04 dezembro 2020

O senhor Román

Mileto, 1994

A condição física do senhor Román se deteriorou desde março, ainda que preserve uma aparência relativamente saudável. Como disse a um amigo comum, pode chegar aos 100 anos, como pode apagar dormindo em três meses. Muito de sua memória perdeu-se nos desvãos do tempo. Com alguma dificuldade consegue lembrar quando jogava futebol há sessenta anos, dos nomes dos primos e de pequenas circunstâncias envolvendo a esposa e os filhos. Tem dormido longos períodos em sua poltrona, e quando desperta, tenta expressar uma ideia que sai confusa em meio às palavras truncadas. Permanece o olhar generoso, tranquilo, muitas vezes perdido, como se estivesse satisfeito em ficar imóvel, observando o contorno do mobiliário, as imagens de um filme de ação, sem se preocupar com o enredo das narrativa. 

Em algum momento opta por fechar os olhos e escapar de nosso sistema de valores. É o futebol que permite os comentários mais consistentes, mas desapareceu o interesse em perguntar-me algo da vida dos filhos. Não está triste, nem cansado, mas frágil. Não há forças para uma curta caminhada. Os bons comentários, expressos aqui e ali até há um ano, desapareceram, prefere o agudo silêncio sideral. É como uma nave espacial que viaja por anos a fio e que está para romper com o sistema solar, a fazer parte de um outro universo, de outros referenciais, não mais o nosso. Enquanto for possível a Houston manter a comunicação fragmentada, alguma conexão permanece. Mas há o brilho vago dos sinais de uma outra realidade. Quanto mais ela for desbravada, mais o sentido da vida, tal como a conhecemos, deixará de ser o que é.

(atualizado em 10.02.2021)



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