26 junho 2025

O sol de inverno e Victor Hugo


A obra magna de Victor Hugo

Encaro uma certa melancolia nestes dias, a esse mesmo horário da tarde, ao perceber o sol lentamente se pondo, encerrando a jornada. A noite sobrevém, fria, o céu limpo, mas fica a impressão de que se perdeu muito em não aproveitar o calor do dia, como se deixasse escapar a beleza abertamente ensolarada na cidade. Confesso que ainda me recupero das cirurgias de pele, o que me impede de me expor longamente ao sol, de modo que o aprecio como posso, da janela de minha sala, tão referenciada em meus contos, ou atravessando a Augusta para um café no Soul. Na espera do tráfego se acalmar, recebo os raios não tão aquecidos diretamente no corpo, e por essa razão retardo a travessia. E isso é tudo.

Diante de mim, Os Miseráveis, de Victor Hugo. O desejo de começá-lo, por fim. Talvez nas primeiras horas do anoitecer, e aos poucos, a cada dia, conhecer mais da vida de Paris no início do século XIX a partir do personagem Jean Valjean. Sim, pode ser, aqui está o livro, seus dois volumes, em tradução desconhecida. Nas primeiras páginas, uma assinatura minha, com a data 21.11.76. Logo abaixo, apus nova assinatura, com a data de hoje. Quase cinquenta anos depois. Se tivesse lido naquela primeira ocasião, bastante coisa poderia ter acontecido, e tantas outras ocorrido de modo diferente. Sabe-se lá.



23 junho 2025

Bestialidade humana 2


Motim em Vancouver, 1994

"Daquele momento em diante, cada acontecimento que se seguiu parecia sinistro, de um significado sombrio. Tudo me dizia respeito muito de perto, sentia-me envolvido em tudo que se passava, como se tivesse estado presente a cada uma das cenas de que tinha notícia. Nada fora previsto. Explicações, ponderações, mesmo ousadas profecias eram nada, se comparadas à realidade. O que ocorreu foi, em cada detalhe, algo inesperado e novo. O contraste entre a pequenez das ideias propulsoras e seu efeito era incompreensível. Em meio a tanta perplexidade, porém, uma coisa era certa: aquilo só poderia desembocar numa guerra – e não numa guerra acanhada, insegura de si própria, mas numa que irromperia orgulhosa e voraz, como as guerras bíblicas dos assírios".

O texto acima faz parte do livro O Jogo dos Olhos, o terceiro volume da autobiografia de Elias Canetti. Refere-se à ascenção de Hitler, em janeiro de 1933. Se fecharmos os olhos e considerarmos a dramaticidade histórica, transportando-a para os nossos dias, podemos facilmente adaptá-la para a posse de Trump em janeiro deste ano. Um texto que imprime ao fato narrado uma universalidade atemporal: se estávamos naquele momento na Alemanha nazista, hoje estamos nos Estados Unidos neoliberal. O perplexo se contorce e se estende impoluto até os nossos dias, como se cada fração daquela tragédia sobrevivesse incólume para se recompor, ordinária, fútil, brutal, no presente - e prolongando-se, porque nada demonstra que será debelada, rumo ao futuro.  



18 junho 2025

Bestialidade humana

 

nos céus de Tel Aviv


Seguem os enfrentamentos entre Israel e Irã, entrando no sexto dia, cada vez menos informações atualizadas. Teerã e Tel Aviv receberam fortes impactos, que se multiplicaram por otros locais nos dois primeiros dias; a ruptura se deu com um ataque sem precedentes de Israel, com o objetivo de alcançar alvos onde se desenvolve o programa nuclear iraniano. Pelo menos foi o que se veiculou nos meios. Sem dúvida, uma agressão que atropela os princípios consagrados na Carta da ONU. Ademais, vi uma postagem no Instagram contendo declarações de Netanyahu nos últimos trinta anos, em que alerta para a capacidade do Irã em produzir bombas atômicas, o mesmo discurso repetitivo e sem imaginação por trinta anos. 

Não se sabe exatamente qual o alcance do sucesso desse ataque "preventivo". A reação iraniana foi forte, superou o domo de ferro e uma saraivada de mísseis explodiram em áreas não necessariamente militares, em diversos pontos de Israel. Enquanto isso, Gaza continua sendo brutalizada, vilipendiada, querem os sionistas que ela desapareça. Não tenho forças para acompanhar passo a passo os acontecimentos. Uma amiga escritora acabou de ler minha peça, gostou muito foi o que disse. Outro conhecido (não tenho como dizê-lo amigo) leu meu primeiro livro de crônicas, o volume mais político, e disse que gostou porque organizou suas ideias. São livros que, curiosamente, relatam a bestialidade humana, cometidos respectivamente contra a Palestina e contra o povo brasileiro. Triste.

Enquanto isso, Trump, Milei e os radicais direitistas seguem com suas cartilhas arrivistas, agressivas, purulentas, conectadas (mas não coordenadas) entre si e sem qualquer sentido prático. Não avançam em proposições e trabalham naquilo que mais gostam, proliferar falsas notícias e transformar os adversários em inimigos políticos. Cristina Kirchner acaba de ser presa e uma multidão oposicionista cantou e desfilou pelas ruas portenhas. Repete-se o mesmo processo que aconteceu com Lula, com Correa e com Castilho, no Peru. Desejo ardentemente que, na altura das eleições do próximo ano, tenha transcorrido o tempo necessário para o envelhecimento precoce dessas diatribes vulgares que se renovam a cada dia, e que tanto Milei quanto Trump estejam irreversivelmente desgastados e desacreditados perante a opinião pública, com os neofascistas ainda mais desarvorados do que estão agora. E que Netanyahu esteja pagando o preço pela prepotência ideológica. 

É tempo dos brados direitistas, mas também é verdade que se aproxima o tempo do justo acerto de contas com esses malfadados personagens.



16 junho 2025

Vinícius de Moraes, uma poesia

 


Vinícius de Moraes


Breve consideração à margem do ano assassino de 1973


Que ano mais sem critério
Esse de setenta e três...
Levou para o cemitério
Três Pablos de uma só vez.
Três Pablões, não três pablinhos
No tempo como no espaço
Pablos de muitos caminhos:
Neruda, Casals, Picasso.

Três Pablos que se empenharam
Contra o fascismo espanhol
Três Pablos que muito amaram
Três Pablos cheios de Sol.
Um trio de imensos Pablos
Em gênio e demonstração
Feita de engenho, trabalho
Pincel, arco e escrita à mão.

Três publicíssimos Pablos
Picasso, Casals, Neruda
Três Pablos de muita agenda
Três Pablos de muita ajuda.
Três líderes cuja morte
O mundo inteiro sentiu...
Ô ano triste e sem sorte:

— VÁ PRA PUTA QUE O PARIU!


 

31 maio 2025

Modos torpes e sinuosos do massacre: os olhos

 

Louis Stettner, The Penn Station Series

O jovem vestido de uniforme laranja me chama para ser atendido. Deixo duas garrafas de água sobre a mesa, ele registra, me pergunta como desejo pagar, Cartão de débito, respondo. O uniforme está verdadeiramente puído, destacam-se tatuagens nos braços e no pescoço, pequenas, grandes, desenhos, nomes, uma sucessão confusa de linhas escuras, ao contrário de sua personalidade jovial e esclarecida. Pergunto se já está no final do turno, diz que sim, com uma expressão de alívio. Não desgruda os olhos da máquina, e enquanto emite a nota, acrescento, Não faz sentido, encontro coisas aqui que não existem no mercado da mesma rede ali em frente, e ele, Não estão preocupados, não tem um padrão, olha só como aqui é diferente, mal organizado, e acrescenta em um tom mais baixo ou mais acelerado, já que os fregueses se acumulam na fila, O que interessa para eles é isso... pronto, (a grana) chegou, aí ficam tranquilos... pode continuar a bagunça... Dou uma risada, gosto do seu jeito perspicaz, complemento com uma fala que poderia estar em sintonia com seu comentário, Eles se preocupam com a grana chegando, e continuam esquiando... Ele me entrega o pacote e me olha pela primeira vez nos olhos, nos despedimos, ele diz, Vá com Deus.

O jovem é de fato um sabugo explorado até o talo e depois descartado. Cada semana deparo ali, ao comprar essa marca de garrafa de água, que são jovens diferentes. O anterior havia me dito que ainda dava para aguentar, Ali, era suave, o duro é a jornada no... (marca de uma lanchonete transnacional)... para lá não volto nunca mais...  O corpo se desgasta, é literalmente chupado, dessangrado, e naturalmente vilipendiado, sem que isso chame a atenção do freguês. Ao contrário, quando este não encontra o que deseja, ou o atendimento demora por falta de empregados, costuma chiar brutalmente, como se estivesse sendo destratado, quando na verdade quem é destratado diariamente é o pobre do funcionário de plantão. O extremo esforço do corpo para compensar um sistema agônico, voltado cada vez mais para os números dos lucros. No meu prédio, ao chegar, deparei com o zelador, nas mesmas vestes puídas, só que de outra cor, sentado por um momento por trás da mesinha. Digo por um momento porque desde as últimas demissões, ele tornou-se o único zelador de dois condomínios: lava o piso, atende as entregas, conserta canos e fiações, e no final do dia dá bom dia até para cavalo, se os houvesse por ali. Mas ao encontrá-lo, ali, paradinho por uns instantes, reparo em seus olhos, profundos, melancólicos, doloridos, quase ausentes, que mal enxergam a realidade diante de si, e talvez por isso mesmo, me responda em tom de brincadeira, Sim, tudo tranquilo, na paz, sem esquentar a cabeça...



19 maio 2025

Idea Vilariño, uma poesia


Idea Vilariño (1920-2009)


 A NOITE

A noite não era o sonho
era sua boca
era seu belo corpo despojado
de seus gestos inúteis
era sua cara pálida olhando-me na sombra
A noite era sua boca
sua força e sua paixão
era seus olhos sérios
essas pedras de sombra
tombando em meus olhos
e era seu amor em mim
invadindo tão lenta
tão misteriosamente

(declamado para Moniquinha, na noite de seu aniversário)



14 maio 2025

Pepe, Francisco



 

Em menos de um mês, se vão dois personagens marcantes deste quarto de século: o Papa Francisco, no dia seguinte à Páscoa, 21 de abril, e Pepe Mujica, ontem. De ambos, mortos quase com a mesma idade, fica a terna lembrança de personalidades que lutaram bravamente contra os fascismos degenerativos, em busca de uma vida solidária e justa. De Francisco, fui aos poucos aprendendo como debelar infâmias com serenidade, sem ceder à mídia que o detratava, paulatinamente tendo contato o vigoroso percurso que realizou junto às causas sociais. Uma caminhada bastante solitária, mas determinada, amparado pela fé em que assumiu desde o princípio. 

De Mujica, uma caminhada forjada no enfrentamento revolucionário, com a finalidade de promover uma governança alinhada ao bem-estar comum. Não conseguiu com o processo revolucionário, mas sim posteriormente, na atuação política com a democracia restaurada. Passei a admirar sua luta desde que seu nome se destacou como ex-guerrilheiro do MLN-T, e mais tarde, como integrante da Frente Ampla, vitoriosa em 2005 com Tabaré Vasquez. Vencedor do pleito seguinte, em 2009, seu governo deu continuidade aos fortes investimentos em políticas sociais que ocorreram naquele momento, simultaneamente, em diversos países da América do Sul, ao lado de Lula, Chávez, Evo, Bachellet, Correa, Kirchner e Lugo. 

Em ambos, Pepe Mujica e Papa Francisco, a infindável sabedoria das palavras e das ações. Em ambos, a bondade militante que jamais cedeu em seus propósitos, ao promoverem um mundo melhor, mais autêntico e menos hipócrita, mais humano e menos mercadológico. Em minha opinião, ambos souberam mobilizar a razão das massas pelo coração; ambos souberam levar seus combates a um bom término, ao justificarem plenamente seus esforços para se pensar e viver uma verdadeira opção ao famigerado neoliberalismo.


  

29 abril 2025

O discreto instante da permanência


Peter Keetman, Nebellauf, 1956

As tragédias que nos afligem, tão próximas, soltaram as amarras, e nesse tempo que sobrevém as dores e as infindáveis lembranças, é possível perceber a velhice se apropriar do corpo, e com ela, o cálice com o elixir que robustece o amor poucas vezes manifesto. O sorriso tão natural que brota suavemente na face tranquila de mamãe impulsiona os momentos belos que os irmãos passamos a compartilhar, momentos não só de compreensão e leveza, mas de serenidade. A temperança nos acolheu proporcionando o estado de espírito que nos abrigou da desesperança, de uma angústia poderosamente crescente. O idílio de uma paz inesperada, que nos contempla em cada encontro, esparge seus olores e nos torna mais humanos, na fartura como na falta. 

Mas a caminhada foi exaustiva, muitas das vezes sem os resultados desejados. Não encontrar um caminho significava a prevalência de um mundo descartável, arrefecendo-nos. Foi o amor que forcejou, e se instalou, e repudiou veementemente a futilidade dos temores, das falsas promessas e vez ou outra, das torpes espectativas. Sobreveio o tempo de acreditar na bondade a qualquer custo, de sentir a imensidão do universo, desde seus míseros vespeiros ao maravilhoso poente outonal. Foi necessário despertar dos bons e dos maus sonhos com a mesma dúvida; deleitar com as visões magníficas do farol cintilante na Comporta Tannhäusen, mas também considerar a tolice do descaso de cada dia. 

Entre o que foi e o que é, emerge o discreto instante da permanência e com ela, a possibilidade contínua da transformação pelo amor. Os segredos superados pela entrega. Diante de mim, Jessica sorri e convida-me para saborear o chá de cada noite.


24 abril 2025

Milei et caterva


Nas ruas da Itália


Tantos absurdos cometidos, que um a mais, outro a menos apenas reforça a pobre liturgia dos eventos. Disso se trata o dia a dia no neoliberalismo, o que é fato em um momento, no outro deixa de sê-lo, e não raro, da forma mais patética e desprezível. Então, não é problema para um chefe de estado desancar com outro, de maneira vil, para depois desejar acompanhar pessoalmente seu funeral. E vai para o funeral levando uma comitiva imensa, desnecessária, em um verdadeiro voo da alegria. No meio dessa comitiva, a ministra de segurança que na véspera cerceou (e nas semanas anteriores brutalizou) com uma imensa tropa policial às manifestações de aposentados pelas ruas da capital, como a vigiar um inimigo ensandecido, que ameaça a segurança nacional. 

Desta feita não houve balaços, ainda que tenha comparecido muito gás pimenta. Também na comitiva comparece o porta-voz, aquele que regularmente porta mensagens dolorosas para a economia da nação, e que pretende surfar em alguma onda para alçar o governo da cidade autonoma, nas eleições vindouras. Nenhum mérito justificável, como gosta de proclamar aos quatro ventos, como bom neoliberal que é. Na comitiva vai a irmã do chefe de estado, a voz indispensável da consciência do mesmo, motivo mais do que suficiente para confirmar sua presença na viagem. Ao que parece, não estará presente nenhum dos cães que orientam ao chefe de estado, e temo por essa ausência sobre seu equilíbrio emocional. A esperança é que o cão defuntado possa inspirar com seus latidos do além o pobre presidente, tão solitário, tão infeliz.

Quanto ao ex-presidente eleito deste país, ainda internado (mas passa bem, está em franca recuperação), este recebeu a intimação em seu leito hospitalar. Declarou todos os impropérios golpistas antes e durante o seu governo (há provas documentais substanciosas), agora, acuado em sua insignificância, se declara inocente. Não obstante, o julgamento no STF prossegue, e ao que tudo indica, fará grande justiça ao povo deste país, porque seus atos foram covardes, e porque seus atos foram criminosos contra a democracia deste país.

Gaza continua sob ataque, e não existe paz possível no horizonte. A pax neoliberal preocupada com a livre concorrência, insinua que nada de mais ocorre nos territórios ocupados, sobretudo em Gaza. Além dos ataques aéreos, o zumbido incessante dos drones de controle inquietam a população palestina, que não tem sossego, que não podem ir e vir, que não desfrutam da possibilidade da livre concorrência. Uma violência arbitrária, que não tem limites e não se extinguirá. Um ano e meio de destruição, de mortes, de crimes de guerra. 

O sionismo nunca esteve tão próximo e tão longe de alcançar seus propósitos. 


19 abril 2025

De Brecht, por Osvaldo Bayer




Vi recentemente a declamação de Elogio ao Estudo de Bertold Brecht por um Osvaldo Bayer nonagenário, com a força e entonação devidas, sem a falsa emoção que acompanha os manifestos frívolos. Bayer se detém a cada estrofe, como a firmar a beleza do texto, repetindo sempre o verso Prepárate para gobernar (Prepara-te para governar).

Desde que travei contato com sua literatura, isso por volta de 2007 quando estive na Argentina e adquiri seu formidável Patagonia Rebelde, acompanhei a trajetória combativa, a vida, a luta política, a produção de textos históricos até sua morte aos noventa e um anos em dezembro de 2018. Sempre alimentei um grande respeito por suas ideias, pelo enfrentamento corajoso contra os governos autoritários, que ajudou a inspirar minha visão política de mundo. 

Abaixo, transcrevo o texto de Brecht com minha tradução.


Elogio do Estudo

Aprende o mais simples.
Nunca é tarde para aqueles 
cujo tempo chegou!
Aprende o alfabeto. Não basta
mas aprenda-o! Não te desanimes.
Começa já! Deves conhecê-lo todo!
Prepara-te para governar.

Aprende, marginal, homem do campo,
aprende, ocupante do cárcere,
aprende, mulher atada à cozinha,
aprende, sexagenária!
Prepara-te para governar.
Vem para a escola, homem sem teto.
O saber é para ti que sentes frio.
Faminto: toma com força o livro, é uma arma.
Prepara-te para governar.

Não temas em perguntar as coisas, camarada!
Não te deixa influenciar,
descobre tu mesmo.
O que não sabes por conta própria
não o sabes.
Revisa a conta.
És tu o que a paga.
Ponha o dedo sobre cada cifra.
Pergunta: Como se chegou até aqui?
Prepara-te para governar.

(Bertold Brecht)

https://youtu.be/9Wv-yYIuGNo?si=V2SOFMscqT4n9wu1



14 abril 2025

Alejo Carpentier


Ernest Cole


O segmento abaixo é uma transcrição traduzida do espanhol do denso ensaio de Roberto González Echeverría, Alejo Carpentier, sobre o autor cubano, publicado em Narrativa y critica de nuestra America, pela editorial Castalia, Madrid, em 1978. O volume traz um conjunto de textos sobre diversos escritores latino-americanos que naquele momento se destacavam com suas narrativas. Optei pelo texto sobre Carpentier, um escritor que entusiasma pela descrição do barroquismo presente em nosso continente (e nesse sentido, muito bem abordado por Echeverría), ao trazer esse elemento expressivo da arte na composição do caráter do nosso povo, bem como o componente político arraigado nas múltiplas maneiras dele se realizar na realidade cotidiana. Como Echeverría bem observa, "Esse barroco é a nova metáfora carpentiana para o americano, que será a mistura, o sem estilo e sem método".

Além do que, Carpentier merecia, neste pequeno e insigne blog, uma lembrança ainda que discreta. Sem dúvida, o texto de Echeverría tem o mérito de abarcar com a devida profundidade o imenso narrador que foi Alejo Carpentier, mas não seria possível trazer neste espaço o ensaio em toda sua extensão, o que sem dúvida nos faz perder muito. Fiz a opção por traduzir a parte final, para ainda saborear a parte final deste importante estudo crítico. 

Fico particularmente orgulhoso em trazer um pouco que seja sobre a obra e o método de Carpentier; as falhas no ritmo ou na compreensão do texto ficam, por óbvio, sob minha exclusiva responsabilidade. Espero que apreciem.
 
(...)
"O recurso do método, que à maneira de Valle Inclán em Tirano Banderas e Asturias em O senhor presidente, destaca a figura de um ditador latino-americano, é esse futuro que a Revolução francesa anunciava. O título desta novela é, desde logo, uma paródia do de Descartes; mais do que uma paródia, é uma mescla de Vico com Descartes. Os recursos da história devem ser vistos, aqui, como as recurvas da mesma. O ditador hispano-americano regressa à França, de onde surgiu em princípio as bases de sua duvidosa legalidade, para dedicar-se desenfreadamente aos prazeres da carne, e ao labor de converter-se em uma espécie de déspota ilustrado, embora degradado; o ditador dorme em uma rede em seu suntuoso piso parisiense. Concerto barroco, o último romance de Carpentier, marca um retorno similar. Aqui vemos a influência da América na Europa. O barroco será assim o desarranjo do classicismo europeu como resultado do heterogêneo latino-americano: o Montezuma de Vivaldi, o esboço em gesso de tradições e traições, anuncia o jazz e outras manifestações exógenas do tipicamente novo do Novo Mundo. Esse barroco é a nova metáfora carpentiana para o americano, que será a mistura, o sem estilo e sem método. Nos últimos dois romances, surge um elemento novo em Carpentier, o humor.

García Márquez declarou que quando leu O século das luzes jogou no lixo o que tinha escrito de Cem anos de solidão e começou de novo. A influência de Carpentier sobre os novos novelistas tem sido enorme, às vezes, como no caso de García Márquez, por estímulo positivo, e outras, como em Severo Sarduy (quem parodia Intimidação, em Gestos), por estímulo negativo. Em prosa ficcional Borges e Carpentier são as figuras mais importantes na primeira metade do século XX na América espanhola. Borges por haver levado sempre até suas consequências mais radicais os problemas mais difíceis do ofício; Carpentier por ter moldado a uma temática latino americana experimentos novelísticos de alta envergadura, e sobre tudo, por ter feito da história latino americana seu tema principal. Além do que, por essa "curiosa indefinição" que o achacou Marinello em 1937 (no livro Uma novela cubana, publicado pela UNAM, México), Carpentier logrou dar causa à mais candente problemática hispano americana: a da falta de identidade, e conseguiu provar que, pelo menos em literatura, essa indefinição é o que define o americano. Ainda que, talvez, seja precisamente a indefinição o que defina a literatura, e então o exemplo de Carpentier será muito maior. 

Igualmente exemplar foi a entusiasta e laboriosa adesão de Carpentier à Revolução Cubana, que por fim lhe deu pátria desde a qual orientou suas multiplas peregrinações, e demonstrou a possibilidade de superar as contradições entre a vanguarda artística e a política.



31 março 2025

Cenas marcadas pelo tempo


A bela capa

Saiu a capa final, e com ela o miolo revisado. Trata-se de meu mais recente livro, Cenas que se diluem com o tempo, a ser lançado em abril, ou no mais tardar, em maio. Editado pela Urutau, tem sido uma nova experiência em termos de publicação, um ganho em termos de qualidade profissional. Desde a preparação da capa, passando pelos cuidados com a revisão pelo acabamento do livro, e considerando as dificuldades em publicar com a editora (pelas chamadas regionais serem muito concorridas), tenho uma grande expectativa pelo resultado final. 

Já estamos no fim do processo de revisão, e o próximo passo será a edição em si. O livro conta com 144 p. e desta feita, sem prefácio. Considerava até dois meses atrás como o meu patinho feio, pois ali está reunido um conjunto heterogêneo de gêneros e formatos diferentes, pequenos e médios contos, crônicas ficcionais, relatos de viagem, um fragmento de diário, poesias em prosa, um esboço de roteiro e até mesmo uma curta peça dramatúrgica. Mas com o resultado da chamada, iniciei leituras de revisão e me dei conta de um prazer inesperado que a obra me proporcionou.

O conjunto reúne 56 textos, sendo 28 singelos, afetuosos, recordatórios e 28 tensos, ardilosos, dramáticos, uma obra sem prefácio. Optei por reunir textos avulsos, alguns guardados há anos, que deram uma curiosa e ao mesmo tempo harmoniosa consistência de coisas diferentes que consolidam uma obra. Um livro que descreve situações, circunstâncias definidas por um tempo passageiro, apreendidas ao sabor do momento e que aos poucos se deixam diluir.



22 março 2025

Hackman, Gaza



Gene Hackman faleceu há poucos dias, juntamente com sua esposa. Este é um doloroso caso que pode se transformar em narrativa: dois idosos que moram isolados, praticamente sem contato com amigos e um deles (a esposa) falece e o outro (Hackman) tomado pela doença de Alzheimer, não sabe como reagir, ou como se virar, até que acaba fenecendo. Muito triste esse desfecho, considerando a cadeia de acontecimentos – a morte da esposa por hantavírus, sua incapacidade em reagir e buscar ajuda pelo avançado grau da doença. Um grande ator ganhador de dois Oscars, que marcou suas atuações pela presença cênica. Tinha uma grande admiração por seu trabalho, em especial no impactante Mississipi em Chamas, de 1988. No final, de nada valeu toda a fama e reconhecimento.

Israel volta a atacar fortemente Gaza, depois de dois meses de trégua, e deixa mais de 400 mortos. Como escrevi no posfácio de minha peça Terra Devastada, não haverá paz, porque não há negociação possível, considerando Netanyahu e Trump no poder. Ano que vem teremos eleições, e a pressão sobre a esquerda política só tenderá a aumentar. Até lá, Lula deverá se segurar porque é Lula, mas e depois? Paro por aqui, sigo para Santo Amaro.



03 março 2025

A amplitude de Ainda Estou Aqui


Greg Girard

Esse o Brasil, uma conjunção de formações díspares que não se alinham e no mais das vezes, se contradizem. Uma sociedade rompida que se constrói pela autofagia, onde os grupos mais fortes se estabelecem em detrimento dos mais débeis. Assim sempre foi e segue sendo, ainda que vez ou outra governos mais populares estabeleçam algum nível de desenvolvimento social. Leio Verdade Tropical, de Caetano Veloso com gosto, com uma defasagem de trinta anos desde sua escritura. Sua narrativa descreve o tempo todo o que se faz e o que se destrói em uma sociedade autoritária. O episódio de sua prisão, junto com Gilberto Gil, é de uma ignomínia absoluta, só mesmo produzida por um sistema ignorante até a medula, e que dispõe de poder.

O processo da detenção dos dois não difere da de Rubens Paiva e de tantos outros brasileiros. Lembro de Rubens Paiva em razão do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Moreira Salles, ter ganho o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro ontem. Uma festa coletiva, que tomou conta das ruas do Brasil, que demonstra a penetração que o filme teve nas várias parcelas da população. Mais de cinco milhões de pessoas só no Brasil assistiram no cinema Ainda Estou Aqui, propiciando uma compreensão muito clara do que significou a violência militar sob a ditadura, demolindo as falsas convicções de que o período foi de desenvolvimento e bem-estar.

O trabalho didático desse filme foi mais efetivo do que todo o processo de educação formal em 60 anos! Esclareceu, coletivamente, sobre os horrores da ausência de liberdade e de direitos civis. Talvez o ponto chave do sucesso foi uma narrativa que expõe a brutalidade de maneira indireta, sem a necessidade de conduzir o espectador às salas de tortura com a cadeira do dragão e as maquininhas de choques elétricos. E mais ainda: expor a sorrateira invasão domiciliar de uma família de classe média, quebrando sua estrutura com o sequestro e desaparecimento do pai. Tudo manifestamente decidido e conduzido nas entrelinhas do terror, sem rosto e sem finalidade.

Caetano e Gil foram sequestrados por terem participado de um show onde os artistas expunham a faixa famosa de Torquato Neto, Seja marginal, seja herói, sobre a reprodução de um corpo estirado no solo. A significação desse gesto superava a compreensão das mentes obtusas dos militares de plantão, que viam aí uma associação intolerável com propósitos subversivos. É provável que o tropicalismo e sua rebeldia cultural tenha incomodado as casernas, que na falta do que fazer, passaram a deter artistas. Os dois meses de prisão de Caetano produziram um terrível mal-estar depressivo, superado a custo mesmo no exílio em Londres. Espíritos sensíveis, que acusavam a dor e a violência recebida, sem uma pronta reação. Assim foi também com frei Tito, que não apenas foi detido, como duramente torturado, e que acabou se enforcando no exílio francês.

Eunice Paiva não se dobrou, embora tenha mantido um impressionante sangue frio no método que seguiu para denunciar a ditadura. Até onde pôde, lutou por saber do destino do marido, até que quarenta anos mais tarde, a partir dos relatórios da Comissão Nacional da Verdade, consegue finalmente a declaração de que Rubens Paiva tinha sido torturado e morto em dois dias, e seu corpo diligentemente desaparecido. Como ela, muitos não se dobraram ao longo dos anos.



26 fevereiro 2025

Carlos Fuentes e Nuestra Latinoamerica


Foto de Fred Herzog


De minha parte, segui de certo modo envolvido com a leitura de La Gran Novela Latinoamericana, de Carlos Fuentes, intercalando com a apreciação deste ou daquele ensaio sobre os escritores de Nuestra America que ele destaca. Uma leitura difícil de abandonar, seja onde for. Não saio de casa sem o volume, e lá estou sentado em qualquer canto, devorando de modo aleatório esta obra que, detendo-se nas idiossincrasias do imaginário, expande-se até nos encontrar no mundo real. 

Com alguns autores Fuentes demonstra um apaixonado envolvimento, e descreve suas obras com leveza, carinho e profundidade, expondo a força característica de seus signos. É assim, por exemplo, quando fala da obra de Lezama Lima e suas eras imaginárias, "se uma cultura não logra criar uma imaginação, resultará historicamente indecifrável", especificamente em Paradiso. De Roa Bastos e seu Eu, o Supremo, ou da Comala do impressionante Juan Rulfo, alinha a versatilidade dos seus aspectos mágicos. 

Assim, o painel apresentado em La Gran Novela... captura o leitor mais alheio à realidade latino-americana. Um painel que se monta e se torna mais atraente à medida que Fuentes avança deste para aquele autor, criando uma espécie de relação entre eles e reafirmando a matriz comum da solene história a que pertencemos, registrada pelo maravilhoso da grande novela latinoamericana. 

O texto sobre o nosso Machado - que ainda não li na íntegra - produz o seguinte comentário: "Machado de Assis, Machado de La Mancha, o milagroso Machado, é um pioneiro da imaginação e da ironia, da mestiçagem e do contagio em um mundo ameaçado cada dia mais pelos verdugos do racismo, da xenofobia, do fundamentalismo religioso e outro, implacável fundamentalismo, o do mercado".

Pois como não pensarmos nossa ficção latino-americana como uma apropriada metáfora de nossa realidade do passado e do futuro? 

(Diários, julho/2012)





18 fevereiro 2025

Reflexões de botequim


A lua da Bela Vista

Mais para além, mais para além da mera intenção em dizer que se está feliz porque, afinal de contas, é um otimista. Assim, Rubem Montillo passou a refletir, enquanto comia sua fatia de pizza, no balcão da Santa Clara. Se a alegria se deve ao caráter quietista do otimismo, a isso em que as coisas se resolvem por uma saudável iluminação do destino, não duvido que logo essa bolha explodirá em lamurioso pessimismo. O otimista convicto não alardeia uma apreensão colorida de mundo para o mundo. Soa piegas e depois, bem, depois o otimismo não é uma graça, mas uma espécie de disposição natural que mobiliza para a ação. Supõe a intervenção humana, consciente, racional, destacando o essencial, a compreensão do compromisso. O fato de estar propenso a por si só revela o estado de espírito otimista por excelência, sendo desnecessário encontrar razões para decliná-lo como uma força mítica.

Desta forma, uma frase como hoje o dia está belo, sem umidade excessiva, sem ruídos, de uma luminosidade suave e morna, e de outra parte sinto uma disposição para escrever, para arrumar minhas coisas, de sorrir e clamar para as pessoas o quanto a vida é bela..., talvez não seja a banalidade desprezível de um pensamento da revista Caras, mas inevitavelmente o início de um torpor indigesto, propondo certo otimismo para terminar no vazio. Um torpor fútil, no caminho da prevalência do supérfluo. As derivas de Montillo esbarraram em uma frase que recordou de Benedetti, o pessimista é um otimista bem informado... Talvez bastasse para distrair-se em seu devaneio.

Mas prosseguiu, avaliou que na pós-modernidade não existe disposição para que as proposições elaboradas sobrevivam. Sem sustentar um olhar apreciativo e condescendente, subsiste à deriva esse ser-aí liquefeito, assustado, preconceituoso, esperando cada qual o seu Godot. Lembrou-se de uma frase de Bauman, não há sonho comunitário vigente, mas a sensação de segregação e exclusão... As amarras típicas de nosso tempo, que arremetem cada vez com mais força ao isolamento e à intolerância, sob a proteção dos muros salvadores. A relação cotidiana pode ser considerada como uma bênção, sempre com conforto e proteção entre os iguais. E Rubem Montillo pareceu chegar a uma conclusão momentânea, antes de pedir a segunda fatia: nesse ambiente asséptico desponta o otimismo pueril dos indolentes, que nada acrescenta a não ser desilusão e miséria.



11 fevereiro 2025

Letra e Alma


Paulo Cesar Pinheiro

Assisti ao maravilhoso depoimento de Paulo Cesar Pinheiro no documentário Letra e Alma, de Cleisson Vidal e Andrea Prates, no canal Curta. Sua fala serena nos remete a uma intensa atividade musical, produzindo parcerias com os grandes compositores de sua geração e das anteriores, de Pixinguinha a Baden Powell. Cantado em verso e prosa por magníficas intérpretes, de Clara Nunes, sua esposa por oito anos, a Elis Regina. Enfrentou a ditadura com coragem, compôs maravilhosos libelos desafiadores, como Pesadelo, em parceria com Maurício Tapajós, Quando o muro separa, uma ponte une/ Se a vingança encara, o remorso pune/ Você vem me agarra, alguém vem me solta.../ Se a força é tua, ela um dia é nossa/ Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando... Estava cansado de fazer letras com metáforas para que a censura não o censurasse, então propôs a Tapajós que fizessem uma canção sem meias palavras. Por incrível que pareça, em um primeiro momento, ela foi liberada, mas logo a seguir, pela grande adesão popular, censurada. 

Censura medíocre, de tão surreal, ou o inverso, surreal de tão medíocre. Sua linda composição, Sagarana, uma singela homenagem ao escritor que admirou profundamente, A ver, no em-sido/ Pelos campos-claro: estórias/ Se deu passado esse caso/ Vivência é memória/ Nos Gerais... Não adiantou, acabou censurada. Sem entender o motivo, afinal não se tratava de uma letra politicamente engajada, dirigiu-se até o escritório dos censores. Eram dois senhores de baixa formação, e o Poeta expôs seu argumento, era apenas uma canção homenagem a João Guimarães Rosa, grande escritor da academia brasileira de letras, que tinha uma linguagem popular, sertaneja, sem qualquer intenção política e coisa e tal... Os homenzinhos pensaram, olharam-se e um finalmente respondeu, manteremos a censura. E por qual razão, perguntou o compositor, ao que responderam, "pode ser uma letra em código".  

Mas o que me encantou em seu depoimento foi o convívio com os avós. Moravam em uma tapera, em Angra dos Reis, e ele sempre que podia ia lá para ficar dois, três meses. Não havia água encanada, luz, nenhum conforto. Os amigos comentavam sobre a pobreza dessa vida, ao que Paulo Cesar respondia que fora a experiência mais rica de sua vida. A avó, india de uma tribo Guarani, que ainda existe naquela região, saía de casa e voltava com raízes e folhas medicinais. O avô cantarolava belas canções, e quando Paulo Cesar lhe perguntava de onde ouvia aquelas sonoras composições (não havia rádio na casa), ele respondia, "ouvia do mar". Nunca viu dinheiro nas mãos de seus avós, praticavam literalmente o escambo, trocavam peixes por outros mantimentos, e assim foi. Paulo Cesar Pinheiro comentou que foi essa convivência natural, simples, poderosa, que o ajudou a superar o uísque e as noitadas da vida urbana. Esse aprendizado foi decisivo para retomar o caminho da vida e manter-se na beleza de suas composições.


07 fevereiro 2025

Os mal-entendidos




Um pouco abaixo, no meu constante campo de visão da janela, observo os jovens estudantes no imenso pátio em frente. Já não consigo precisar suas fisionomias, ou mesmo os detalhes de seus corpos, de suas vestimentas. Sei que estão ali, no intervalo de mais um turno de aulas, circulando por entre os cadeirões, reunidos em pequenos grupos conversando, ou solitários, metidos na fluidez de seus celulares. Para mim, basta apreciá-los e lembrar dos momentos de sala de aula, uma boa lembrança cujo ritual não tenho qualquer desejo em retomar. Estou bem aqui, com minhas rememorações, um bom copo de uísque e a visão que tenho deles. Atrás de mim, as estantes abarrotadas de livros me demandam para outros desafios, mais intrigantes, menos cansativos. Há livros esparramados pela grande mesa da sala, não me incomodo, gosto de retomá-los aleatoriamente. Livros, cadernos, papéis avulsos com resumos de leituras ou esboços de narrativas. Na outra ponta, o material que Jessica deixa para quando vem aqui. Tem sido muito bom trabalharmos juntos, ela oficialmente, ainda vinculada aos semestres letivos, aos trabalhos para congressos. E eu, envolto principalmente com a construção da peça dramatúrgica, recuperando a memória de meu pai. Ele aparece como personagem principal, dialogando com seu pai - meu avô, que mal conheci. Estão vivos e estão mortos, as cenas se confundem nessas dimensões, e nesse componente metafísico, não consigo me distanciar da incredulidade. A dúvida surge como substrato fenomenológico, o que de fato é visto e como se estabelece a relação existencial. O avô morto que não quer se retirar sem antes justificar-se por uma vida desregrada, um filho que não tem o que dizer senão compreender o que viveu. Outros personagens que se aproveitam da situação para igualmente justificarem os mal-entendidos. Persistir no desentendimento pode ser uma forma de interpretar os fatos, e nesse sentido, os argumentos se sucedem. É um tempo de recuperar memórias, tornando-as narrativas, e vejo que a essa altura da vida, as memórias escasseiam e não dão conta da sua abundância descritiva.



06 fevereiro 2025

Cenas que se diluem com o tempo


A capa que não é a capa

 

Ao todo, temos 56 narrativas sobre os acontecimentos cotidianos, que na primeira metade da obra descrevem um conjunto dissonante de expectativas, desejos, gestos harmoniosos, delineados pela condição humana; e na segunda metade, narram os tons mais sofridos, as angústias e tensões que nos inquietam. Instantes observados, apreendidos, descritos amorosa ou dolorosamente: a rudeza da noite no espaço urbano, um passeio a beira-mar, o sepultamento da avó, a carona na companhia de um líder muçulmano, a complexa relação entre pai, filho e avô, o arrependimento após a contratação de um pistoleiro. Nada que pretenda ir além das convenções silenciosas, ou da mera possibilidade do imaginário. Temos aqui uma sucessão de narrativas que testemunham a presença do ser humano como protagonista de seus atos.

https://benfeitoria.com/diluem.



31 janeiro 2025

Enquanto isso


Café e Literatura

Soube que Estela se foi. Schuman passou por aqui e de modo bastante sucinto, talvez por estar incomodado com alguma reação minha. Não ficou nem para um café. Foi quando Jessica me perguntou quem era Estela, que me dei conta que não me recordava dela com precisão. Quis confirmar com outros amigos que trabalhavam no mesmo emprego, como Rosaldo e Fonseca, mas eles não se recordavam dela. Ou melhor, Claudemir até se recordou vagamente, mas disse que Estela era de outro setor, do jornalismo, e que nunca tinha mantido contato com ela. Fiquei a lamentar a dolorosa displicência dos amigos e o meu completo apagamento. Seu nome não me era estranho, nem sua atividade paralela, como delegada sindical: participava das reuniões de lideranças, das assembleias dos dissídios salariais e nos trazia informações da cúpula dirigente. Era o que Schuman tinha me dito, mas não me lembrava de sua aparência, de sua presença junto de nosso grupo de amigos. Havia um número grande de colegas que participavam fortemente da política interna da empresa, era um bom tempo para isso, saíamos do período da ditadura, queríamos mudanças. Atrás de nós, vinham todos aqueles que também queriam coisas diferentes e acreditavam em nossas ações. Comecei a recordar de muitos representantes sindicais, que se alternavam à medida que fracassávamos em nossos pleitos. Fora isso, havia a perseguição encoberta por parte da direção da empresa (quando não por parte da própria direção sindical) o que impunha atitudes furtivas, firmes e coletivas, porém cuidadosas. O fato de Estela ser do setor de jornalismo fazia com que atuasse como os demais, com força nos princípios, mas igualmente com bastante discreção institucional e, bem, isso era assim com todos. Eram muitos rostos anonimos que desfilavam diante de mim, rostos de fantasmas, de jovens que não existiam mais. Mas Schuman deve ter tido uma razão subjetiva para vir me informar e cá estou, tentando escarafunchar minhas relações daquele tempo. Foi difícil ouvi-lo lamentar, em meias palavras, que não compreendia como eu havia esquecido a importância de Estela.



28 janeiro 2025

O chatbot chinês


Em uma parede de Nápoles


O mundo segue sob o estrebuchar de uma direita desvairada, que regurgita ameaças sem um princípio sensato, sem uma virtude objetiva. Promove em escala mundial o ódio, a segregação, o individualismo, o medo, a desrazão. Não foram apenas os decretos assinados por Trump em sua posse, por si só um gesto simbolicamente arrogante, mas os ecos dessa empáfia que percorreram o mundo, formatados nas declarações de Milei em Davos contra a pluralidade de gênero, e mais recentemente, em repetição às diatribes de Trump em relação ao México, prometendo construir um muro na fronteira com a Bolívia, um muro de 200 metros, cuja serventia é desconhecida. Como Trump e Milei, espalham-se os falastrões, pequenos, médios, grandes, com o entusiasmo de promover um radicalismo neoliberal do qual não assumem as consequências éticas, políticas, sociais, e que ali na frente se encontra com os dogmas fascistas. Somos um planeta que adoece sob a destruição por um capitalismo demente, que produz em escala jamais vista antes bilionários na medida que empurra milhões de seres humanos para a vala comum. A trégua em Gaza é um acontecimento bestial, pois a partir desse momento artificial de paz, podemos acompanhar as dezenas de milhares de pessoas regressando aos seus lares, sobreviventes, caminhando e levando seus corpos sob os escombros. Nada sobrou, e muitos foram mortos sem misericórdia. O objetivo principal, o resgate dos reféns israelenses, só ocorre agora com as negociações, que podiam ter sido encetadas no começo. Ruínas, morte, destruição, isso me parece a imagem desse capitalismo pernicioso, que blasfema e se militariza, enquanto fenece. Uma pequena empresa chinesa golpeou em quase 1 trilhão de dólares as poderosas companhias estadunidenses do setor de tecnologia ao desenvolver um chatbot bom e barato. Trump vai espernear, mas o que pode fazer, sancionar os chineses? Não vai dar certo. Gastar um dinheirão a mais? Pode ser. Bater na mesa como um valentão? É provável, mas isso não impedirá que ele entenda o movimento dos mercados (que ele tanto ama) em torno das melhores oportunidades.



21 janeiro 2025

Os ninguéns, os nenhuns, os ignorados


foto de Todd Webb


Sueñan las pulgas con comprarse un perro; y sueñan los nadies con salir de pobres

Los nadies, Eduardo Galeano.


Desde ontem, os números apontam mais de 100.000 visitas acumuladas desde o início do blog, há mais de 16 anos. Não é um número exuberante, se considerarmos que a média foi em torno de 17 visitações diárias. Na verdade, não me impressiono pela quantidade, mas por alcançar uma marca redonda e significativa, 100.000. De onde procederão esses números, quem são essas visitações, faz sentido considerar os dados expressos friamente pelo Google, que relaciona a presença de países tão discrepantes como Singapura ou Lituânia? Seja como for, está aí a marca, e desse imenso conjunto de visitas, por certo existem leitores reais e sensíveis, que dedicam alguns instantes para a leitura dos textos. 

Ontem tomou posse Donald Trump, pela segunda vez. Se a sua primeira passagem revelou-se um tempo doloroso e nada inspirador, deste vez ele já começa tomando medidas fortes, como a retirada dos EUA da OMS, mais investimentos na exploração de combustíveis fósseis - e podemos imaginar que irá ignorar a COP30 no final do ano, em Belém - além de trazer ao procênio do poder figuras radicais como Marco Rubio para o Departamento de Estado, Linda McMahon para a educação, Robert Kennedy para a saúde (um sujeito negacionista, anti-vacinas), além do pior de todos, Elon Musk, como autoridade para a eficiência do governo. Esse sujeito já se apresentou ontem fazendo claramente o gesto nazista ao final de seu discurso. Serão tempos difíceis. Ontem mesmo Cuba retornou à lista de patrocinadores estatais de terrorismo, menos de uma semana depois de Biden retirá-la da malfadada lista. 

Penso no cessar-fogo em Gaza, no movimento das pessoas retornando não para suas casas, mas para os seus entulhos. Netanyahu fez um serviço colossal, tornando o território palestino inabitável, com mais de 90% das construções devastadas, sem alimentos, sem saúde, sem educação. Tudo destruído pela sanha sionista, que não está satisfeita com essa trégua. Uma paz delicada, que pode terminar a qualquer momento, com novos e violentos bombardeios. Uma paz que não garante desenvolvimento social, ou um mínimo de autonomia, que não deixará de ser tutelada pelos drones do exército de Israel. Uma paz tão frágil quanto a estrutura de uma bolha de sabão. Já começaram as trocas de reféns - sim, Israel também fez reféns palestinos nesses 15 meses de conflito, como Khalida Jarrar, membro do Conselho Legislativo Palestino. Com Trump, não há perspectivas favoráveis para uma paz duradoura.

Trump representa o que o capitalismo moderno, ou o que se denomina por alguns analistas, o neofeudalismo, tem de mais significativo a oferecer: arrogância, violência, descomprometimento com o mundo, na medida em que os interesses do Make America Great Again sejam questionados. Um bufão, que passará o rolo compressor nas minorias latinas e que tomará medidas draconianas, sem a menor consideração. E o pior, será seguido e amado por legiões de inconsequentes, de farsantes políticos, de racistas, de jornalistas submissos, que levarão seu poder aos rincões mais insalubres do mundo, preservando-os como tal.