31 março 2025

Cenas marcadas pelo tempo


A bela capa

Saiu a capa final, e com ela o miolo revisado. Trata-se de meu mais recente livro, Cenas que se diluem com o tempo, a ser lançado em abril, ou no mais tardar, em maio. Editado pela Urutau, tem sido uma nova experiência em termos de publicação, um ganho em termos de qualidade profissional. Desde a preparação da capa, passando pelos cuidados com a revisão pelo acabamento do livro, e considerando as dificuldades em publicar com a editora (pelas chamadas regionais serem muito concorridas), tenho uma grande expectativa pelo resultado final. 

Já estamos no fim do processo de revisão, e o próximo passo será a edição em si. O livro conta com 144 p. e desta feita, sem prefácio. Considerava até dois meses atrás como o meu patinho feio, pois ali está reunido um conjunto heterogêneo de gêneros e formatos diferentes, pequenos e médios contos, crônicas ficcionais, relatos de viagem, um fragmento de diário, poesias em prosa, um esboço de roteiro e até mesmo uma curta peça dramatúrgica. Mas com o resultado da chamada, iniciei leituras de revisão e me dei conta de um prazer inesperado que a obra me proporcionou.

O conjunto reúne 56 textos, sendo 28 singelos, afetuosos, recordatórios e 28 tensos, ardilosos, dramáticos, sem prefácio. Optei por reunir textos avulsos, alguns guardados há anos, que deram uma curiosa e ao mesmo tempo harmoniosa consistência de coisas diferentes que consolidam uma obra. Um livro que descreve situações, circunstâncias definidas por um tempo passageiro, apreendidas ao sabor do momento e que se aos poucos se deixam diluir.



22 março 2025

Hackman, Gaza



Gene Hackman faleceu há poucos dias, juntamente com sua esposa. Este é um doloroso caso que pode se transformar em narrativa: dois idosos que moram isolados, praticamente sem contato com amigos e um deles (a esposa) falece e o outro (Hackman) tomado pela doença de Alzheimer, não sabe como reagir, ou como se virar, até que acaba fenecendo. Muito triste esse desfecho, considerando a cadeia de acontecimentos – a morte da esposa por hantavírus, sua incapacidade em reagir e buscar ajuda pelo avançado grau da doença. Um grande ator ganhador de dois Oscars, que marcou suas atuações pela presença cênica. Tinha uma grande admiração por seu trabalho, em especial no impactante Mississipi em Chamas, de 1988. No final, de nada valeu toda a fama e reconhecimento.

Israel volta a atacar fortemente Gaza, depois de dois meses de trégua, e deixa mais de 400 mortos. Como escrevi no posfácio de minha peça Terra Devastada, não haverá paz, porque não há negociação possível, considerando Netanyahu e Trump no poder. Ano que vem teremos eleições, e a pressão sobre a esquerda política só tenderá a aumentar. Até lá, Lula deverá se segurar porque é Lula, mas e depois? Paro por aqui, sigo para Santo Amaro.



03 março 2025

A amplitude de Ainda Estou Aqui


Foto de Greg Girard

Esse o Brasil, uma conjunção de formações díspares que não se alinham e no mais das vezes, se contradizem. Uma sociedade rompida que se constrói pela autofagia, onde os grupos mais fortes se estabelecem em detrimento dos mais débeis. Assim sempre foi e segue sendo, ainda que vez ou outra governos mais populares estabeleçam algum nível de desenvolvimento social. Leio Verdade Tropical, de Caetano Veloso com gosto, com uma defasagem de trinta anos desde sua escritura. Sua narrativa descreve o tempo todo o que se faz e o que se destrói em uma sociedade autoritária. O episódio de sua prisão, junto com Gilberto Gil, é de uma ignomínia absoluta, só mesmo produzida por um sistema ignorante até a medula, e que dispõe de poder.

O processo da detenção dos dois não difere da de Rubens Paiva e de tantos outros brasileiros. Lembro de Rubens Paiva em razão do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Moreira Salles, ter ganho o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro ontem. Uma festa coletiva, que tomou conta das ruas do Brasil, que demonstra a penetração que o filme teve nas várias parcelas da população. Mais de cinco milhões de pessoas só no Brasil assistiram no cinema Ainda Estou Aqui, propiciando uma compreensão muito clara do que significou a violência militar sob a ditadura, demolindo as falsas convicções de que o período foi de desenvolvimento e bem-estar.

O trabalho didático desse filme foi mais efetivo do que todo o processo de educação formal em 60 anos! Esclareceu, coletivamente, sobre os horrores da ausência de liberdade e de direitos civis. Talvez o ponto chave do sucesso foi uma narrativa que expõe a brutalidade de maneira indireta, sem a necessidade de conduzir o espectador às salas de tortura com a cadeira do dragão e as maquininhas de choques elétricos. E mais ainda: expor a sorrateira invasão domiciliar de uma família de classe média, quebrando sua estrutura com o sequestro e desaparecimento do pai. Tudo manifestamente decidido e conduzido nas entrelinhas do terror, sem rosto e sem finalidade.

Caetano e Gil foram sequestrados por terem participado de um show onde os artistas expunham a faixa famosa de Torquato Neto, Seja marginal, seja herói, sobre a reprodução de um corpo estirado no solo. A significação desse gesto superava a compreensão das mentes obtusas dos militares de plantão, que viam aí uma associação intolerável com propósitos subversivos. É provável que o tropicalismo e sua rebeldia cultural tenha incomodado as casernas, que na falta do que fazer, passaram a deter artistas. Os dois meses de prisão de Caetano produziram um terrível mal-estar depressivo, superado a custo mesmo no exílio em Londres. Espíritos sensíveis, que acusavam a dor e a violência recebida, sem uma pronta reação. Assim foi também com frei Tito, que não apenas foi detido, como duramente torturado, e que acabou se enforcando no exílio francês.

Eunice Paiva não se dobrou, embora tenha mantido um impressionante sangue frio no método que seguiu para denunciar a ditadura. Até onde pôde, lutou por saber do destino do marido, até que quarenta anos mais tarde, a partir dos relatórios da Comissão Nacional da Verdade, consegue finalmente a declaração de que Rubens Paiva tinha sido torturado e morto em dois dias, e seu corpo diligentemente desaparecido. Como ela, muitos não se dobraram ao longo dos anos.



26 fevereiro 2025

Carlos Fuentes e Nuestra Latinoamerica


Foto de Fred Herzog


De minha parte, segui de certo modo envolvido com a leitura de La Gran Novela Latinoamericana, de Carlos Fuentes, intercalando com a apreciação deste ou daquele ensaio sobre os escritores de Nuestra America que ele destaca. Uma leitura difícil de abandonar, seja onde for. Não saio de casa sem o volume, e lá estou sentado em qualquer canto, devorando de modo aleatório esta obra que, detendo-se nas idiossincrasias do imaginário, expande-se até nos encontrar no mundo real. 

Com alguns autores Fuentes demonstra um apaixonado envolvimento, e descreve suas obras com leveza, carinho e profundidade, expondo a força característica de seus signos. É assim, por exemplo, quando fala da obra de Lezama Lima e suas eras imaginárias, "se uma cultura não logra criar uma imaginação, resultará historicamente indecifrável", especificamente em Paradiso. De Roa Bastos e seu Eu, o Supremo, ou da Comala do impressionante Juan Rulfo, alinha a versatilidade dos seus aspectos mágicos. 

Assim, o painel apresentado em La Gran Novela... captura o leitor mais alheio à realidade latino-americana. Um painel que se monta e se torna mais atraente à medida que Fuentes avança deste para aquele autor, criando uma espécie de relação entre eles e reafirmando a matriz comum da solene história a que pertencemos, registrada pelo maravilhoso da grande novela latinoamericana. 

O texto sobre o nosso Machado - que ainda não li na íntegra - produz o seguinte comentário: "Machado de Assis, Machado de La Mancha, o milagroso Machado, é um pioneiro da imaginação e da ironia, da mestiçagem e do contagio em um mundo ameaçado cada dia mais pelos verdugos do racismo, da xenofobia, do fundamentalismo religioso e outro, implacável fundamentalismo, o do mercado".

Pois como não pensarmos nossa ficção latino-americana como uma apropriada metáfora de nossa realidade do passado e do futuro? 

(Diários, julho/2012)





18 fevereiro 2025

Reflexões de botequim


A lua da Bela Vista

Mais para além, mais para além da mera intenção em dizer que se está feliz porque, afinal de contas, é um otimista. Assim, Rubem Montillo passou a refletir, enquanto comia sua fatia de pizza, no balcão da Santa Clara. Se a alegria se deve ao caráter quietista do otimismo, a isso em que as coisas se resolvem por uma saudável iluminação do destino, não duvido que logo essa bolha explodirá em lamurioso pessimismo. O otimista convicto não alardeia uma apreensão colorida de mundo para o mundo. Soa piegas e depois, bem, depois o otimismo não é uma graça, mas uma espécie de disposição natural que mobiliza para a ação. Supõe a intervenção humana, consciente, racional, destacando o essencial, a compreensão do compromisso. O fato de estar propenso a por si só revela o estado de espírito otimista por excelência, sendo desnecessário encontrar razões para decliná-lo como uma força mítica.

Desta forma, uma frase como hoje o dia está belo, sem umidade excessiva, sem ruídos, de uma luminosidade suave e morna, e de outra parte sinto uma disposição para escrever, para arrumar minhas coisas, de sorrir e clamar para as pessoas o quanto a vida é bela..., talvez não seja a banalidade desprezível de um pensamento da revista Caras, mas inevitavelmente o início de um torpor indigesto, propondo certo otimismo para terminar no vazio. Um torpor fútil, no caminho da prevalência do supérfluo. As derivas de Montillo esbarraram em uma frase que recordou de Benedetti, o pessimista é um otimista bem informado... Talvez bastasse para distrair-se em seu devaneio.

Mas prosseguiu, avaliou que na pós-modernidade não existe disposição para que as proposições elaboradas sobrevivam. Sem sustentar um olhar apreciativo e condescendente, subsiste à deriva esse ser-aí liquefeito, assustado, preconceituoso, esperando cada qual o seu Godot. Lembrou-se de uma frase de Bauman, não há sonho comunitário vigente, mas a sensação de segregação e exclusão... As amarras típicas de nosso tempo, que arremetem cada vez com mais força ao isolamento e à intolerância, sob a proteção dos muros salvadores. A relação cotidiana pode ser considerada como uma bênção, sempre com conforto e proteção entre os iguais. E Rubem Montillo pareceu chegar a uma conclusão momentânea, antes de pedir a segunda fatia: nesse ambiente asséptico desponta o otimismo pueril dos indolentes, que nada acrescenta a não ser desilusão e miséria.



11 fevereiro 2025

Letra e Alma


Paulo Cesar Pinheiro

Assisti ao maravilhoso depoimento de Paulo Cesar Pinheiro no documentário Letra e Alma, de Cleisson Vidal e Andrea Prates, no canal Curta. Sua fala serena nos remete a uma intensa atividade musical, produzindo parcerias com os grandes compositores de sua geração e das anteriores, de Pixinguinha a Baden Powell. Cantado em verso e prosa por magníficas intérpretes, de Clara Nunes, sua esposa por oito anos, a Elis Regina. Enfrentou a ditadura com coragem, compôs maravilhosos libelos desafiadores, como Pesadelo, em parceria com Maurício Tapajós, Quando o muro separa, uma ponte une/ Se a vingança encara, o remorso pune/ Você vem me agarra, alguém vem me solta.../ Se a força é tua, ela um dia é nossa/ Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando... Estava cansado de fazer letras com metáforas para que a censura não o censurasse, então propôs a Tapajós que fizessem uma canção sem meias palavras. Por incrível que pareça, em um primeiro momento, ela foi liberada, mas logo a seguir, pela grande adesão popular, censurada. 

Censura medíocre, de tão surreal, ou o inverso, surreal de tão medíocre. Sua linda composição, Sagarana, uma singela homenagem ao escritor que admirou profundamente, A ver, no em-sido/ Pelos campos-claro: estórias/ Se deu passado esse caso/ Vivência é memória/ Nos Gerais... Não adiantou, acabou censurada. Sem entender o motivo, afinal não se tratava de uma letra politicamente engajada, dirigiu-se até o escritório dos censores. Eram dois senhores de baixa formação, e o Poeta expôs seu argumento, era apenas uma canção homenagem a João Guimarães Rosa, grande escritor da academia brasileira de letras, que tinha uma linguagem popular, sertaneja, sem qualquer intenção política e coisa e tal... Os homenzinhos pensaram, olharam-se e um finalmente respondeu, manteremos a censura. E por qual razão, perguntou o compositor, ao que responderam, "pode ser uma letra em código".  

Mas o que me encantou em seu depoimento foi o convívio com os avós. Moravam em uma tapera, em Angra dos Reis, e ele sempre que podia ia lá para ficar dois, três meses. Não havia água encanada, luz, nenhum conforto. Os amigos comentavam sobre a pobreza dessa vida, ao que Paulo Cesar respondia que fora a experiência mais rica de sua vida. A avó, india de uma tribo Guarani, que ainda existe naquela região, saía de casa e voltava com raízes e folhas medicinais. O avô cantarolava belas canções, e quando Paulo Cesar lhe perguntava de onde ouvia aquelas sonoras composições (não havia rádio na casa), ele respondia, "ouvia do mar". Nunca viu dinheiro nas mãos de seus avós, praticavam literalmente o escambo, trocavam peixes por outros mantimentos, e assim foi. Paulo Cesar Pinheiro comentou que foi essa convivência natural, simples, poderosa, que o ajudou a superar o uísque e as noitadas da vida urbana. Esse aprendizado foi decisivo para retomar o caminho da vida e manter-se na beleza de suas composições.


07 fevereiro 2025

Os mal-entendidos




Um pouco abaixo, no meu constante campo de visão da janela, observo os jovens estudantes no imenso pátio em frente. Já não consigo precisar suas fisionomias, ou mesmo os detalhes de seus corpos, de suas vestimentas. Sei que estão ali, no intervalo de mais um turno de aulas, circulando por entre os cadeirões, reunidos em pequenos grupos conversando, ou solitários, metidos na fluidez de seus celulares. Para mim, basta apreciá-los e lembrar dos momentos de sala de aula, uma boa lembrança cujo ritual não tenho qualquer desejo em retomar. Estou bem aqui, com minhas rememorações, um bom copo de uísque e a visão que tenho deles. Atrás de mim, as estantes abarrotadas de livros me demandam para outros desafios, mais intrigantes, menos cansativos. Há livros esparramados pela grande mesa da sala, não me incomodo, gosto de retomá-los aleatoriamente. Livros, cadernos, papéis avulsos com resumos de leituras ou esboços de narrativas. Na outra ponta, o material que Jessica deixa para quando vem aqui. Tem sido muito bom trabalharmos juntos, ela oficialmente, ainda vinculada aos semestres letivos, aos trabalhos para congressos. E eu, envolto principalmente com a construção da peça dramatúrgica, recuperando a memória de meu pai. Ele aparece como personagem principal, dialogando com seu pai - meu avô, que mal conheci. Estão vivos e estão mortos, as cenas se confundem nessas dimensões, e nesse componente metafísico, não consigo me distanciar da incredulidade. A dúvida surge como substrato fenomenológico, o que de fato é visto e como se estabelece a relação existencial. O avô morto que não quer se retirar sem antes justificar-se por uma vida desregrada, um filho que não tem o que dizer senão compreender o que viveu. Outros personagens que se aproveitam da situação para igualmente justificarem os mal-entendidos. Persistir no desentendimento pode ser uma forma de interpretar os fatos, e nesse sentido, os argumentos se sucedem. É um tempo de recuperar memórias, tornando-as narrativas, e vejo que a essa altura da vida, as memórias escasseiam e não dão conta da sua abundância descritiva.



06 fevereiro 2025

Cenas que se diluem com o tempo


A capa que não é a capa

 

Ao todo, temos 56 narrativas sobre os acontecimentos cotidianos, que na primeira metade da obra descrevem um conjunto dissonante de expectativas, desejos, gestos harmoniosos, delineados pela condição humana; e na segunda metade, narram os tons mais sofridos, as angústias e tensões que nos inquietam. Instantes observados, apreendidos, descritos amorosa ou dolorosamente: a rudeza da noite no espaço urbano, um passeio a beira-mar, o sepultamento da avó, a carona na companhia de um líder muçulmano, a complexa relação entre pai, filho e avô, o arrependimento após a contratação de um pistoleiro. Nada que pretenda ir além das convenções silenciosas, ou da mera possibilidade do imaginário. Temos aqui uma sucessão de narrativas que testemunham a presença do ser humano como protagonista de seus atos.

https://benfeitoria.com/diluem.



31 janeiro 2025

Enquanto isso


Café e Literatura

Soube que Estela se foi. Schuman passou por aqui e de modo bastante sucinto, talvez por estar incomodado com alguma reação minha. Não ficou nem para um café. Foi quando Jessica me perguntou quem era Estela, que me dei conta que não me recordava dela com precisão. Quis confirmar com outros amigos que trabalhavam no mesmo emprego, como Rosaldo e Fonseca, mas eles não se recordavam dela. Ou melhor, Claudemir até se recordou vagamente, mas disse que Estela era de outro setor, do jornalismo, e que nunca tinha mantido contato com ela. Fiquei a lamentar a dolorosa displicência dos amigos e o meu completo apagamento. Seu nome não me era estranho, nem sua atividade paralela, como delegada sindical: participava das reuniões de lideranças, das assembleias dos dissídios salariais e nos trazia informações da cúpula dirigente. Era o que Schuman tinha me dito, mas não me lembrava de sua aparência, de sua presença junto de nosso grupo de amigos. Havia um número grande de colegas que participavam fortemente da política interna da empresa, era um bom tempo para isso, saíamos do período da ditadura, queríamos mudanças. Atrás de nós, vinham todos aqueles que também queriam coisas diferentes e acreditavam em nossas ações. Comecei a recordar de muitos representantes sindicais, que se alternavam à medida que fracassávamos em nossos pleitos. Fora isso, havia a perseguição encoberta por parte da direção da empresa (quando não por parte da própria direção sindical) o que impunha atitudes furtivas, firmes e coletivas, porém cuidadosas. O fato de Estela ser do setor de jornalismo fazia com que atuasse como os demais, com força nos princípios, mas igualmente com bastante discreção institucional e, bem, isso era assim com todos. Eram muitos rostos anonimos que desfilavam diante de mim, rostos de fantasmas, de jovens que não existiam mais. Mas Schuman deve ter tido uma razão subjetiva para vir me informar e cá estou, tentando escarafunchar minhas relações daquele tempo. Foi difícil ouvi-lo lamentar, em meias palavras, que não compreendia como eu havia esquecido a importância de Estela.



28 janeiro 2025

O chatbot chinês


Em uma parede de Nápoles


O mundo segue sob o estrebuchar de uma direita desvairada, que regurgita ameaças sem um princípio sensato, sem uma virtude objetiva. Promove em escala mundial o ódio, a segregação, o individualismo, o medo, a desrazão. Não foram apenas os decretos assinados por Trump em sua posse, por si só um gesto simbolicamente arrogante, mas os ecos dessa empáfia que percorreram o mundo, formatados nas declarações de Milei em Davos contra a pluralidade de gênero, e mais recentemente, em repetição às diatribes de Trump em relação ao México, prometendo construir um muro na fronteira com a Bolívia, um muro de 200 metros, cuja serventia é desconhecida. Como Trump e Milei, espalham-se os falastrões, pequenos, médios, grandes, com o entusiasmo de promover um radicalismo neoliberal do qual não assumem as consequências éticas, políticas, sociais, e que ali na frente se encontra com os dogmas fascistas. Somos um planeta que adoece sob a destruição por um capitalismo demente, que produz em escala jamais vista antes bilionários na medida que empurra milhões de seres humanos para a vala comum. A trégua em Gaza é um acontecimento bestial, pois a partir desse momento artificial de paz, podemos acompanhar as dezenas de milhares de pessoas regressando aos seus lares, sobreviventes, caminhando e levando seus corpos sob os escombros. Nada sobrou, e muitos foram mortos sem misericórdia. O objetivo principal, o resgate dos reféns israelenses, só ocorre agora com as negociações, que podiam ter sido encetadas no começo. Ruínas, morte, destruição, isso me parece a imagem desse capitalismo pernicioso, que blasfema e se militariza, enquanto fenece. Uma pequena empresa chinesa golpeou em quase 1 trilhão de dólares as poderosas companhias estadunidenses do setor de tecnologia ao desenvolver um chatbot bom e barato. Trump vai espernear, mas o que pode fazer, sancionar os chineses? Não vai dar certo. Gastar um dinheirão a mais? Pode ser. Bater na mesa como um valentão? É provável, mas isso não impedirá que ele entenda o movimento dos mercados (que ele tanto ama) em torno das melhores oportunidades.



21 janeiro 2025

Os ninguéns, os nenhuns, os ignorados


foto de Todd Webb


Sueñan las pulgas con comprarse un perro; y sueñan los nadies con salir de pobres

Los nadies, Eduardo Galeano.


Desde ontem, os números apontam mais de 100.000 visitas acumuladas desde o início do blog, há mais de 16 anos. Não é um número exuberante, se considerarmos que a média foi em torno de 17 visitações diárias. Na verdade, não me impressiono pela quantidade, mas por alcançar uma marca redonda e significativa, 100.000. De onde procederão esses números, quem são essas visitações, faz sentido considerar os dados expressos friamente pelo Google, que relaciona a presença de países tão discrepantes como Singapura ou Lituânia? Seja como for, está aí a marca, e desse imenso conjunto de visitas, por certo existem leitores reais e sensíveis, que dedicam alguns instantes para a leitura dos textos. 

Ontem tomou posse Donald Trump, pela segunda vez. Se a sua primeira passagem revelou-se um tempo doloroso e nada inspirador, deste vez ele já começa tomando medidas fortes, como a retirada dos EUA da OMS, mais investimentos na exploração de combustíveis fósseis - e podemos imaginar que irá ignorar a COP30 no final do ano, em Belém - além de trazer ao procênio do poder figuras radicais como Marco Rubio para o Departamento de Estado, Linda McMahon para a educação, Robert Kennedy para a saúde (um sujeito negacionista, anti-vacinas), além do pior de todos, Elon Musk, como autoridade para a eficiência do governo. Esse sujeito já se apresentou ontem fazendo claramente o gesto nazista ao final de seu discurso. Serão tempos difíceis. Ontem mesmo Cuba retornou à lista de patrocinadores estatais de terrorismo, menos de uma semana depois de Biden retirá-la da malfadada lista. 

Penso no cessar-fogo em Gaza, no movimento das pessoas retornando não para suas casas, mas para os seus entulhos. Netanyahu fez um serviço colossal, tornando o território palestino inabitável, com mais de 90% das construções devastadas, sem alimentos, sem saúde, sem educação. Tudo destruído pela sanha sionista, que não está satisfeita com essa trégua. Uma paz delicada, que pode terminar a qualquer momento, com novos e violentos bombardeios. Uma paz que não garante desenvolvimento social, ou um mínimo de autonomia, que não deixará de ser tutelada pelos drones do exército de Israel. Uma paz tão frágil quanto a estrutura de uma bolha de sabão. Já começaram as trocas de reféns - sim, Israel também fez reféns palestinos nesses 15 meses de conflito, como Khalida Jarrar, membro do Conselho Legislativo Palestino. Com Trump, não há perspectivas favoráveis para uma paz duradoura.

Trump representa o que o capitalismo moderno, ou o que se denomina por alguns analistas, o neofeudalismo, tem de mais significativo a oferecer: arrogância, violência, descomprometimento com o mundo, na medida em que os interesses do Make America Great Again sejam questionados. Um bufão, que passará o rolo compressor nas minorias latinas e que tomará medidas draconianas, sem a menor consideração. E o pior, será seguido e amado por legiões de inconsequentes, de farsantes políticos, de racistas, de jornalistas submissos, que levarão seu poder aos rincões mais insalubres do mundo, preservando-os como tal.


 

08 janeiro 2025

Ainda estamos aqui


Foto de Gregory Crewds

Dois anos do fatídico ataque bolsonarista à Praça dos Três Poderes, numa intentona grotesca, produzida por gente igualmente grotesca. Muitos, não tantos, foram punidos pelos atos de vandalismo, que objetivavam a derrubada do governo recém-eleito democraticamente. Com o passar do tempo, ficou claro que as intenções por trás das falas de Bolsonaro, e de seus generais golpistas – como por exemplo lançar dúvidas sobre a urna eletrônica – não passava de uma cortina de fumaça para toda a ação pretendida com o objetivo de realizar um golpe de estado. 

As gravações recuperadas nas investigações da PF demonstram o quão essa gente esteve perto de realizar a derrubada de Lula, com sua prisão e assassinato, juntamente com Alckmin e o ministro do STF Alexandre de Morais. Aliás, foi graças a Xandão, com ações oportunas e tidas por muitos como autoritárias, que impediu o sucesso golpista. Enfim, o pior é que não dá para se dizer que essas hostes degeneradas aprenderam alguma coisa. A democracia venceu, mas é comum ouvir versões aqui e ali de apoio à trupe inconsequente. Só agora as obras do Planalto foram restauradas, o que permitirá sua exposição pública. Com muito custo as políticas públicas foram retomadas e seguem seu curso, permitindo a recuperação do poder de consumo das famílias. 

Mas a sombra do golpismo permanece à espreita, e não sabemos o que teremos nas eleições de 2026, que se aproximam com rapidez. Ainda não vejo uma força popular, democrática, que se apresente de maneira consistente e convincente para a sociedade. O nome de Lula é o único que aparece, mas não vejo como possa lançar mais uma candidatura sem criar forte resistência à direita. Há uma triste impressão de que as atitudes necessárias para impedir uma nova versão da patuscada de 2022 não foram tomadas. Ainda se percebe que esse tumulto brancaleonico encontra respaldo em significativas parcelas da população, haja vista as provocações a respeito do filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, um sucesso nacional com mais de 3 milhões de espectadores, que conta de maneira muito delicada o que foi a violência do estado de excessão da ditadura, e mesmo assim produzindo detratores. 

O que veremos em 2026, que tipo de candidatura, uma vertente trumpista, um fantoche das elites ao estilo Milei? A se considerar o lamentável episódio Pablo Marçal, nas eleições paulistanas, podemos ter dolorosas surpresas. A democracia terá força para redigir um programa de governo capaz de vencer não apenas a eleição majoritária, mas de fazer maioria no legislativo?



06 janeiro 2025

O abominável


Foto de Saul Leiter

 

Há momentos em que me aproximo um pouco mais das lembranças de minhas atuações políticas, claramente mobilizadas pelos embates sindicais e pelo ímpeto de solidariedade, que por um tempo abraçõu a tantos jovens. Mas a era amarga do liberalismo, conectada com outras forças ideológicas mesquinhas, abreviaram e sepultaram os mais rudimentares desejos de engajamento. No português mais claro, demos com os burros na água. Tenho belas passagens parcialmente registradas, o que me permite ainda recuperar algumas lembranças. Os episódios ficam mais visíveis do que as fisionomias, ou seja, as boas disputas políticas do passado estão menos apagadas do que aqueles que estiveram ao meu lado, codo a codo en las calles. 

Há aspectos que consigo preservar com boa lucidez, os autores e a literatura que estudei. Mais do que ler, aprofundei-me em meia dúzia deles pelo prazer, pela beleza, pelo encanto narrativo e talvez isso faça diferença, o frescor das palavras que persistem presentes. E justamente o exercício imaginativo da literatura me faz recordar situações das minhas experiências políticas, de muito antes das aventuras sindicais, que já não sei discernir se fazem parte da realidade ou da ficção. 

Na época do ginásio, de um dia para o outro surgiu um professor cuja única fidelidade com a educação era o indispensável jaleco branco, que vestia quando entrava na sala de aula, esbaforido, já atrasado. Sua expressão emanava um vazio profundo naquilo que queria dizer, provavelmente porque sempre estava atrás do que as pessoas tinham a dizer. Muito se contou depois que fazia parte das catacumbas frias do regime de exceção, onde utilizava o seu vigor físico para arrancar informações de prisioneiros. E que havia sido posto ali para intimidar professores com seus modos bruscos. Quanto a nós, jovens alunos, tínhamos mesmo um desprezo por ele, que se consolidou quando Jocilei, o mais camarada da classe, perguntou por que o jaleco, naquela tarde, estava tão manchado de sangue.