21 dezembro 2020

China, uma entrevista

 

O desenvolvimento urbano das cidades chinesas


Há poucos dias fui consultado por um aluno de jornalismo sobre a possibilidade de uma entrevista a respeito da China, as disputas geopolíticas com os EUA, as relações com o Brasil. Embora não seja um profundo conhecedor do tema, aceitei o desafio, pela chance de estudar um pouco mais e debater principalmente sobre o tema da geopolítica. Utilizei algumas referências que possuo de leituras políticas em sites como Outras Palavras, e de autores pesquisadores que integram o Núcleo de Estudos Brasil-China, da FGV do Rio, que têm produzido um ótimo trabalho sobre o tema. 

O resultado me pareceu satisfatório como um exercício para se entender um pouco mais sobre o gigante industrial, maior potência asiática e maior parceiro econômico da América Latina. Por não ser muito extensa, tomo a liberdade de reproduzi-la abaixo, sem editar, já que será parcialmente divulgada em uma revista acadêmica de pequena circulação.


Entrevista 

Como o conflito geopolítico entre China e EUA influenciam na economia e na política brasileira?

Essa tensão de algum modo cria instabilidade não só ao Brasil como para o mundo. Trata-se de uma disputa geopolítica que deverá se estender por muitos anos, e que não deverá se resolver de modo fácil. De nossa parte, convém buscar um distanciamento estratégico, retomando uma política externa que contemple: a) retomar e avançar nas relações com os países da região, expandindo a união aduaneira, os acordos econômicos, de defesa, de saúde, os intercâmbios acadêmicos, a partir da consolidação de organizações intergovernamentais regionais já existentes (como por exemplo, a Celac, a Unasul), e b) intensificar as relações multilaterais com os mercados de outros blocos econômicos, aprofundando de maneira especial nosso papel nos BRICs. Seria a perspectiva mais promissora de realçar nossa condição de nação soberana, que tradicionalmente busca seu desenvolvimento sem um alinhamento automático ou dependente a qualquer das potências.


Como o governo brasileiro deve se portar, se de fato ocorrer uma guerra entre as duas potências?

O que podemos esperar não se contém ao termo “nova guerra-fria”, porque hoje, ao contrário da guerra-fria dos anos 1950 e 1960, a China não é um inimigo ideológico, mas uma nação que procura a interdependência econômica e um intercâmbio de ideias com os EUA e as economias ocidentais, ainda que persista o discurso retórico, onde as narrativas se entrechocam. Nesse ambiente, será interessante aguardar o que virá nesse novo horizonte diplomático pós-Trump, e o Brasil terá sem dúvida melhores chances de preservar seu tradicional status de nação neutra, mantendo com soberania as relações amistosas e de interesses de reciprocidade com ambos os países.


Por que o investimento na tecnologia 5G é importante para o Brasil e como devemos nos posicionar em relação à Huawei?

A rede 5G significa um avanço indispensável para as redes digitais, mais velocidade, maior armazenamento, maior alcance, mais estabilidade nas conexões. Significa assim mais qualidade no acesso e compartilhamento de informações. Nesse sentido, não há razão para que, por uma decisão pautada em duvidosos alinhamentos diplomáticos, o Brasil não possa abrir seu mercado para a tecnologia da Huawei e utilizar seus serviços de alta qualidade tecnológica.


O quanto a tensão política e econômica entre esses países irá impactar na nossa forma de pensar a indústria?

Isso depende muito do projeto de desenvolvimento do governo brasileiro, que até aqui se mostra indefinido, onde as decisões políticas são tomadas ao sabor dos interesses corporativos. Sem uma perspectiva definida para os nossos desígnios, os problemas do tabuleiro de disputas políticas e econômicas entre China e EUA surgem como uma dificuldade a mais para a retomada do crescimento industrial e do bem-estar social.

 

Por que existe um preconceito sociocultural com produtos chineses, sendo que grande parte das nossas infraestruturas e produtos são chineses?

O preconceito em grande medida surge em função do alinhamento ideológico entre o governo Bolsonaro e seu homólogo estadunidense Donald Trump. Como se não bastasse o natural distanciamento diplomático com o governo chinês, com o risco de ameaçar futuros investimentos daquele que é nosso principal parceiro econômico, a agenda política de Bolsonaro, definida ainda em campanha, promove uma aproximação incondicional com o mercado estadunidense que nem sempre traz benefícios ao Brasil, mas ao contrário, compromete as relações de reciprocidade nas relações bilaterais, como foi o caso recente da importação de 187 milhões de litros de etanol dos EUA isenta de impostos, ou a restrição da entrada de brasileiros no país que nos foi imposta.   


O regime chinês pode ser entendido como um regime economicamente imbatível?

O crescimento da economia chinesa se observa de maneira contínua e programada há mais de trinta anos, com índices anuais que, antes da pandemia, giravam em torno dos 10% ao ano. O desenvolvimento da economia não ocorreu ao acaso, mas a partir de uma orientação estratégica do governo centralizado, com uma planificação de investimento em áreas estratégicas, e assim consolidando uma infraestrutura industrial que, juntamente com os investimentos na educação e com os avanços tecnológicos, passou a ganhar novos mercados e a realizar novas parcerias comerciais. 


Existe alguma mudança no paradigma comercial pensando no investimento em tecnologia no Brasil?  Por que a China investe mais em tecnologia no Brasil que os EUA? 

Os chineses não investem apenas no Brasil, mas em outras partes do mundo onde as oportunidades se oferecem. Por exemplo, eles investem fortemente no setor elétrico brasileiro, que não desperta grande interesse das empresas estadunidenses. De um modo geral, os chineses expandem seus investimentos em infraestrutura, no Brasil, em países da América do Sul e da África, financiando a construção de estradas, ferrovias, portos, hidrelétricas. Também investem em produtos naturais, gás, petróleo, soja, milho. Constroem o novo caminho da seda, que atravessa a Ásia Central até a Europa, abrindo novos mercados e realizando novos diálogos diplomáticos.


Qual o cenário hoje de tensão entre os dois países?

A tensão se limita, como dito anteriormente, a uma disputa de narrativas que ultrapassa a mera identificação com o termo “nova guerra fria”. O discurso ocidental de isolamento da China não parece salutar, nem algo próximo da realidade. A China não é um país com pretensões imperialistas, seu modelo de governança tem origens históricas mais antigas que o comunismo. Seu modelo de expansão econômica é premido pelas necessidades de energia e matérias-primas, e não pela necessidade de impor um modelo capitalista de dominação. Para o chinês, as sanções e bloqueios econômicos funcionam não como um enfrentamento ideológico, mas como pretexto puro e simples de vedar o direito de existir da China. Assim, é indispensável compreender a China como um poderoso ator, que ocupa de modo protagonista seu lugar na economia de mercado.  


O Brasil precisará fazer uma escolha ou posicionar-se?

Como foi dito, será muito importante ao Brasil não fechar as portas para a China ao optar por uma aliança hemisférica com os EUA. Seria de grande relevância para nosso protagonismo como nação ampliar os laços com os BRICs, lembrando que só neste ano (até outubro) com todos os “ruídos” diplomáticos produzidos pelo governo Bolsonaro, o Brasil exportou só para a China US$ 51,5 bilhões em commodities primárias (produtos agrícolas, minerais, combustíveis), com um saldo comercial de mais de US$ 21 bilhões. Já não se trata mais de fazer uma escolha, mas de nossa política externa atuar de maneira pragmática e decidida enquanto nação soberana, buscando os melhores caminhos para o desenvolvimento econômico e social.


Qual o contexto internacional deste conflito? E por que a China cresce mais que os EUA?

Nunca será demais eliminar a imagem uma nação tecnologicamente rudimentar ou defasada em relação aos EUA. É fundamental termos em conta o tamanho e o dinamismo do mercado chinês, a escala de sua produção, e em função disso, os estímulos do governo para a formação de grandes grupos estatais e privados, com aumento veloz de escala e competitividade. Talvez um ponto que mereça uma reflexão seja, para além desse conflito imaginado, como se dá a participação dos trabalhadores. O premiado documentário Indústria Americana, nos dá uma mostra sobre o falso dilema que emerge desse conflito entre as duas maiores economias do mundo, ao expor o mesmo problema estrutural do capitalismo moderno, o processo de precarização e exploração trabalhistas, que atinge de modo agressivo os trabalhadores de ambas economias.  


Sabendo que é natural a perda de empregos para as máquinas, como podemos classificar esse cenário para os próximos anos? E por que a China é protagonista neste campo?

A China segue os protocolos de uma economia de mercado, ainda que se defina como um estado comunista. Dessa maneira, assim como as economias industriais mais avançadas, buscará a automatização crescente na produção, sem deixar de lado os cuidados com a farta mão-de-obra que dispõe. Parece-nos um caso em que a centralização das decisões estratégicas dos rumos da economia seja bem-sucedida, com sinais de que os chineses experimentam alguma melhoria nas condições de vida.


Quais ações o governo federal pode tomar para tentar democraticamente manter boas relações com essas potências mundiais caso não tome partido?  

Como já arguido, o governo brasileiro precisa ter clareza em suas decisões enquanto nação soberana, ou seja, não escolher um lado do ponto de vista ideológico, mas com uma política externa capaz de atuar de maneira pragmática e decidida, buscando os melhores caminhos para o desenvolvimento econômico e social.


Como o governo Bolsonaro é visto no exterior?

O governo Bolsonaro tornou-se um pária internacional, pelas suas atitudes marcadas pela intolerância política e racial, pelo seu negacionismo científico, pela virulência de suas decisões diplomáticas. Com o fim do governo Trump, perderá o aliado potencialmente mais representativo e por seu caráter intransigente, terá dificuldades em compor alianças. Seja no cenário internacional, alimentando uma imagem em tons fascistas, seja no âmbito nacional, incapaz de planificar um projeto de desenvolvimento econômico e social, a tendência é que termine seus dias de poder em completo isolamento político.



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