Foi em um final de tarde de inverno que o senhor Hartman chegou em casa, chamou sua esposa na sala e, em meio a alguns gracejos, disse-lhe de modo grave, com um olhar mais vítreo que o normal, ‘Perde-se o caráter’! Como a senhora Hartman não entendesse o que o marido queria dizer, pensou tratar-se de outra broma característica, voltou para seus afazeres, não sem antes dar-lhe um beijo de boas-vindas, ajudando-o a retirar o pesado casaco, o cachecol, o chapéu, acreditando que ele falasse mais do que queria dizer.
O casal prosseguiu em sua vida difícil e não menos honrada, cumprindo com as obrigações diárias, mergulhado nos afazeres diários, mantendo as dívidas em dia e alimentando-se de prazer nas escassas horas disponíveis aos finais de semana. Os filhos crescidos iam à escola e se saíam bem nas tarefas, animando os pais orgulhosos. A vida prosseguiria em seus trilhos aparentemente normais, e numa opaca tarde de outono, o senhor Hartman estancou na soleira da porta, um tanto perturbado, ‘Ainda menos caráter!...’, pronunciou com o olhar ainda mais rijo. Desta feita, não só a esposa como os filhos estavam presentes. Observaram a tensão do esposo e pai, que se conteve na frase desdita, olhando assustado para os lados. Ato contínuo, retirou os sapatos, a blusa e as calças e dirigiu-se à cozinha, procurando algo para comer. Abriu a geladeira, retirando um pedaço de queijo, suco de laranja, um pote de doce de leite, sacou da cestinha sobre a mesa dois pãezinhos frescos e ao dar cabo com certa avidez dos alimentos, pôs-se a devorar os biscoitos caseiros, preparados pela senhora Hartman para o desjejum do dia seguinte.
Ninguém conseguiu entender a atitude do senhor Hartman, e o pior, não houve qualquer explicação. Apenas acompanharam o que mais tarde definiram como uma inusitada transformação progressivamente conturbada, que se notava em gestos ansiosos e por algumas vezes inconsequentes. De algum modo todos perceberam também a sutil mudança na coloração da pele, cada vez mais cinzenta, os pelos mais alongados sob o nariz, a cabeça mais afilada, as falas menos consequentes. E também a voracidade em se alimentar nos horários menos comuns, independente de estar ou não acompanhado pela família. Foi perdendo o asseio e o interesse pelos assuntos domésticos.
As coisas passavam nessa toada intrigante, em meio às preocupações naturais da família, quando no início do verão, Hartman surgiu com uma aparência desolada, prescindiu de qualquer carinho, atirou a valise no sofá, despiu-se por completo e teve forças para um breve comentário, mais guinchado do que falado, ‘Sem caráter e muita ambição’. Tomou a direção da cozinha e todos puderam ver o corpo ainda mais cinzento, um rabo longilíneo, as mãos mais parecidas com patinhas afiladas, preocupado em esvaziar a despensa para saciar o que mais lhe premia, a fome. Foi então que mulher e filhos perceberam que Hartman havia se transformado em um rato.
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