSDB, evita tomar medidas mais enérgicas de
controle de circulação, o que só contribui para o repique da doença, uma vez
que as pessoas se lançam para as ruas, para as compras, para os bares, muitas
vezes sem as precauções necessárias.
Estive
no final de semana na casa de meus pais, visitando-os e para votar no segundo
turno das eleições municipais. Um fiasco para as esquerdas, que obteve vitórias
isoladas, como Belém do Pará pelo Psol e cidades médias como Juiz de Fora,
Diadema, Mauá e Contagem, pelo PT. A grande maioria das capitais e municípios
ficou nas mãos de partidos de centro-direita, de gente que está no poder desde
a derrubada do governo Dilma, em 2016 e que possuía, em um ano atípico com
respeito à campanha eleitoral, os recursos da 'máquina' para investir em seus
candidatos. Aqui em São Paulo esse 'investimento' chegou ao ponto de
distribuição de cestas de alimento às vésperas das eleições.
Bolsonaro
e suas hostes radicais também não amealharam bons resultados, e o que é pior,
não consolidaram bases eleitorais. No Rio, sua derrota foi brutal, com dois
entre três candidatos votando no adversário, Eduardo Paes. De um modo geral, o
grande povo miserável fica jogado no limbo, um sofrido ponto morto
político em que o empuxo da esperança utópica e da solidariedade social é
substituído pela letargia conservadora, sinalizando uma continuidade nada
auspiciosa para o bem-estar social.
Roteiro de viagem - de 09.02 a 15.03.1991 |
Foi uma experiência única e arriscada. Na minha 3a. viagem para a Europa, realizada no inverno de 1991, optei por registrar as paisagens a partir de tomadas de imagens sequenciais, com uma pequena câmera Kodak autorebobinável. Era o que podia fazer para imagens em grande angular, e quando retornei ao Brasil, revelei as fotos e produzi um grande catálogo com pranchas de cartolina, montando as paisagens. Na época, o resultado foi bastante apreciado por meus amigos, e ao final de algumas exibições, guardei o volume e praticamente o esqueci.
Duas semanas atrás, resolvi retomá-lo e digitalizar as imagens, não apenas para preservá-las, como também para expô-las nas redes sociais. O resultado obtido há três décadas parece quase risível diante das possibilidades tecnológicas de hoje, mas ainda assim a recuperação das imagens, passando por um leve restauro de filtros, me parece bastante positivo. A única cidade que não capturei por minha Kodak foi Paris, que em razão da profusão de imagens obtidas em viagens anteriores, deixei de lado. Na cidade, fiquei a maior parte do tempo, praticamente duas semanas, em razão de um curso de civilização e cultura que fiz na Aliança Francesa.
Meu objetivo era Berlim. Um ano e meio antes, em julho de 1989, passei pela cidade por apenas um dia, tempo suficiente para registrar as cercanias do Tiergarten e do muro, que seria derrubado três meses mais tarde. Por conta dessa "falha imperdoável" de minha parte, resolvi voltar e ficar um período mais amplo. Ainda assim, meus percursos se restringiram a uma área expandida da região central, alcançando partes da antiga Berlim oriental. Visitei museus, circulei pelas ruas, bastante impressionado com os amplos espaços vazios que um dia fora a Potsdammerplatz e cercanias. O filme de Wim Wenders, Asas do Desejo, me impôs esse retorno mais extenso, detendo-me em locais que compuseram os cenários do filme.
Uma parte dos resultados divulgo abaixo. Depois de passar por Colônia, Bonn, Hamburgo, Copenhagem e Estocolmo, uma média de três dias por cidade, cheguei a Berlim, onde fiquei quatro. Os trajetos foram cobertos em grande parte por trem, salvo no trecho entre Dinamarca e Suécia, realizado por ferry. Minhas estadias foram cumpridas em albergues da juventude. Gosto dessa viagem em especial pois além do meu regresso a Berlim - uma Berlim que pode se ver, mais cinzenta e em reconstrução - fiz minha única visita até hoje à Escandinávia.
Foi uma das poucas ocasiões em que não computei os custos de modo preciso, grosso modo os gastos giraram em torno de 1.000 dólares, fora as passagens de trem, reservadas antecipadamente com o Eurailpass.
Colônia |
Bonn - Münsterplatz |
Hamburgo - Binnenalster |
Copenhagem |
Estocolmo - praça Sergels, vista da Kulturhuset |
Estocolmo - Estádio Rasunda (já demolido) |
Berlim - Ku'damm 1 |
Berlim - Ku'damm 2 (em primeiro plano, um Trabant) |
Berlim - Potsdamerplatz |
Berlim - Porta de Brandemburgo |
Berlim - Alexanderplatz |
Berlim - restos do muro |
Com Solanas na Augusta |
A primeira vez ocorreu em uma sala de cinema, no final dos anos 1990, logo após o lançamento do seu A Nuvem (La Nube, 1998). Saí da sala de projeção verdadeiramente impressionado e muito desejoso de saber mais sobre o autor. De algum modo, foi o momento catalizador para me aproximar com admiração da onda do novo cinema argentino, que estava para começar, com Juan Campanella, Pablo Trapero, Lucrecia Martel, Daniel Burman, dentre outros. Tornar-me-ia um fã incondicional dessa escola cinematográfica, que produziria tanto com tão poucos recursos, apresentando ao mundo uma forma acabada de contar histórias, sempre com um fundo político nos roteiros.
Em princípios de 2003 ou 2004, eu o veria ao vivo pela primeira vez, agora expressando-se não como diretor, mas como uma liderança política. Foi no Fórum Mundial de Porto Alegre, pude ouvi-lo em sua decidida contundência pela luta soberana de nossa Latinoamerica. Estava acompanhado, e por essa razão não me aproximei ao final de sua fala, para apresentar-me e conversar o mínimo que fosse sobre política e cinema. Pino a essa altura ainda não havia enveredado em sua trajetória política partidária, iria se candidatar mais tarde, a princípio aliado ao kirchnerismo, mas aos poucos se distanciando por uma vereda confusa de um peronismo nacionalista mais radical, em seu Proyecto Sur, cujo discurso o levaria a deputado federal e mais tarde ao senado.
A terceira vez ocorreu pouco depois, em meados de 2007. Fiz uma viagem sentimental a Buenos Aires, sozinho, reencontrando-a depois de 15 longos anos. O novo cinema argentino estava em franco desenvolvimento e decidi trazer na bagagem alguns títulos em vídeo, para eventualmente apresentar em nas aulas de Comunicação Comunitária, na Faap. Um deles foi o maravilhoso La dignidad de los nadie, lançado dois anos antes, que relata o drama da crise social e política vivenciada pelos argentinos em 2001. As turmas de cinema puderam ver trechos desse filme e minhas palavras a respeito de Solanas em ótima forma, que não só dirigiu, mas escreveu o roteiro, produziu e atuou. Foi o terceiro filme de uma trilogia, Memoria del Saqueo (2004) e La Resistencia (2005).
A última vez que o encontrei foi em 2018, como mostra a imagem que encabeça a postagem, na véspera das eleições presidenciais do Brasil. Estávamos em plena Mostra de Cinema e no cinema em frente de casa tive a chance, por fim, de assistir seu maravilhoso La hora de los Hornos, que completava cinquenta anos. Fiquei sabendo que ele estaria para uma conversa com o público, e ao dar uma saída para o café, o encontro na porta do cinema. Desta vez o detive delicadamente e me apresentei, comentando meu apreço por sua obra e pedi para sacar una foto!
Poucas vezes senti tanto orgulho em estar ao lado de alguém, e o destino me ofereceu Fernando Solanas, esse grandioso cineasta peronista! Ao contrário de sua expressão habitual fechada, marcada pelos fortes embates da vida, ofereceu-me um amável e receptivo sorriso.
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a revolução está emperrada
as cabeças agora
raciocinam
que é
mais fácil
comprar
um
agasalho
e
sair fazendo jogging por aí
$ $
(jun/83)
Sófia, 1994 |
Uma vez instalada, a intolerância política é de difícil trato. Para enfrentá-la, e penso aqui em seu enraizamento em regimes totalitários que vingaram no século XX, os fascismos europeus dos anos 1930; os regimes autoritários pós-guerra no leste europeu; os regimes militares nos anos 1960 e 1970 que proliferaram nas Américas, para não dizer no pós-colonialismo imposto pelas antigas metrópoles em muitas partes da África, as dificuldades foram imensas e sempre dolorosas para os povos submetidos. A intolerância acompanha em maior o menor grau a violência discursiva, a repressão policial, a ausência de coerência jurídica e consequentemente, a prática de ações da elite dominante, o conhecido dois pesos e duas medidas - para os nossos a parcimônia da lei, para eles o peso da condenação.
Tudo isso para comentar o drama que foi reconstituir o estado democrático de direito na Bolívia, a dificuldade em superar uma Constituição autoritária no Chile, e agora a dura luta para se superar o trumpismo como arremedo de prática política nos Estados Unidos. A Espanha ainda sofre com o legado franquista, os países da América Central não conseguem superar a violência dos regimes militares dos anos 1980, o Brasil perdeu seus desígnios com a fragmentação social, política e cultural que o período militar produziu, ao reforçar os vícios autoritários de uma casta privilegiada, que nos jogou aos braços da desigualdade e da segregação social. Sem um fundamento crítico, sem um processo educativo que pudesse despertar as consciências para uma percepção de mundo mais justo, ou menos alienado, sucumbimos ao canto da sereia do bolsonarismo, assim como os estadunidenses às diatribes de Trump.
Imaginando que com esses representantes a vida ficaria mais fácil e os problemas estruturais e conjunturais da sociedade eliminados, o voto significou a vinculação a modelos políticos caricatos, que sobrevivem justamente nas junções dos pedaços que a ausência de uma compreensão solidária produziu. A questão, lá como aqui, é como afastar de maneira democrática essas lideranças fáusticas que se utilizam de todos os subterfúgios para se perpetuar. A vitória de Biden parece ao alcance - embora isso não signifique qualquer transformação no modo imperialista de ser do governo estadunidense - mas o custo pós-eleitoral será imenso. O mesmo se dará aqui, acreditando-se na superação do bolsonarismo em 2022.
As sementes da perfídia foram lançadas e a primeira colheita já realizada. Nada será como antes, quero dizer, dentro do comportamento respeitoso de quem ganha ou perde. Cada vez mais a compreensão sensível das diferenças é substituída pela força bruta de um embate de UFC, onde a violência e o sangue são partes indispensáveis para algum resultado.