para os Racionais MCs
A noite está entregue ao lixo, aos primeiros seres disformes em seus andrajos e que, sob o silvo do vento frio, vagam à deriva pelas ruas agora mais negras, em sintonia com o surgimento das cortesãs desgarradas. Os seres diurnos, oficiais, se retiraram exaustos para os abrigos aconchegantes. A noite aprofunda o abandono e a paisagem perde a mobilidade desenfreada, e aguarda os acontecimentos. Não há mais do que um movimento vago que aos bocados ganha dimensão, pelos cantos e pelos vazios, nas calçadas, nos becos, por trás dos monturos de dejetos acumulados, por sob a penumbra, onde os cães farejam o próximo desjejum. Articulações lânguidas, palavras ladradas, insones, são os seres abissais, personagens miseráveis que se insurgem em sinuosa e discreta avalancha, provenientes de nenhum e de todos os lugares, com o propósito de imprimirem suas marcas sem um registro definido.
Assim o espaço público ressurge como reduto do restolho social, reverberando rondas cuja dor já não conta mais, ensejos desairosos que se perdem no breu da miserabilidade, rumor abafado que redefine as regras do contrato social. Por mais cruel que sejam as condições, os novos donos do espaço não desistem e retornam e se estabelecem e demarcam territórios, sem necessidade de subterfúgios ou de buscas atormentadas, encarnando seus rituais secretos, obscuros para a civilização do capital. Não lamentam a ausência da agitação das ruas, do brilho do sol, do soslaio indigesto, da ganância aflitiva, e por isso não lastimam a fuga de semelhantes tão diferentes, que no despertar da aurora renovarão o embate da vida miúda, vivenciando ainda uma vez a expectativa de uma jornada bem sucedida na metrópole.
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