Era moleque de calças curtas quando acompanhei meu primeiro ídolo fracassar. Isso aconteceu no famoso 'match do século', decisão do campeonato mundial de xadrez, Robert Fischer versus Boris Spassky, em Reykjavik. Como estávamos em plena ditadura militar (Médici), os jornais tinham espaço de sobra para divulgarem eventos como esse, com todos os detalhes. As partidas eram transcritas lance por lance, com comentários de nossos enxadristas, e permitia a reprodução dos 'combates' no calor da refrega.
Os soviéticos se sucediam como campeões havia 24 anos e o último estadunidense 'campeão' do mundo fora Paul Morphy, cem anos antes. Nessa época - meados do século XIX - ainda não havia campeonatos do mundo e nem campeões consagrados (a FIDE seria fundada muitos anos mais tarde), mas Morphy era tido, mesmo por seus mais soberbos adversários, como o gênio a ser batido.
Fischer seguia os passos de seu compatriota e era considerado um gênio rebelde. Abandonara torneios na metade, exigia cachês elevados e a própria realização do match de Reykjavik esteve ameaçada até o último instante. Era considerado, pela alcatéia de jogadores soviéticos, como o único rival a ameaçar sua hegemonia.
Do outro lado, Spassky era um perfeito cavalheiro. Arrebatara o título três anos antes, contra o armênio Tigran Petrossian, em Moscou, e chegava com todas as credenciais para manter-se no topo. Tinha 36 anos - Fischer, 29 - e estava no auge da carreira. Abriu 2 a 0 nas duas primeiras partidas (Fischer perdeu a segunda por não comparecência, reclamando do ruído das câmaras de tevê na sala de jogo) e acreditava-se que o campeonato estava decidido.
Em dez partidas, porém, Fischer já abria três pontos de vantagem, numa reação espetacular. Ganharia o campeonato quem atingisse 12,5 (estavam previstas 24 partidas). Parecia difícil que o russo virasse a contenda e foi aí que aprofundei minha torcida para Spassky, tornando-o meu primeiro ídolo.
Chegaram à partida 21, que resultou adiada no 40. lance. Antes de recomeçar, na manhã seguinte, Spassky ligou para o árbitro Lothar Smith abandonando o match. Por muito tempo pensei o que teria ocorrido nessa derradeira noite, com ele e seus inúmeros 'segundos', analisando as variantes insuficientes para impedir a derrota. A União Soviética abdicava do longo mandato de 24 anos no xadrez.
O texto abaixo chega tardiamente, como uma tentativa de acalentar o meu desconsolo da época, que talvez tenha sido maior do que o vivido por Spassky. Posso dizer que hoje, é o estilo do jogo e a fulgurosa trajetória enxadrística de Bobby Fischer que me fascinam.
-o-
A noite transcorreu entre pesadelos entrecortados pelo vaivém no interior do chalé. Nenhuma idéia fixa, apenas as imagens distorcidas do tabuleiro, peças gigantes surgindo e desaparecendo, as brancas devorando as negras. Geller, seu segundo mais próximo, visitou-o pouco depois da partida ser adiada, no início da noite anterior, apenas para perguntar-lhe qual havia sido o lance secreto. Ao saber, sua expressão inquieta traiu a tentativa de manifestar um comportamento otimista. ‘Calma, Boris, acharemos uma variante... descanse e deixe o trabalho para nós’. A equipe de analistas passaria a noite em claro, no chalé vizinho, tentando encontrar uma saída que Boris já prenunciava inexistente.
O tempo esgotava-se aos bocados, fluindo em parcelas desiguais onde se preservava sucessivamente esperança e consternação. O sofá tornou-se o receptáculo derradeiro para um corpo exaurido, as lembranças se sobrepunham sem coerência, Na vigésima partida perdi aquela vitória simples...; O melhor lance secreto era rei na terceira casa da torre... a torre rodando-lhe na mente, em dimensões distintas, indo, voltando, falando-lhe... a situação começava a encetar-lhe uma perseguição tenebrosa pela madrugada... o olhar vagando na escuridão do cômodo, em busca de soluções mágicas, trechos de Scriabin, a Sinfonia número 1, terceiro movimento, Lento, tensão e languidez diáfanas... disputas pelos pensamentos fragmentários, circulares, que só reverberaram o drama da derrota... as notas repetidas mentalmente, entremeadas com os lances reais e os descartados... Quadragésimo lance, bispo na sexta casa do rei... Fischer respondendo peão na quarta casa da torre, o peão livre... Sinfonia número 2... quarto movimento, Tempestuoso, conflito, agitação... retalhos que não desapareceram... que não o acudiram na amargura, o bispo na sétima casa da dama, que de ora em vez lhe anunciava sorrateiro, ao pé do ouvido, ‘Mas que péssima jogada, Boris’...
Ia se acostumando com a responsabilidade de mais uma derrota, a última pelo campeonato, a que lhe arrebataria o título mundial. Seus analistas certamente logo chegariam à mesma conclusão... inclusive Robert Fischer. Visualizou instantaneamente a comemoração do norte americano, sem lamentá-la; apenas remoeu a angústia que qualquer derrota decisiva acarreta... Mais algumas horas e suas turbulências noturnas se condensariam num desfecho lógico, num comunicado lacônico, breve, ‘Senhor Lothar Smith, ligo para anunciar o meu abandono da vigésima primeira partida’...
Sentiu um impulso repentino para abandonar não só o match, mas tudo, sumir, deixando um bilhete de desistência sobre a mesa, os cumprimentos a Fischer, as desculpas para o seu povo... o desejo de tomar um avião ainda na calada da madrugada, rompendo com normas, prioridades, confinamentos, abandonando por uns tempos, ou para sempre, o xadrez... Os analistas-perdigueiros logo chegariam, ‘Boris, encontramos uma variante!’... Quantas vezes ouvira esta frase, ao longo de sua carreira de enxadrista, exprimindo verdades e mentiras?... Em Reykjavik, vez ou outra apenas um se dignava a procurar-lhe antes de cada derrota, geralmente Geller, com o olhar grave de quem prescrevia uma tragédia, Boris, não encontramos uma variante... A maneira lacônica de entrar, de tirar o cigarro da carteira, de ajeitar-se na poltrona, eram indicadores que a partida adiada estava condenada e que nem mesmo os bons camaradas podiam fazer algo... Sim, havia tempo para desaparecer antes de Geller bater à porta do chalé... Esquecer Moscou, perder-se no mundo, nos cafés de Paris... a facticidade das vitórias e das derrotas deixando de fazer parte do cotidiano! Em meio a essa turbulência, foi aos poucos sublimando os fantasmas melancólicos, permanecendo envolto nas ambiguidades que o revés lhe oferecia.
Por fim, o cansaço assomou-lhe a mente esgotada. Refletiu algo sobre como ‘minha derrota encerra uma era’, sem se preocupar com as certezas da assertiva. Ao contrário, não demorou em perceber o alcance da sua inutilidade.
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