As últimas palavras que consigo lembrar surgem como que impressas na imagem já meio fugidia de seu rosto jovial, saltando do vagão, talhada em pleno contentamento... não sei bem se seria esta a palavra que melhor poderia definir seu estado de espírito naquele instante, mas enfim, uma expressão radiante que me inundou instantaneamente, como sendo o coroamento de sua vida aventureira. Nossa amizade nunca fora calcada em surpresas sem graça, de modo que compreendi que sua saída de cena seria decisiva, sem regateio. Saída decisiva, queiram compreender o alcance desta afirmação. Não mais nos vimos, um longo convívio de cumplicidade que terminou sem maiores delongas, apenas uma frase curta, surgida num instante de pura emoção, que eu a rememoro com o mesmo entusiasmo, Adeus amigo!, brado que retiniu em meus ouvidos enquanto sua figura avançava pelo corredor, pelas escadas do trem e por fim, pela infindável planície ao sopé do Atlas. Da janela, pude acompanhar sua silhueta e a da bela jovem, até que a sede mais o cansaço deslocassem minhas percepções para as extensões íngremes da paisagem.
Foi uma casualidade o nosso encontro em Tânger. Convenceu-me em inutilizar meu bilhete de ônibus para Mellila e a acompanhá-lo até Ujda, para chegar à Argélia. Durante as sete ou oito horas de viagem vi a cabina se encher e se esvaziar de árabes, homens do deserto, velhos cansados, mulheres com seus filhos, adolescentes falantes... ele com sua Leica, tomando imagens sem parar, closes de nossos companheiros de viagem, panorâmicas das paisagens gradativamente mais áridas... Meknés foi a última parada urbana e também a enxurrada final de passageiros a se espremer nos espaços internos do trem. A espontaneidade de meu amigo granjeou o sorriso nas pessoas, que facilitavam sua dificultosa movimentação pelo vagão, com seu aparato fotográfico. Tinha gastado mais de um rolo quando a viu. Ela estava de pé, observando o nada pela janela do corredor, a atenção fundindo-se com o horizonte. Ele permaneceu por instantes em estado de estupor, adentrando a cabina, trêmulo... e balbuciou, A pérola do deserto está aqui! Logo me puxou e a indicou discretamente, era de fato a mulher de incrível beleza, na flor dos seus dezoito anos, vestida com um traje de seda cinza escuro, que lhe adornava elegantemente os braços, o tronco e as pernas, até o tornozelo...
Possuía um xale colorido que lhe protegia a cabeça e escorria para o pescoço em uma ou duas voltas, com uma das extremidades delicadamente pendente no ombro. Ele estendeu-me sua Leica, a mensagem subliminar evidente, Fotografe-a para mim! Jamais o vira assim antes, fora de si, contido pelo encanto magnético de uma mulher inesperada do deserto, paralisado nas atitudes, em meio à multidão de humildes trabalhadores. A mulher recostada na porta da cabina vizinha posou imóvel, sabendo-se fotografada. O trem sacolejou antes de uma parada na terra de ninguém, onde muitos desembarcaram. Abriu-se pela primeira vez espaço na cabina para sentarmos e conversarmos adequadamente sobre a viagem, mas após um curto espaço de tempo, ainda inquieto, ele ergueu-se e colocou-se no corredor, ao lado de sua musa. Não ouviria mais sua voz até o conclusivo adeus amigo, na parada em que desceram para os confins do deserto. Coube-me desvendar o nome do lugarejo, duas dúzias de casas esparsas nas planuras quentes do pré-Saara. Um advogado de Fez, sentado ao meu lado, solucionou a dúvida, proferindo a palavra desconhecida: Uidamlil.
Não me restou alternativa senão concluir a viagem até a Ujda que não procurava, e, contagiado pela irreverência de meu amigo, lancei-me para além, por caminhos que se confundiram com quimeras, desvelando as belezas e cruezas de um movimento errático que desnudaram minha incompletude humana. Numa entrega sem qualquer receio com os acasos, acompanhei caravanas de reguibas, ziguezagueando por desertos, não só mercadejando peles e especiarias de todos os tipos, como acampando ao relento, em meio aos bandos tuaregues. Acolhia-me o lume dos fogaréus noturnos, cujo estalar das brasas despertava a sonolência e o descanso profundo. Não raro, deixei-me embalar pela sonoridade de seus instrumentos e de suas canções, que realçavam a magia daquelas latitudes tão silentes quanto esquecidas. Suportei o sol caudaloso das caminhadas sorvendo a água dos cantis de tripas de camelos e sobrevivi à base de pão e tâmaras secas. Foi ao cabo de uma noite de completa libertinagem, nos confins do Sahel, que delirei com danças tribais embaladas por melodias de Nick Cave.
Foi uma casualidade o nosso encontro em Tânger. Convenceu-me em inutilizar meu bilhete de ônibus para Mellila e a acompanhá-lo até Ujda, para chegar à Argélia. Durante as sete ou oito horas de viagem vi a cabina se encher e se esvaziar de árabes, homens do deserto, velhos cansados, mulheres com seus filhos, adolescentes falantes... ele com sua Leica, tomando imagens sem parar, closes de nossos companheiros de viagem, panorâmicas das paisagens gradativamente mais áridas... Meknés foi a última parada urbana e também a enxurrada final de passageiros a se espremer nos espaços internos do trem. A espontaneidade de meu amigo granjeou o sorriso nas pessoas, que facilitavam sua dificultosa movimentação pelo vagão, com seu aparato fotográfico. Tinha gastado mais de um rolo quando a viu. Ela estava de pé, observando o nada pela janela do corredor, a atenção fundindo-se com o horizonte. Ele permaneceu por instantes em estado de estupor, adentrando a cabina, trêmulo... e balbuciou, A pérola do deserto está aqui! Logo me puxou e a indicou discretamente, era de fato a mulher de incrível beleza, na flor dos seus dezoito anos, vestida com um traje de seda cinza escuro, que lhe adornava elegantemente os braços, o tronco e as pernas, até o tornozelo...
Possuía um xale colorido que lhe protegia a cabeça e escorria para o pescoço em uma ou duas voltas, com uma das extremidades delicadamente pendente no ombro. Ele estendeu-me sua Leica, a mensagem subliminar evidente, Fotografe-a para mim! Jamais o vira assim antes, fora de si, contido pelo encanto magnético de uma mulher inesperada do deserto, paralisado nas atitudes, em meio à multidão de humildes trabalhadores. A mulher recostada na porta da cabina vizinha posou imóvel, sabendo-se fotografada. O trem sacolejou antes de uma parada na terra de ninguém, onde muitos desembarcaram. Abriu-se pela primeira vez espaço na cabina para sentarmos e conversarmos adequadamente sobre a viagem, mas após um curto espaço de tempo, ainda inquieto, ele ergueu-se e colocou-se no corredor, ao lado de sua musa. Não ouviria mais sua voz até o conclusivo adeus amigo, na parada em que desceram para os confins do deserto. Coube-me desvendar o nome do lugarejo, duas dúzias de casas esparsas nas planuras quentes do pré-Saara. Um advogado de Fez, sentado ao meu lado, solucionou a dúvida, proferindo a palavra desconhecida: Uidamlil.
Não me restou alternativa senão concluir a viagem até a Ujda que não procurava, e, contagiado pela irreverência de meu amigo, lancei-me para além, por caminhos que se confundiram com quimeras, desvelando as belezas e cruezas de um movimento errático que desnudaram minha incompletude humana. Numa entrega sem qualquer receio com os acasos, acompanhei caravanas de reguibas, ziguezagueando por desertos, não só mercadejando peles e especiarias de todos os tipos, como acampando ao relento, em meio aos bandos tuaregues. Acolhia-me o lume dos fogaréus noturnos, cujo estalar das brasas despertava a sonolência e o descanso profundo. Não raro, deixei-me embalar pela sonoridade de seus instrumentos e de suas canções, que realçavam a magia daquelas latitudes tão silentes quanto esquecidas. Suportei o sol caudaloso das caminhadas sorvendo a água dos cantis de tripas de camelos e sobrevivi à base de pão e tâmaras secas. Foi ao cabo de uma noite de completa libertinagem, nos confins do Sahel, que delirei com danças tribais embaladas por melodias de Nick Cave.
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