26 junho 2009

Ao som de Charlie Haden



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A mulher de olhos de um azul oceânico não estava bem na última vez em que a vi. Encontrei-a no saguão, sentada em sua cadeira de rodas, aguardando o filho que tardava a chegar. Seus olhos já não eram convidativos, embora sua expressão continuasse de uma bondade infinita. Tinha pressa, ia para minhas aulas diurnas, mas havia algo com aquela mulher que combinava com a luminosidade daquela manhã, intensa, sublime, que me fez permanecer. Seu sorriso se antecipou às palavras corriqueiras, como está, o que tem feito, pronunciadas com certo incômodo. Segurei-lhe as mãos suaves, envelhecidas, e tive o impulso de marcar a entrevista que há tempos desejava fazer, para falarmos sobre...

Ela de fato não estava bem. As pessoas caminhavam a passos apertados do lado de fora, em função do trabalho, das tarefas intermináveis do cotidiano. Homens e mulheres em transe, bem vestidos, solitários, necessitados de suas mesas. O encanto da manhã se lhes escapava, com as feições graves voltadas para o chão. Desejava me submeter àquela luz radiante que realçava o colorido das coisas e que inundava o mundo. Maria, de sua parte, seguiria aguardando pacientemente o filho que não chegaria. Suas mãos inocentes, sem forças, convidavam a reviver os momentos decisivos por elas emoldurados. Pensei nas cartas de amor, manipuladas com ternura. Suas mãos, agora apostas no colo, descarnadas, desejando apenas repousar. Em comunhão com elas, alinhava-se o corpo frágil, esse insólito filete de alento que sustentava a serenidade de uma vida feliz. Maria vivenciava seu momento de plenitude e ocaso, sem dor ou tristeza, então permaneci um pouco mais ao seu lado.

A manhã magnífica se estendeu indefinidamente, embalando reminiscências e presságios.


22 junho 2009

Considerações acerca de J.P.Foster


Após despertar de seu sono repousante, J.P. Foster dirige-se ao banheiro para a higiene pessoal e uma boa ducha. Em seguida, veste-se com a ajuda de seu valet de chambre e após um último toque no nó da gravata, encaminha-se até a mesa na sala de jantar, onde aprecia o humor do dia pelas amplas vidraças, bem como a magnificente paisagem da zona sul. Entre um e outro contato em seu celular, normalmente com investidores, empresários e integrantes de seu staff, toma o desjejum natural à base de vitaminas e frutas exóticas. Um dos empregados lhe proporciona o acesso aos jornais pelo seu notebook, onde se deleita com as fofocas sociais pelo mundo. Nada de esportes, quando seu cavalo não compete ou perde o páreo no domingo. Outros dois empregados se revezam colocando e retirando os pratos de fina porcelana, servindo os sucos nas esplêndidas taças de cristal da Boêmia.

Ao fim e ao cabo de seu desjejum solitário (quando a mulher descansa no apartamento da Promenade des Anglais, em Nice), levanta-se e dirige-se para a cobertura, onde um helicóptero o aguarda. O transporte lhe poupa os dissabores do engarrafamento e em seis minutos, ele e seus seis seguranças desembarcam no prédio da sede do conglomerado, no centro da cidade. Esta passagem do áulico e seus sequazes ocorre por volta das nove horas e ao entrar no elevador, J.P. Foster já está escoltado pelo seu Número Três, que lhe entrega o resumo dos números das bolsas e dos negócios na Ásia, fechados minutos antes. Caminha determinado, irradiando energia, os passos decididos ressoando pelos corredores, enquanto dispara telefonemas despejando diretivas para seus diretores e parceiros pelo mundo, até alcançar a entrada de seu escritório, onde o aguarda sua jovem secretária, sempre sorridente. As portas se fecham e a partir daí são trinta ou quarenta minutos incógnitos.

Ao serem abertas novamente, J.P. Foster desponta com uma expressão morna, não se sabe se pela expectativa dos encontros agendados pela manhã, ou se pelos extenuantes minutos passados com sua prestimosa assistente. Ao longo da jornada não mais abandona a sala da presidência, onde se reúne com seus assessores e gerentes de áreas específicas. Também é ali que recebe personalidades dos negócios, prefeitos, governadores e até mesmo presidentes de nações, sem abandonar a conexão via satélite com o mundo, atento a qualquer nova oportunidade. Reitera com o Número Dois a necessidade de ousar nos investimentos, expondo maneiras de abordagem incisivas. Fui um dos assessores do Número Dois durante quinze meses - disse Stuart B., hoje importante executivo em Chicago - e participava das conversas de cúpula... J.P. Foster gostava de se referir às divisões panzer alemãs, movimentações táticas, penetrações em cunha, surpresa no ataque... esses termos militares que funcionam bem como retórica no mundo dos negócios...

Ao final de cada dia de gerenciamento de seu conglomerado, J.P. Foster retira-se para a cobertura acompanhado de seus seguranças, onde toma o helicóptero de volta para seu triplex. Nesse momento, sua expressão pastosa se torna indiferente, quase bovina... como se seu mecanismo interno se desligasse... comentou José Teobaldo da Silva, um de seus importantes colaboradores, demitido após dezesseis anos de intensa convivência profissional. A volta para casa sempre foi um acaso melancólico... confessou um outro ex-colaborador, Frederick Hansen., hoje um magnata e proprietário de cavalos no mesmo haras onde repousam os puros-sangues de J.P. Foster. Para ele o tempo dos negócios não teria interrupções determinadas por convenções sociais... seu pensamento era que cada um deveria ir até onde bem desejasse, sem madrugadas ou fins-de-semana para repouso, concluiu Hansen sua resposta, ao ser indagado sobre o que entendia por 'acaso melancólico'.

Uma coisa é certa, não se verá J.P. Foster aparecer na grande mídia justificando ou promovendo sua ‘Weltanschauung’. Todavia, a ampla rede de proteção e marketing nem sempre se mostra inviolável. O influente articulista Alberto Gusmão, em uma de suas crônicas recentes, destacou a personalidade ‘constrangedora deste magnata irresistível’, salientando no final que, (...) para J.P. Foster, a cidade, seus habitantes, a vida mundana e os rituais cotidianos não passam de uma abstração longínqua, desnecessária e por isso mesmo desprezível.



20 junho 2009

Sobre a mediação inconsequente


Ainda uma vez os temas oriundos da América Latina passam despercebidos pelo oligopólio midiático constituído por aqui. A bem da verdade, e por mais paradoxal que pareça, nada nos separa mais do que a proximidade com esse oligopólio midiático. Nada nos fragiliza e nada nos assusta mais do que a naturalidade editorial do discurso da mídia corporativa. Para entendermos a constituição desse movimento, seria necessário entrarmos em detalhes que fogem ao objetivo desta postagem.

O que talvez seja importante destacar no momento é o duplo objetivo do oligopólio: difundir notícias amenas e objetivar lucro. E para alcançar esses dois objetivos, claro, eliminam (desconsiderando da pauta) todas as possíveis formas de resistência. Falo principalmente das formas mais dinâmicas de resistência coletiva, que aqui ou ali surgem como alternativa para o mainstream adocicado do pós-modernismo.


O oligopólio midiático eliminou há tempos a paciente elaboração de conceitos, abraçando o imediatismo espetacular, a celebridade, o frugal. Em outras palavras, a notícia, o entretenimento que tragam resultado ao investimento, que resultem em bom negócio. Falar da greve da USP ou da matança dos indígenas no Peru são temas ‘inconvenientes’... Melhor mostrar a bunda da mulher melancia ou especular sobre a barriguinha da Gisele Bündchen... tudo recheado com muito futebol e novela. O importante é a degustação fácil, como diria Bonner, ao alcance da família Homer.


Acabamos afastados das idéias construtivas (ou polêmicas) do mundo, ao passo que somos seduzidos pelas delícias efêmeras, no mais das vezes descartáveis. Esgarça-se a dimensão ética nas intermediações da realidade, sobrepondo-se a dimensão estética, em que tudo vale – e óbvio, tem o seu preço.


Nesse contexto, temos a América Latina transformada em galhofa, sem importância ou peso no mundo veloz, ágil e enxuto das metrópoles globais, e por isso representada em matizes jocosos, dentro de um registro de que nossa infinita bondade e atávica incompetência nos oferece a cruz do sofrimento, assim como o infortúnio pela inaptidão. Ao contrário, quando a notícia tem como tema a realidade estadunidense, europeia e asiática (especialmente nos países industrializados, Japão, China, Coréia) cola-se o discurso de respeitabilidade, de valorização à cultura da racionalidade tecnológica. É como se, correndo atrás de coelhos, poderíamos vislumbrar as saídas para nossas angústias...

Pois assim se edifica um padrão de qualidade. Nada de Chile ou Argentina, e quando é Venezuela, Equador ou Bolívia, a análise jornalística desaparece para dar lugar ao chiste preconceituoso, a avaliação desairosa, seja contra o leão de chácara Hugo Chávez, contra o cantor Correa, ou contra o índio Evo Morales. Desrespeito e intolerância cansativamente explícitos, persistentes, como se a insistência na condenação fosse aos poucos sinalizando às pessoas que todo nosso sofrimento e infortúnio se devem às políticas adotadas por esses governantes... 

Firmes nesta linha de análise, os oligopólios midiáticos subestimam a compreensão popular, produzindo uma mediação ficcional em relação à realidade cotidiana... Os recortes de edição querem impedir uma consciência crítica alternativa, de ruptura, obviamente porque isso não faz parte do negócio... porque a consciência crítica não tarda a questionar, seja no íntimo silencioso de cada reflexão, seja na amplitude das mobilizações sociais.

Não existe, para a vanguarda da modernidade líquida, qualquer consideração (ou quem sabe até conhecimento) pela história social de nosso continente, uma longa história feita de magia, sangue, luta, expropriação. Venezuela ou Bolívia, para tomarmos os exemplos mais vilipendiados pelo oligopólio midiático, não foram levadas à pobreza e ao subdesenvolvimento pelas classes populares, pelos Chávez e Morales, mas pelas classes dominantes de todos os tempos, que com seu modo peculiar de expropriação, locupletou-se com os dividendos de nossa riqueza.


Se prevaleceu o despotismo até aqui, que seja bem-vinda a construção de novas relações sociais, baseadas nas aspirações do ser humano e não na difusão da ganância a qualquer preço. Observar essa transição com um mínimo de equilíbrio seria um requisito fundamental para que os meios de comunicação começassem a compreender não as necessidades do mercado, mas as circunstâncias que regem o cotidiano da população. Isso significaria, deixar de se preocupar com a nova ordem econômica, e trazer (de volta) o debate para a análise dos nossos anseios, dos nossos problemas, das nossas virtudes.


E significa também dizer que já não basta se satisfazer com o lucro editorial, calcado em notícias amarradas por interesses cartoriais, análises socioeconômicas fantasiosas, em que os fins quem sabe justifiquem os meios. Que se considere, pois, a dolorosa ressaca que o descontrole do capitalismo tardio impôs ao mundo nos últimos meses...


Se os veículos de comunicação atrelados ao oligopólio midiático não aprenderam politicamente com os trágicos acontecimentos da louvada nova ordem liberal (conduzidos por um bando inescrupuloso de global-players, cujas fórmulas de eficiência foram jogadas na lata do lixo), estarão condenando a credibilidade da mediação entre o cidadão comum e o mundo.

A essa altura, não há motivo para se pensar apenas na mídia corporativa: toda e qualquer mídia despreocupada com a mediação séria e consequente dos fatos, não terá forças para seduzir quem quer que seja, nem para lucrar o que quer que seja.



15 junho 2009

Tempos difíceis




para os Racionais MCs

A noite está entregue ao lixo, aos primeiros seres disformes em seus andrajos e que, sob o silvo do vento frio, vagam à deriva pelas ruas agora mais negras, em sintonia com o surgimento das cortesãs desgarradas. Os seres diurnos, oficiais, se retiraram exaustos para os abrigos aconchegantes. A noite aprofunda o abandono e a paisagem perde a mobilidade desenfreada, e aguarda os acontecimentos. Não há mais do que um movimento vago que aos bocados ganha dimensão, pelos cantos e pelos vazios, nas calçadas, nos becos, por trás dos monturos de dejetos acumulados, por sob a penumbra, onde os cães farejam o próximo desjejum. Articulações lânguidas, palavras ladradas, insones, são os seres abissais, personagens miseráveis que se insurgem em sinuosa e discreta avalancha, provenientes de nenhum e de todos os lugares, com o propósito de imprimirem suas marcas sem um registro definido.

Assim o espaço público ressurge como reduto do restolho social, reverberando rondas cuja dor já não conta mais, ensejos desairosos que se perdem no breu da miserabilidade, rumor abafado que redefine as regras do contrato social. Por mais cruel que sejam as condições, os novos donos do espaço não desistem e retornam e se estabelecem e demarcam territórios, sem necessidade de subterfúgios ou de buscas atormentadas, encarnando seus rituais secretos, obscuros para a civilização do capital. Não lamentam a ausência da agitação das ruas, do brilho do sol, do soslaio indigesto, da ganância aflitiva, e por isso não lastimam a fuga de semelhantes tão diferentes, que no despertar da aurora renovarão o embate da vida miúda, vivenciando ainda uma vez a expectativa de uma jornada bem sucedida na metrópole.


14 junho 2009

Manuel Bandeira (2)





Tema e variações


Sonhei ter sonhado 
Que havia sonhado. 
 Em sonho lembrei-me 
De um sonho passado: 
O de ter sonhado 
Que estava sonhando. 
 Sonhei ter sonhado... 
Ter sonhado o quê? 
Que havia sonhado 
Estar com você. 
Estar? Ter estado, 
Que é tempo passado. 
 Um sonho presente 
Um dia sonhei. 
Chorei de repente, 
Pois vi, despertado, 
Que tinha sonhado.



13 junho 2009

Manuel Bandeira


Lua 

  A proa reta abre no oceano 
Um tumulto de espumas pampas 
Delas nascer parece a esteira 
Do luar sobre as águas mansas. 
 O mar jaz como um céu tombado, 
Ora é o céu que é um mar, onde a lua, 
A só, silente louca, emerge 
Das ondas-nuvens, toda nua.



12 junho 2009

Fragmentos (2)



Os bons homens despertam para o trabalho... O que veem, o que pensam... o que querem?... Divagava, enquanto os via começar mais uma jornada de labuta. Não perdia um movimento daquela torrente de bravos, que se mobilizava em sentido contrário, homens rústicos em suas bicicletas ou a pé, marchando decididos rumo aos seus afazeres, com a expressão altiva desenhada nas faces marcadas por uma vida comum, cujo parâmetro inescapável era a rotina, as mesmas atitudes diárias, refeitas com a mesma dedicação de pai para filho, raramente quebradas pela angústia da existência, enfim, corpos que passavam, imprimindo a dialética de uma fugacidade permanente, pois que diuturnamente reproduzida... E a paisagem ao redor se erguia serena, um armazém, um boteco mais adiante, um açougue abrindo as portas, a vida renascendo e dando vida ao lugar, desenrolando-se em sua beleza, tão incógnita quanto vigorosa. O dia nascia com os pássaros voluteando no céu de um azul incólume e com aquele movimento humano, regido pela discrição. Ângelo portava o peso da metrópole, o som 'Up to my neck in you' ressoando pelos neurônios, enquanto usufruía o frescor da cena, deleitosas imagens impressionistas; no momento, não passava de um olhar intruso que fustigava a calma provinciana, um desconhecido que caminhava ao sabor do acaso, sem despertar suspeitas a não ser miradas generosas, que de quando em vez se deslocavam do foco no caminho. Tudo parecia se acomodar ao caráter da visita inesperada de Ângelo, uma aparição sem questionamentos em meio a um universo em equilíbrio e dessa forma, tudo conjurava por uma permanência instigante, ensejando-lhe um “seja bem-vindo, forasteiro”...
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07 junho 2009

Cortázar e a poesia



“(...) de certo modo a linguagem íntegra é metafórica, referendando a tendência humana à concepção analógica do mundo e o ingresso (poético ou não) das analogias nas formas de linguagem. Essa urgência de apreensão por analogia, de vinculação pré-científica, nascendo no homem desde suas primeiras operações sensíveis e intelectuais, é a que leva a suspeitar uma força, uma direção de seu ser até a concepção simpática, muito mais importante e transcendente do que todo racionalismo quer admitir”. (pg. 364)

“Por que é a imagem instrumento poético por excelência? (...) Por que anseia o poeta ser em outra coisa, ser outra coisa? O cervo é um vento escuro; o poeta, em sua ansiedade, parece esse cervo saído de si mesmo, que assume a essência do escuro vento”. (pg. 380)

“O poeta e suas imagens constituem e manifestam um só desejo de salto, de irrupção, de ser outra coisa”. (pg. 381)

“Em verdade, para o poeta angustiado, todo poema é um desencanto, um produto desvinculado de ambições profundas mais ou menos definidas, de um balbucio existencial que se agita e urge, e que só a poesia do poema (não o poema como produto estético) pode, analogicamente, evocar e reconstruir”. (pg. 381)

“Mas a poesia é canto, louvor. A ansiedade de ser surge confundida em um verso que celebra, que explica liricamente (...) A música verbal é ato catártico pelo qual a metáfora, a imagem se libera de toda referência significativa, para não aludir e não assumir senão a essência de seus objetos”. (pg. 383/384)

“Todo poeta parece haver sentido que cantar um objeto (um tema) equivalia a apropriar-se dele em essência; que só podia ir-se até outra coisa e ingressar nela pela via da celebração”. (pg. 385)

“Mas formas absolutas do ato poético, o conhecimento como tal (sujeito cognoscitivo e objeto conhecido) é superado pela direta fusão de essências: o poeta é o que anseia ser (dito em termos da obra: o poeta é seu canto)”. (pg. 388)

“O poeta, mago ontológico, lança sua poesia (ação sagrada, evocação ritual) até as essências que lhe são alheias, para apropriar-se delas.” (pg. 389)

“O poeta se transpõe poeticamente ao plano essencial da realidade; o poema e a imagem analógica que o nutre são a zona onde as coisas renunciam a sua solidão e se deixam habitar (...)”. (pg.390)


(Tradução de excertos do texto original Para una poética, que integra o livro Obra Crítica/2, Buenos Aires: Punto de Lectura, 2004)



04 junho 2009

Prévert


Paris at night
Trois allumettes une à une allumées dans la nuit
La première pour voir ton visage tout entier
La seconde pour voir tes yeux
La dernière pour voir ta bouche
et l´obscurité tout entière pour me rappeler tout cela
En te serrant dans mes bras

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03 junho 2009

Um muro na Palestina


Resultado de imagem para muro construido na palestina



A partir de um cuidadoso trabalho de jornalismo investigativo (coisa rara por aqui), René Backmann, do Nouvel Observateur, desenvolve o tema principal de seu livro (Un mur en Palestine), a edificação de um muro de concreto (também denominado barreira), que isola assentamentos judaicos em terra palestina, chegando em certas partes a alcançar 9 metros de altura, com câmeras e outros dispositivos de segurança. Para os palestinos, trata-se de um muro de anexação, já que parcelas de seu território são incorporados na construção da barreira, sem data para devolução. A construção desse muro, ou barreira, prevê unicamente a segurança das colônias judaicas na Cisjordânia, estabelecendo um sentimento de segregação que em nada ajuda o processo de paz.

Abaixo, destaco e traduzo o depoimento de Netzah Mashiah, engenheiro encarregado de supervisionar o trabalho dos cartógrafos (os grifos são meus):


"Os políticos (...) não se cansam de discutir sobre o traçado da barreira. Por essa razão o primeiro ministro (Ariel Sharon) e o ministro da Defesa decidiram confiar o assunto ao exército e atribuindo-lhe um único objetivo: impedir a passagem dos terroristas palestinos e sua entrada em Israel. O problema não era saber onde passaria a barreira, sobre quais terras, mas a quem ela iria servir. E qual traçado seria o melhor para alcançar seu objetivo. Estas são as instruções que os responsáveis do projeto - todos militares - receberam no momento de começarem o trabalho. A barreira que você pode ver hoje construída foi elaborada pelo exército, aprovada pelo diretor geral do ministério da Defesa, o chefe do Estado Maior do exército, o ministro da Defesa e o governo. A fase seguinte consistiu em legalizar o procedimento das requisições de terras, por razões de segurança. Requisitar, isso não significa que nós nos tornamos proprietários das terras. Nós não as utilizamos além do tempo necessário para a missão atribuída à barreira: fazer desaparecer o terrorismo. Nós partimos do princípio de que essa barreira é provisória. E que sua existência depende da maneira que os palestinos se encaminharão para a paz. Ela pode portanto durar cinco minutos ou cinco décadas" (...)

Como podemos observar, as decisões são impositivas e supostamente revogáveis. Em nenhum momento houve predisposição por parte do governo israelense em discutir a situação com as autoridades palestinas. Além do que, é de se duvidar que as terras requisitadas sejam um dia devolvidas: nenhum atentado terrorista ocorreu nos últimos anos em território israelense, o que significa dizer, as condições para a devolução das terras requisitadas já estão dadas.

O livro é esclarecedor sobre temas como o processo de construção da barreira em si, a colonização judaica na Cisjordânia, a cartografia resultante após sua implantação (com quatro mapas em grande escala), as marchas e contramarchas da política de ocupação, o desenho de uma nova fronteira... Para nos informarmos sobre este descalabro silencioso de nosso tempo, penso que valha a pena ser lido.


Un mur en Palestine, por René Backmann, Paris, Folio Actuel, 330pg., 2006.



01 junho 2009

Vazio de propósitos


Os comunicadores do supérfluo estão por aí, presentes nos mais diversos meios de comunicação, atuando com toda a liberdade que o mercado lhes permite. Cacarejam, esperneiam, tripudiam, acariciam, com a pretensão de formarem a opinião pública, mas significando, de fato, um lamentável desvio da construção do espírito crítico da população. Esses indivíduos são a mais evidente prova de que, hoje, a palavra é dada para quem não tem nada a dizer. Ou para quem consegue fazer do discurso sedutoras peripécias inconsequentes. Somos informados por quem não assume o compromisso dessa responsabilidade, e que se empenha em satisfazer as exigências mercadológicas da empresa jornalística em que trabalha. Mais nada. 

Assim, vagamos sem esperanças, do big brother aos programas esportivos dominicais, dos editoriais políticos viciados aos jornais eletrônicos espetaculosos, onde o interesse maior é o índice de audiência, amealhando fatias de um público que se aliena e se apraz com cacarejos. Cabem aí todos os esforços para produzir e repercutir um vazio de propósitos. Lembro-me de um desses articulistas intocáveis da mídia impressa descrevendo uma paisagem nevada, que desfrutava de um rincão canadense. Em meio aos laivos de filosofia barata, expunha seu desânimo ao que entendia ser a bagunça da vida brasileira. Do conforto de sua hospedagem cinco estrelas, lamentava não termos passado pela experiência da guerra, como os povos do norte, pois assim, quem sabe, daríamos hoje mais valor às coisas...

Essa esquizofrenia é muito mais comum do que parece; é natural pessoas viverem em seu mundinho adocicado – bafejadas em grande parte por esses comunicadores do supérfluo – e acreditarem que nosso atraso ou nossa incompetência comunal se deve à falta de um sofrimento maior, como se ao redor delas nada de pútrido estivesse ocorrendo. A miserabilidade glauberiana anunciada como amalgama da temática do Cinema Novo, esgarçou-se de modo indecoroso e hoje as mazelas acumuladas ao longo de décadas de indiferença, fazem dos problemas sociais dos anos cinquenta e sessenta uma singela introdução da sua brutalidade.

À falta a compreensão social desse despautério, surgem simultaneamente as crônicas, artigos, comentários, palpites fora de lugar, falácias pretensamente sociológicas que não guardam qualquer relação com a realidade cotidiana. Pretendem funcionar como fábulas encantatórias, com um conteúdo chinfrim para amenizar o nada do momento... Esses comunicadores do supérfluo estão aí para galhofar o máximo possível, como a dizer de maneira provocante, “vejam como vocês são uns babacas...!”.

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