29 janeiro 2010

Belerofonte no Tártaro


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Tenho me sentido distante deste mundo que me absorve aos bocados, onde há muito os sonhos não invadem minhas noites, inundando a alma de seduções e desejos. Ao contrário, os fantasmas não deixam de rondar meu catre, pronunciando palavras toscas, indiciando-me em um tribunal imaginário e sem fim. Desperto nas manhãs ensolaradas com as esperanças brutalmente comprometidas, e nas manhãs escuras sem disposição sequer de pensar. Seja como for, me preparo para as jornadas diárias com a expectativa de romper com as amarras, de quem sabe recuperar o cavalo alado e com ele empreender alguma desvairada conquista, mas o confronto de cada dia, de cada hora, se dá no âmago das opções inúteis, vivendo no tormento estéril do remorso.
Uma vez no escritório, sento-me diante do computador em busca de clientes, no afã de vender coisas, produtos industriais que temos em profusão e que os outros necessitam. Minha filha necessita de minha presença, é essa imagem que se constrói na tela, seu olhar de desconsolo diante de minha inoperância como pai. De quando em vez fecho um negócio, enquanto penso em outras pessoas queridas, esquecidas ao longo de minha trajetória. Acolho lembranças, seja com a família, seja com amigos, e me questiono sobre as opções. Meu percurso desapegado, quase como um indigente, voltando-me apenas para as oportunidades de ocasião. Vitórias que me soaram gloriosas, nada mais do que conquistas efêmeras que se dissiparam com o tempo (...)
À hora do almoço, retiro-me a um canto para minhas palavras cruzadas, enquanto aguardo o momento de recomeçar. Recomeçar, sempre esta palavra, mil vezes recomeçar. Se no início meus instintos cobravam-me ações resolutas, agora me acomodo na avaliação de suas conseqüências. E assim arrasto-me, sem pressa porque não há onde chegar. Em uma dessas tardes de caça virtual a clientes, encontrei um velho amigo que a princípio me pareceu um bom augúrio. Mas logo após as primeiras palavras, lançou sobre mim uma carga de despautérios que mostravam seu rancor adormecido. Fora eu a causa de tanto desgosto? Como se eu tivesse usufruído da exaltação quimérica para envenenar as relações, sobressaindo perversamente aos olhos das mulheres, dos amigos, dos companheiros de luta, como se o bem maior fosse a conquista do Olimpo... Não sei, o certo é que aproveitou a ocasião para jogar-me as acusações na cara, como nunca havia feito. Voltei para casa ainda mais inseguro, sem dizer que não fiz nenhuma venda naquela tarde sem fim (...)
Velho, alquebrado, sobra-me o regresso para casa, que em qualquer circunstância deveria ser um fato agradável. Neste momento de lusco-fusco, em que a luz do dia abre lugar para as trevas da noite, sou paulatinamente açodado por meus medos e incertezas, que reverberam com essa esgarçadura generalizada das relações cotidianas, reforçando justamente a falta de comprometimento. Os vínculos desaparecem e com eles, a grata sensação de fazer parte. Vejo ao redor cada vez mais sofrimento e desilusão, sendo envolvido pelo desalento que é meu e também do mundo. É então que, ao refletir sobre as coisas, me deparo com certa inutilidade nas escolhas feitas e principalmente nas que estão por vir. Por que, para que, valeu a pena?, são as questões que rondam minha alma. Mesmo aventurar-me na poesia me parece um fardo desnecessário (...)
Curiosamente, não me entrego, mas tenho a convicção de que me debater à deriva é a pior das opções. Como agora, por exemplo: percebo que falar sobre minha vida não significa nada em termos de construção de um caminho, e mesmo na ponderação dos fatos (...) É meu desafio absorver a tristeza na compreensão do mundo, transformar-me em alguém a partir dessa dor muito pessoal, em vez de vagar envergonhado, a esconder-me das pessoas...
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