11 agosto 2025

A apresentação de Cenas...


Cenas que se diluem com o tempo, ed. Urutau


Será nesta terça-feira, dia 12, o lançamento de meu quarto livro de contos, Cenas que se diluem com o tempo, resultado de chamada feita pela editora Urutau. Junto ao prazer de lançar o livro publicamente, a satisfação de reencontrar pessoas que fazem parte de minha história, e que seguem de alguma forma próximas de mim. Tudo acaba sendo um privilégio, desde a possibilidade de redigir, preparar e lançar uma obra, a poder estar em contato com o carinho de tanta gente querida. Quem puder, cola lá!

Bar Balcão, Rua Dr. Melo Alves, 150, Consolação, das 18h às 21h. Um lugar muito bacana.

Grande abraço.  



08 agosto 2025

Hiroshima, por Tamiki Hara

 

Gaza, tal qual Hiroshima

Oitenta anos da hetatombe atômica de Hiroshima. Retomo o livro Flores de Verão de Tamiki Hara, um dos poucos sobreviventes, sua descrição límpida, serena, como se tudo não tivesse passado de um lamentável equívoco, ou algo muito previsível de acontecer e portanto, levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. É uma narrativa dentre tantas que poderiam surgir, por toda a tragédia, Tamiki Hara consegue manter uma linha cronológica que de alguma forma situa o leitor diante de tanto horror. A cidade destruída, tal como aparece nas fotos aéreas, tiradas pela força aérea dos Estados Unidos, ocorreram com os escombros já frio. Mas na descrição de Hara, as ruínas estão escaldantes, muitos focos de incêndio e fumaça. O que existia deixou de existir, e essa constatação surgem de modo indireto, quando ele relata que pelo terreno plano, havia chegado a uma rua, ou que o bosque de bambus tinha sido derrubado. 

Talvez seja esse modo oblíquo de descrever que torne o livro fascinante, pois exige que o leitor interprete o que exatamente significava toda a destruição ao redor. No capítulo final, escrito anos mais tarde, é interessante ver as relações que Tamiki Hara cria ao se descrever, ao falar das coisas ao redor, na sucessão delicadamente opressora dos acontecimentos. "O que surge nos meus olhos, porém, é a imagem das pessoas em desalento a observar os trilhos. Sempre penso que perto deles vagueiam as sombras de pessoas com a vida devastada, atiradas num local de onde, ainda que lutem, não conseguem se desvencilhar".

Sobreviver ao ataque atômico exerce uma dor estranha, indescritível como o trágico evento, e permanente, que não se descola por um minuto da consciência de mundo. O sucesso de sua narrativa, a beleza das flores, a reorganização social, os raios de sol, tudo parece exercer uma beleza secundária, que não recompõe mais o modo de ser. E o modo de ser já não se define por "sou isso" ou "sou aquilo", de maneira concreta, como se a fragmentação da cidade só lhe permitisse ser as coisas volúveis de um sentimento passageiro. Assim, tudo é perceptível de modo suave, com um valor indispensável, uma rajada de vento, as flores nas ruas, a Primavera sussurrando poemas, pinturas e músicas, "Apenas o ardor da vida emite um súbito raio de luz, e a cotovia, tendo escapado aos limites humanos, se converte em estrela cadente". 

A tragédia criminosa de Hiroshima não deixa de pulsar no coração dos seres sensatos, assim como Gaza o faz em nossos dias.

 

29 julho 2025

As cenas do cotidiano






E por fim, chegaram! 

Uma bela partilha de livros que estarão presente no lançamento, em breve. Um livro que tive grande prazer em organizar, com seus textos abordando diversos gêneros, escritos ao longo dos últimos vinte anos. Estruturados em duas partes distintas, cada qual com o mesmo número de narrativas, a primeira expressa em uma proximidade mais acolhedora, e a segunda em um olhar mais árido, mais distante, os textos oferecem os afetos, as impulsividades, as penumbras de recortes cotidianos, que fazem diluir a força e as certezas dos sentimentos, o que faz da memória o derradeiro testemunho do relato. 

Em breve, o encontro com amigos leitores e com quem mais desejar se aproximar.



23 julho 2025

O fim, e as questões singelas




Como é difícil olhar vez ou outra para esse congresso e deparar com tantos imbecis eleitos se manifestando a favor de Trump! Mais difícil é imaginar que muitos desses tantos imbecis serão reeleitos na próxima eleição, ainda que trabalhem para o fim das políticas sociais. Um dos filhos do ex-presidente segue fazendo campanha contra o Brasil, lá nos EUA. Trump, ansioso e pouco informado, tascou um tarifaço de 50% nos produtos brasileiros, que passa a valer a partir de 1. de agosto. Se a diplomacia brasileira não for bem-sucedida nas negociações em curso (há negociações?) Lula deverá aplicar a política de reciprocidade, e taxará em 50% os produtos estadunidenses. Mas o absurdo é ver o filhote babaca mais essa bancada bolsonarista dando toda a corda para Trump. Ela não tem escrúpulos, desfralda bandeiras com o nome do presidente estadunidense em pleno congresso! O neoliberalismo cacarejando sem qualquer noção de como proceder, em um mundo cada vez menos dependente da economia dos EUA e expandindo as relações multilaterais. Os Brics ganham musculatura e isso nos enche de esperança, é o que nos resta, é o que se contrapõe ao que Yanis Varoufakis chama de tecnofeudalismo, onde as plataformas digitais atuam como feudos nas nuvens. Em outras palavras, elas não produzem nada, exceto reunir produtores e consumidores, para que o dono desse feudo na nuvem possa extrair uma renda, que é como a renda da terra no feudalismo, mas agora é uma renda da nuvem baseada em capital. Aí estão os Musks, os Bezos, os Galperins, a fazer fortuna em nome da precarização do trabalho. Concentração de poder e riqueza, à expensa da imensa maioria desafortunada.

As falidas lideranças neoliberais fomentam a exploração do capital em novas vestes: sujeitam-se aos ditames desses novos superpoderosos, em nome da extinção do Estado. Não conseguirão, e não porque o socialismo prevalecerá, mas porque a tirania tecnológica será pesada demais para os anseios irrefreáveis desses autocratas, meros pistoleiros do entardecer, condenados desde sempre a prestar contas à justiça social. Essa justiça social pressupõe uma resistência que abarca os seres humanos determinados a lutar pelo bem-estar do outro. Como disse Antonio Cândido, o grande homem é aquele que descobre quais são as necessidades fundamentais do seu tempo e consagra a elas a sua vida. Os indivíduos livres e responsáveis estão alinhados a esta consigna.

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Estes dias têm sido de leituras fragmentadas e pouca escritura. Visitei mamãe no domingo, pudemos conversar ao longo da tarde sobre a viagem dela com minha irmã até Buganvília. Confesso que me despertaram o desejo de lá regressar, ainda que o cenário seja desolador. Com a morte de minha tia Romina, sobra apenas a tia Neli, em meio a uma cidade transformada. Segundo minha irmã, não há mais nada que lembre a velha Buganvília. Ou nós estamos velhos e a cidade se remoçou, modernizando-se. Não há mais casas de madeira, não há mais ruas sem asfalto ou de paralelepípedos. Muitos dos pontos de referência desapareceram, como a loja de meu avô, ou o clube da cidade. Meu bom tio Rosario, com a morte de sua esposa, ficou solitário na farmácia que sempre teve, na avenida Brasil. Meu romance é um derradeiro chamado àquela cidade que conheci, e minha descrição se remete a um tempo que não mais existe. Talvez agora valha a pena reler o livro e depois retornar a Buganvília.



10 julho 2025

O insondável abismo


Guernica palestina


Se tomamos os acontecimentos cotidianos, identificamos nas pequenas coisas, nos breves relacionamentos a marca funesta das ações tempestivas das decisões geopolíticas, tomadas por lideranças notáveis (no sentido de dominantes) no tabuleiro do xadrez político. Sobressai a violência dos gestos e das palavras, seguidos pelo desrespeito às normatizações diplomáticas, modos bruscos e brutos de modificar relações políticas e que, por extensão, acabam afetando, como comentei no início, o mais singelo dos convívios de cada dia. Por exemplo, o enaltecimento dessas lideranças à xenofobia e por consequência, à deportação forçada. As vítimas são as minorias dominantes, os palestinos no caso de Gaza e Cisjordânia, os latino-americanos no caso dos Estados Unidos. E simultaneamente, a naturalização do discurso discriminatório, pregado contra esses grupos etnicos, consolidando uma reação em cadeia no seio da sociedade, uma reação de descaso, de medo, de rejeição. 

Aqui na Argentina, o discurso do governo Milei procura colocar-se em sincronia com as decisões estratégicas de Trump e Netanyahu, em uma adesão irrestrita ao neoliberalismo agressivo das entidades empresariais, que destroça instituições políticas, políticas sociais, e porque não dizer, o senso público que comunga o sentimento coletivo. Tudo parece voltar-se grosseiramente a uma só compreensão: a competição individualista, a luta pela sobrevivência, e se o sujeito não tem sucesso nesta empreitada, significa que deve fenecer. O problema desse pensamento é desconsiderar a enorme distinção calcada na desigualdade social, a enorme fragilidade de milhões que não conseguiram estabelecer uma plataforma sobre a qual poderiam dar combate em condições de igualdade, ou pelo menos, em condições mais dignas. O grande capital e seus sequazes passageiros partem do sucesso pessoal como o exemplo a ser seguido, miram a beleza de suas salas de estar sem considerar a dolorosa paisagem que se vislumbra pelas enormes janelas. 

Mais do que isso, nesse movimento, o olhar cego investe na desativação de centros de pesquisa, de hospitais especializados, de organismos técnicos do Estado que viabilizam a vida social de um país. O olhar cego não é capaz de visualizar o bem-estar geral que decorre da participação do Estado na existência de uma nação. Prefere cortar impostos (os que os afligem!), cortar gastos, congelar benefícios sociais (bolsas, aposentadorias, investimentos públicos), desativar instituições culturais, sucatear o ensino público e gratuito. Como se estimulassem o olhar que promovem com tanto apuro, o olhar blasé tão característico da alma humana embotada. Como bem disse recentemente um analista uruguaio, es espantoso y cruel lo que nos sucede, estamos en manos de perturbados mentales. Ao menos neste terrível momento da existência de nossa civilização.

  

30 junho 2025

As incertezas de uma narrativa


por Stanley Kubrick

 

Alguém me perguntou nestes dias como se dá um processo de construção da narrativa. O que posso responder a respeito, a não ser atribuir todas as incertezas que acometem quem escreve. Ao menos no meu caso, nada se dá por definido, e muito menos delineado em um roteiro previamente redigido, talvez aí a dificuldade em desenvolver um romance em sua plena densidade. Muitos de meus contos foram redigidos ao sabor do momento, principalmente os iniciais, quando prevalecia o desenvolvimento da narrativa pela caneta. O formato digital ganhou espaço muito lentamente, e ao fim tornou-se uma opção mais prática não pela redação em si, como pela facilidade dos acertos e reescrituras em tempo real. As melhores histórias surgiram no bico de pena, como se diria antigamente, porque havia o tempo bondoso da escritura em sua fluência natural.

Meu primeiro romance, concluído em 2023 levou mais de vinte anos para ganhar o formato final. Não que eu me mantivesse o tempo todo escrevendo e reescrevendo, mas houve etapas bem definidas, em que chegava a um resultado e em seguida suspendia a escritura por anos, para me deter com outras atividades. Nesse meio tempo, sabia que o texto não estava concluído, e sequer havia chegado a uma concordância sobre como finalizá-lo. Ainda hoje faço pequenas correções, embora os episódios e a estrutura sejam definitivos. E o resultado só pôde ocorrer de modo relativamente satisfatório quando passei a realizar as correções à mão, e não mais no computador. Isso abriu caminho para que todas as modificações dos demais textos escritos ocorresse dessa forma, o livro impresso e com a caneta em punho.

Meus contos originais, escritos entre os anos 1990 e 2010 precisaram passar por fortes ajustes dessa forma. A temporalidade é outra, e a mesa de um Café é muito atraente para realizar as escrituras definitivas à mão. Sem pressa. Observando o movimento ao redor. Foi assim que consegui reorganizar e publicar 10 livros, nos diversos gêneros. E tenho satisfação em dizer que meu último romance, Morrer, Viver, foi todo redigido em um caderno, ao longo de três meses. Sua concepção foi desenvolvida en route, ao longo da escrita, registros que primeiramente marcavam um fato real (a internação de meu pai) e aos poucos passando para as hipóteses da ficção, quando o personagem segue com sua vida, já envelhecido. A memória que se funde com os acontecimentos do presente, e projeta um futuro. 

Nada parece definitivo, nem sequer a certeza de que a escritura esteja concluída. Mas este me parece o grande dilema de quem escreve. Há referências de literaturas lidas, há caminhos que se abrem aqui e ali, há experiências pontuais que podem ganhar novas dimensões, tudo parece transbordar em incertitudes e revelações, e porque não acrescentar, em desejos. Em suma, não há a melhor escolha, mas sim aquela possível, anunciada no vínculo com o tema, que - e aqui há uma certeza - se projeta a partir do mundo ao redor, o físico e o subjetivo, coisas e pessoas, que ganham relevância e às quais amamos. 



26 junho 2025

O sol de inverno e Victor Hugo


A obra magna de Victor Hugo

Encaro uma certa melancolia nestes dias, a esse mesmo horário da tarde, ao perceber o sol lentamente se pondo, encerrando a jornada. A noite sobrevém, fria, o céu limpo, mas fica a impressão de que se perdeu muito em não aproveitar o calor do dia, como se deixasse escapar a beleza abertamente ensolarada na cidade. Confesso que ainda me recupero das cirurgias de pele, o que me impede de me expor longamente ao sol, de modo que o aprecio como posso, da janela de minha sala, tão referenciada em meus contos, ou atravessando a Augusta para um café no Soul. Na espera do tráfego se acalmar, recebo os raios não tão aquecidos diretamente no corpo, e por essa razão retardo a travessia. E isso é tudo.

Diante de mim, Os Miseráveis, de Victor Hugo. O desejo de começá-lo, por fim. Talvez nas primeiras horas do anoitecer, e aos poucos, a cada dia, conhecer mais da vida de Paris no início do século XIX a partir do personagem Jean Valjean. Sim, pode ser, aqui está o livro, seus dois volumes, em tradução desconhecida. Nas primeiras páginas, uma assinatura minha, com a data 21.11.76. Logo abaixo, apus nova assinatura, com a data de hoje. Quase cinquenta anos depois. Se tivesse lido naquela primeira ocasião, bastante coisa poderia ter acontecido, e tantas outras ocorrido de modo diferente. Sabe-se lá.



23 junho 2025

Bestialidade humana 2


Motim em Vancouver, 1994

"Daquele momento em diante, cada acontecimento que se seguiu parecia sinistro, de um significado sombrio. Tudo me dizia respeito muito de perto, sentia-me envolvido em tudo que se passava, como se tivesse estado presente a cada uma das cenas de que tinha notícia. Nada fora previsto. Explicações, ponderações, mesmo ousadas profecias eram nada, se comparadas à realidade. O que ocorreu foi, em cada detalhe, algo inesperado e novo. O contraste entre a pequenez das ideias propulsoras e seu efeito era incompreensível. Em meio a tanta perplexidade, porém, uma coisa era certa: aquilo só poderia desembocar numa guerra – e não numa guerra acanhada, insegura de si própria, mas numa que irromperia orgulhosa e voraz, como as guerras bíblicas dos assírios".

O texto acima faz parte do livro O Jogo dos Olhos, o terceiro volume da autobiografia de Elias Canetti. Refere-se à ascenção de Hitler, em janeiro de 1933. Se fecharmos os olhos e considerarmos a dramaticidade histórica, transportando-a para os nossos dias, podemos facilmente adaptá-la para a posse de Trump em janeiro deste ano. Um texto que imprime ao fato narrado uma universalidade atemporal: se estávamos naquele momento na Alemanha nazista, hoje estamos nos Estados Unidos neoliberal. O perplexo se contorce e se estende impoluto até os nossos dias, como se cada fração daquela tragédia sobrevivesse incólume para se recompor, ordinária, fútil, brutal, no presente - e prolongando-se, porque nada demonstra que será debelada, rumo ao futuro.  



18 junho 2025

Bestialidade humana

 

nos céus de Tel Aviv


Seguem os enfrentamentos entre Israel e Irã, entrando no sexto dia, cada vez menos informações atualizadas. Teerã e Tel Aviv receberam fortes impactos, que se multiplicaram por otros locais nos dois primeiros dias; a ruptura se deu com um ataque sem precedentes de Israel, com o objetivo de alcançar alvos onde se desenvolve o programa nuclear iraniano. Pelo menos foi o que se veiculou nos meios. Sem dúvida, uma agressão que atropela os princípios consagrados na Carta da ONU. Ademais, vi uma postagem no Instagram contendo declarações de Netanyahu nos últimos trinta anos, em que alerta para a capacidade do Irã em produzir bombas atômicas, o mesmo discurso repetitivo e sem imaginação por trinta anos. 

Não se sabe exatamente qual o alcance do sucesso desse ataque "preventivo". A reação iraniana foi forte, superou o domo de ferro e uma saraivada de mísseis explodiram em áreas não necessariamente militares, em diversos pontos de Israel. Enquanto isso, Gaza continua sendo brutalizada, vilipendiada, querem os sionistas que ela desapareça. Não tenho forças para acompanhar passo a passo os acontecimentos. Uma amiga escritora acabou de ler minha peça, gostou muito foi o que disse. Outro conhecido (não tenho como dizê-lo amigo) leu meu primeiro livro de crônicas, o volume mais político, e disse que gostou porque organizou suas ideias. São livros que, curiosamente, relatam a bestialidade humana, cometidos respectivamente contra a Palestina e contra o povo brasileiro. Triste.

Enquanto isso, Trump, Milei e os radicais direitistas seguem com suas cartilhas arrivistas, agressivas, purulentas, conectadas (mas não coordenadas) entre si e sem qualquer sentido prático. Não avançam em proposições e trabalham naquilo que mais gostam, proliferar falsas notícias e transformar os adversários em inimigos políticos. Cristina Kirchner acaba de ser presa e uma multidão oposicionista cantou e desfilou pelas ruas portenhas. Repete-se o mesmo processo que aconteceu com Lula, com Correa e com Castilho, no Peru. Desejo ardentemente que, na altura das eleições do próximo ano, tenha transcorrido o tempo necessário para o envelhecimento precoce dessas diatribes vulgares que se renovam a cada dia, e que tanto Milei quanto Trump estejam irreversivelmente desgastados e desacreditados perante a opinião pública, com os neofascistas ainda mais desarvorados do que estão agora. E que Netanyahu esteja pagando o preço pela prepotência ideológica. 

É tempo dos brados direitistas, mas também é verdade que se aproxima o tempo do justo acerto de contas com esses malfadados personagens.



16 junho 2025

Vinícius de Moraes, uma poesia

 


Vinícius de Moraes


Breve consideração à margem do ano assassino de 1973


Que ano mais sem critério
Esse de setenta e três...
Levou para o cemitério
Três Pablos de uma só vez.
Três Pablões, não três pablinhos
No tempo como no espaço
Pablos de muitos caminhos:
Neruda, Casals, Picasso.

Três Pablos que se empenharam
Contra o fascismo espanhol
Três Pablos que muito amaram
Três Pablos cheios de Sol.
Um trio de imensos Pablos
Em gênio e demonstração
Feita de engenho, trabalho
Pincel, arco e escrita à mão.

Três publicíssimos Pablos
Picasso, Casals, Neruda
Três Pablos de muita agenda
Três Pablos de muita ajuda.
Três líderes cuja morte
O mundo inteiro sentiu...
Ô ano triste e sem sorte:

— VÁ PRA PUTA QUE O PARIU!


 

31 maio 2025

Modos torpes e sinuosos do massacre: os olhos

 

Louis Stettner, The Penn Station Series

O jovem vestido de uniforme laranja me chama para ser atendido. Deixo duas garrafas de água sobre a mesa, ele registra, me pergunta como desejo pagar, Cartão de débito, respondo. O uniforme está verdadeiramente puído, destacam-se tatuagens nos braços e no pescoço, pequenas, grandes, desenhos, nomes, uma sucessão confusa de linhas escuras, ao contrário de sua personalidade jovial e esclarecida. Pergunto se já está no final do turno, diz que sim, com uma expressão de alívio. Não desgruda os olhos da máquina, e enquanto emite a nota, acrescento, Não faz sentido, encontro coisas aqui que não existem no mercado da mesma rede ali em frente, e ele, Não estão preocupados, não tem um padrão, olha só como aqui é diferente, mal organizado, e acrescenta em um tom mais baixo ou mais acelerado, já que os fregueses se acumulam na fila, O que interessa para eles é isso... pronto, (a grana) chegou, aí ficam tranquilos... pode continuar a bagunça... Dou uma risada, gosto do seu jeito perspicaz, complemento com uma fala que poderia estar em sintonia com seu comentário, Eles se preocupam com a grana chegando, e continuam esquiando... Ele me entrega o pacote e me olha pela primeira vez nos olhos, nos despedimos, ele diz, Vá com Deus.

O jovem é de fato um sabugo explorado até o talo e depois descartado. Cada semana deparo ali, ao comprar essa marca de garrafa de água, que são jovens diferentes. O anterior havia me dito que ainda dava para aguentar, Ali, era suave, o duro é a jornada no... (marca de uma lanchonete transnacional)... para lá não volto nunca mais...  O corpo se desgasta, é literalmente chupado, dessangrado, e naturalmente vilipendiado, sem que isso chame a atenção do freguês. Ao contrário, quando este não encontra o que deseja, ou o atendimento demora por falta de empregados, costuma chiar brutalmente, como se estivesse sendo destratado, quando na verdade quem é destratado diariamente é o pobre do funcionário de plantão. O extremo esforço do corpo para compensar um sistema agônico, voltado cada vez mais para os números dos lucros. No meu prédio, ao chegar, deparei com o zelador, nas mesmas vestes puídas, só que de outra cor, sentado por um momento por trás da mesinha. Digo por um momento porque desde as últimas demissões, ele tornou-se o único zelador de dois condomínios: lava o piso, atende as entregas, conserta canos e fiações, e no final do dia dá bom dia até para cavalo, se os houvesse por ali. Mas ao encontrá-lo, ali, paradinho por uns instantes, reparo em seus olhos, profundos, melancólicos, doloridos, quase ausentes, que mal enxergam a realidade diante de si, e talvez por isso mesmo, me responda em tom de brincadeira, Sim, tudo tranquilo, na paz, sem esquentar a cabeça...



19 maio 2025

Idea Vilariño, uma poesia


Idea Vilariño (1920-2009)


 A NOITE

A noite não era o sonho
era sua boca
era seu belo corpo despojado
de seus gestos inúteis
era sua cara pálida olhando-me na sombra
A noite era sua boca
sua força e sua paixão
era seus olhos sérios
essas pedras de sombra
tombando em meus olhos
e era seu amor em mim
invadindo tão lenta
tão misteriosamente

(declamado para Moniquinha, na noite de seu aniversário)



14 maio 2025

Pepe, Francisco



 

Em menos de um mês, se vão dois personagens marcantes deste quarto de século: o Papa Francisco, no dia seguinte à Páscoa, 21 de abril, e Pepe Mujica, ontem. De ambos, mortos quase com a mesma idade, fica a terna lembrança de personalidades que lutaram bravamente contra os fascismos degenerativos, em busca de uma vida solidária e justa. De Francisco, fui aos poucos aprendendo como debelar infâmias com serenidade, sem ceder à mídia que o detratava, paulatinamente tendo contato o vigoroso percurso que realizou junto às causas sociais. Uma caminhada bastante solitária, mas determinada, amparado pela fé em que assumiu desde o princípio. 

De Mujica, uma caminhada forjada no enfrentamento revolucionário, com a finalidade de promover uma governança alinhada ao bem-estar comum. Não conseguiu com o processo revolucionário, mas sim posteriormente, na atuação política com a democracia restaurada. Passei a admirar sua luta desde que seu nome se destacou como ex-guerrilheiro do MLN-T, e mais tarde, como integrante da Frente Ampla, vitoriosa em 2005 com Tabaré Vasquez. Vencedor do pleito seguinte, em 2009, seu governo deu continuidade aos fortes investimentos em políticas sociais que ocorreram naquele momento, simultaneamente, em diversos países da América do Sul, ao lado de Lula, Chávez, Evo, Bachellet, Correa, Kirchner e Lugo. 

Em ambos, Pepe Mujica e Papa Francisco, a infindável sabedoria das palavras e das ações. Em ambos, a bondade militante que jamais cedeu em seus propósitos, ao promoverem um mundo melhor, mais autêntico e menos hipócrita, mais humano e menos mercadológico. Em minha opinião, ambos souberam mobilizar a razão das massas pelo coração; ambos souberam levar seus combates a um bom término, ao justificarem plenamente seus esforços para se pensar e viver uma verdadeira opção ao famigerado neoliberalismo.


  

29 abril 2025

O discreto instante da permanência


Peter Keetman, Nebellauf, 1956

As tragédias que nos afligem, tão próximas, soltaram as amarras, e nesse tempo que sobrevém as dores e as infindáveis lembranças, é possível perceber a velhice se apropriar do corpo, e com ela, o cálice com o elixir que robustece o amor poucas vezes manifesto. O sorriso tão natural que brota suavemente na face tranquila de mamãe impulsiona os momentos belos que os irmãos passamos a compartilhar, momentos não só de compreensão e leveza, mas de serenidade. A temperança nos acolheu proporcionando o estado de espírito que nos abrigou da desesperança, de uma angústia poderosamente crescente. O idílio de uma paz inesperada, que nos contempla em cada encontro, esparge seus olores e nos torna mais humanos, na fartura como na falta. 

Mas a caminhada foi exaustiva, muitas das vezes sem os resultados desejados. Não encontrar um caminho significava a prevalência de um mundo descartável, arrefecendo-nos. Foi o amor que forcejou, e se instalou, e repudiou veementemente a futilidade dos temores, das falsas promessas e vez ou outra, das torpes espectativas. Sobreveio o tempo de acreditar na bondade a qualquer custo, de sentir a imensidão do universo, desde seus míseros vespeiros ao maravilhoso poente outonal. Foi necessário despertar dos bons e dos maus sonhos com a mesma dúvida; deleitar com as visões magníficas do farol cintilante na Comporta Tannhäusen, mas também considerar a tolice do descaso de cada dia. 

Entre o que foi e o que é, emerge o discreto instante da permanência e com ela, a possibilidade contínua da transformação pelo amor. Os segredos superados pela entrega. Diante de mim, Jessica sorri e convida-me para saborear o chá de cada noite.


24 abril 2025

Milei et caterva


Nas ruas da Itália


Tantos absurdos cometidos, que um a mais, outro a menos apenas reforça a pobre liturgia dos eventos. Disso se trata o dia a dia no neoliberalismo, o que é fato em um momento, no outro deixa de sê-lo, e não raro, da forma mais patética e desprezível. Então, não é problema para um chefe de estado desancar com outro, de maneira vil, para depois desejar acompanhar pessoalmente seu funeral. E vai para o funeral levando uma comitiva imensa, desnecessária, em um verdadeiro voo da alegria. No meio dessa comitiva, a ministra de segurança que na véspera cerceou (e nas semanas anteriores brutalizou) com uma imensa tropa policial às manifestações de aposentados pelas ruas da capital, como a vigiar um inimigo ensandecido, que ameaça a segurança nacional. 

Desta feita não houve balaços, ainda que tenha comparecido muito gás pimenta. Também na comitiva comparece o porta-voz, aquele que regularmente porta mensagens dolorosas para a economia da nação, e que pretende surfar em alguma onda para alçar o governo da cidade autonoma, nas eleições vindouras. Nenhum mérito justificável, como gosta de proclamar aos quatro ventos, como bom neoliberal que é. Na comitiva vai a irmã do chefe de estado, a voz indispensável da consciência do mesmo, motivo mais do que suficiente para confirmar sua presença na viagem. Ao que parece, não estará presente nenhum dos cães que orientam ao chefe de estado, e temo por essa ausência sobre seu equilíbrio emocional. A esperança é que o cão defuntado possa inspirar com seus latidos do além o pobre presidente, tão solitário, tão infeliz.

Quanto ao ex-presidente eleito deste país, ainda internado (mas passa bem, está em franca recuperação), este recebeu a intimação em seu leito hospitalar. Declarou todos os impropérios golpistas antes e durante o seu governo (há provas documentais substanciosas), agora, acuado em sua insignificância, se declara inocente. Não obstante, o julgamento no STF prossegue, e ao que tudo indica, fará grande justiça ao povo deste país, porque seus atos foram covardes, e porque seus atos foram criminosos contra a democracia deste país.

Gaza continua sob ataque, e não existe paz possível no horizonte. A pax neoliberal preocupada com a livre concorrência, insinua que nada de mais ocorre nos territórios ocupados, sobretudo em Gaza. Além dos ataques aéreos, o zumbido incessante dos drones de controle inquietam a população palestina, que não tem sossego, que não podem ir e vir, que não desfrutam da possibilidade da livre concorrência. Uma violência arbitrária, que não tem limites e não se extinguirá. Um ano e meio de destruição, de mortes, de crimes de guerra. 

O sionismo nunca esteve tão próximo e tão longe de alcançar seus propósitos. 


19 abril 2025

De Brecht, por Osvaldo Bayer




Vi recentemente a declamação de Elogio ao Estudo de Bertold Brecht por um Osvaldo Bayer nonagenário, com a força e entonação devidas, sem a falsa emoção que acompanha os manifestos frívolos. Bayer se detém a cada estrofe, como a firmar a beleza do texto, repetindo sempre o verso Prepárate para gobernar (Prepara-te para governar).

Desde que travei contato com sua literatura, isso por volta de 2007 quando estive na Argentina e adquiri seu formidável Patagonia Rebelde, acompanhei a trajetória combativa, a vida, a luta política, a produção de textos históricos até sua morte aos noventa e um anos em dezembro de 2018. Sempre alimentei um grande respeito por suas ideias, pelo enfrentamento corajoso contra os governos autoritários, que ajudou a inspirar minha visão política de mundo. 

Abaixo, transcrevo o texto de Brecht com minha tradução.


Elogio do Estudo

Aprende o mais simples.
Nunca é tarde para aqueles 
cujo tempo chegou!
Aprende o alfabeto. Não basta
mas aprenda-o! Não te desanimes.
Começa já! Deves conhecê-lo todo!
Prepara-te para governar.

Aprende, marginal, homem do campo,
aprende, ocupante do cárcere,
aprende, mulher atada à cozinha,
aprende, sexagenária!
Prepara-te para governar.
Vem para a escola, homem sem teto.
O saber é para ti que sentes frio.
Faminto: toma com força o livro, é uma arma.
Prepara-te para governar.

Não temas em perguntar as coisas, camarada!
Não te deixa influenciar,
descobre tu mesmo.
O que não sabes por conta própria
não o sabes.
Revisa a conta.
És tu o que a paga.
Ponha o dedo sobre cada cifra.
Pergunta: Como se chegou até aqui?
Prepara-te para governar.

(Bertold Brecht)

https://youtu.be/9Wv-yYIuGNo?si=V2SOFMscqT4n9wu1



14 abril 2025

Alejo Carpentier


Ernest Cole


O segmento abaixo é uma transcrição traduzida do espanhol do denso ensaio de Roberto González Echeverría, Alejo Carpentier, sobre o autor cubano, publicado em Narrativa y critica de nuestra America, pela editorial Castalia, Madrid, em 1978. O volume traz um conjunto de textos sobre diversos escritores latino-americanos que naquele momento se destacavam com suas narrativas. Optei pelo texto sobre Carpentier, um escritor que entusiasma pela descrição do barroquismo presente em nosso continente (e nesse sentido, muito bem abordado por Echeverría), ao trazer esse elemento expressivo da arte na composição do caráter do nosso povo, bem como o componente político arraigado nas múltiplas maneiras dele se realizar na realidade cotidiana. Como Echeverría bem observa, "Esse barroco é a nova metáfora carpentiana para o americano, que será a mistura, o sem estilo e sem método".

Além do que, Carpentier merecia, neste pequeno e insigne blog, uma lembrança ainda que discreta. Sem dúvida, o texto de Echeverría tem o mérito de abarcar com a devida profundidade o imenso narrador que foi Alejo Carpentier, mas não seria possível trazer neste espaço o ensaio em toda sua extensão, o que sem dúvida nos faz perder muito. Fiz a opção por traduzir a parte final, para ainda saborear a parte final deste importante estudo crítico. 

Fico particularmente orgulhoso em trazer um pouco que seja sobre a obra e o método de Carpentier; as falhas no ritmo ou na compreensão do texto ficam, por óbvio, sob minha exclusiva responsabilidade. Espero que apreciem.
 
(...)
"O recurso do método, que à maneira de Valle Inclán em Tirano Banderas e Asturias em O senhor presidente, destaca a figura de um ditador latino-americano, é esse futuro que a Revolução francesa anunciava. O título desta novela é, desde logo, uma paródia do de Descartes; mais do que uma paródia, é uma mescla de Vico com Descartes. Os recursos da história devem ser vistos, aqui, como as recurvas da mesma. O ditador hispano-americano regressa à França, de onde surgiu em princípio as bases de sua duvidosa legalidade, para dedicar-se desenfreadamente aos prazeres da carne, e ao labor de converter-se em uma espécie de déspota ilustrado, embora degradado; o ditador dorme em uma rede em seu suntuoso piso parisiense. Concerto barroco, o último romance de Carpentier, marca um retorno similar. Aqui vemos a influência da América na Europa. O barroco será assim o desarranjo do classicismo europeu como resultado do heterogêneo latino-americano: o Montezuma de Vivaldi, o esboço em gesso de tradições e traições, anuncia o jazz e outras manifestações exógenas do tipicamente novo do Novo Mundo. Esse barroco é a nova metáfora carpentiana para o americano, que será a mistura, o sem estilo e sem método. Nos últimos dois romances, surge um elemento novo em Carpentier, o humor.

García Márquez declarou que quando leu O século das luzes jogou no lixo o que tinha escrito de Cem anos de solidão e começou de novo. A influência de Carpentier sobre os novos novelistas tem sido enorme, às vezes, como no caso de García Márquez, por estímulo positivo, e outras, como em Severo Sarduy (quem parodia Intimidação, em Gestos), por estímulo negativo. Em prosa ficcional Borges e Carpentier são as figuras mais importantes na primeira metade do século XX na América espanhola. Borges por haver levado sempre até suas consequências mais radicais os problemas mais difíceis do ofício; Carpentier por ter moldado a uma temática latino americana experimentos novelísticos de alta envergadura, e sobre tudo, por ter feito da história latino americana seu tema principal. Além do que, por essa "curiosa indefinição" que o achacou Marinello em 1937 (no livro Uma novela cubana, publicado pela UNAM, México), Carpentier logrou dar causa à mais candente problemática hispano americana: a da falta de identidade, e conseguiu provar que, pelo menos em literatura, essa indefinição é o que define o americano. Ainda que, talvez, seja precisamente a indefinição o que defina a literatura, e então o exemplo de Carpentier será muito maior. 

Igualmente exemplar foi a entusiasta e laboriosa adesão de Carpentier à Revolução Cubana, que por fim lhe deu pátria desde a qual orientou suas multiplas peregrinações, e demonstrou a possibilidade de superar as contradições entre a vanguarda artística e a política.



31 março 2025

Cenas marcadas pelo tempo


A bela capa

Saiu a capa final, e com ela o miolo revisado. Trata-se de meu mais recente livro, Cenas que se diluem com o tempo, a ser lançado em abril, ou no mais tardar, em maio. Editado pela Urutau, tem sido uma nova experiência em termos de publicação, um ganho em termos de qualidade profissional. Desde a preparação da capa, passando pelos cuidados com a revisão pelo acabamento do livro, e considerando as dificuldades em publicar com a editora (pelas chamadas regionais serem muito concorridas), tenho uma grande expectativa pelo resultado final. 

Já estamos no fim do processo de revisão, e o próximo passo será a edição em si. O livro conta com 144 p. e desta feita, sem prefácio. Considerava até dois meses atrás como o meu patinho feio, pois ali está reunido um conjunto heterogêneo de gêneros e formatos diferentes, pequenos e médios contos, crônicas ficcionais, relatos de viagem, um fragmento de diário, poesias em prosa, um esboço de roteiro e até mesmo uma curta peça dramatúrgica. Mas com o resultado da chamada, iniciei leituras de revisão e me dei conta de um prazer inesperado que a obra me proporcionou.

O conjunto reúne 56 textos, sendo 28 singelos, afetuosos, recordatórios e 28 tensos, ardilosos, dramáticos, uma obra sem prefácio. Optei por reunir textos avulsos, alguns guardados há anos, que deram uma curiosa e ao mesmo tempo harmoniosa consistência de coisas diferentes que consolidam uma obra. Um livro que descreve situações, circunstâncias definidas por um tempo passageiro, apreendidas ao sabor do momento e que aos poucos se deixam diluir.



22 março 2025

Hackman, Gaza



Gene Hackman faleceu há poucos dias, juntamente com sua esposa. Este é um doloroso caso que pode se transformar em narrativa: dois idosos que moram isolados, praticamente sem contato com amigos e um deles (a esposa) falece e o outro (Hackman) tomado pela doença de Alzheimer, não sabe como reagir, ou como se virar, até que acaba fenecendo. Muito triste esse desfecho, considerando a cadeia de acontecimentos – a morte da esposa por hantavírus, sua incapacidade em reagir e buscar ajuda pelo avançado grau da doença. Um grande ator ganhador de dois Oscars, que marcou suas atuações pela presença cênica. Tinha uma grande admiração por seu trabalho, em especial no impactante Mississipi em Chamas, de 1988. No final, de nada valeu toda a fama e reconhecimento.

Israel volta a atacar fortemente Gaza, depois de dois meses de trégua, e deixa mais de 400 mortos. Como escrevi no posfácio de minha peça Terra Devastada, não haverá paz, porque não há negociação possível, considerando Netanyahu e Trump no poder. Ano que vem teremos eleições, e a pressão sobre a esquerda política só tenderá a aumentar. Até lá, Lula deverá se segurar porque é Lula, mas e depois? Paro por aqui, sigo para Santo Amaro.



03 março 2025

A amplitude de Ainda Estou Aqui


Greg Girard

Esse o Brasil, uma conjunção de formações díspares que não se alinham e no mais das vezes, se contradizem. Uma sociedade rompida que se constrói pela autofagia, onde os grupos mais fortes se estabelecem em detrimento dos mais débeis. Assim sempre foi e segue sendo, ainda que vez ou outra governos mais populares estabeleçam algum nível de desenvolvimento social. Leio Verdade Tropical, de Caetano Veloso com gosto, com uma defasagem de trinta anos desde sua escritura. Sua narrativa descreve o tempo todo o que se faz e o que se destrói em uma sociedade autoritária. O episódio de sua prisão, junto com Gilberto Gil, é de uma ignomínia absoluta, só mesmo produzida por um sistema ignorante até a medula, e que dispõe de poder.

O processo da detenção dos dois não difere da de Rubens Paiva e de tantos outros brasileiros. Lembro de Rubens Paiva em razão do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Moreira Salles, ter ganho o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro ontem. Uma festa coletiva, que tomou conta das ruas do Brasil, que demonstra a penetração que o filme teve nas várias parcelas da população. Mais de cinco milhões de pessoas só no Brasil assistiram no cinema Ainda Estou Aqui, propiciando uma compreensão muito clara do que significou a violência militar sob a ditadura, demolindo as falsas convicções de que o período foi de desenvolvimento e bem-estar.

O trabalho didático desse filme foi mais efetivo do que todo o processo de educação formal em 60 anos! Esclareceu, coletivamente, sobre os horrores da ausência de liberdade e de direitos civis. Talvez o ponto chave do sucesso foi uma narrativa que expõe a brutalidade de maneira indireta, sem a necessidade de conduzir o espectador às salas de tortura com a cadeira do dragão e as maquininhas de choques elétricos. E mais ainda: expor a sorrateira invasão domiciliar de uma família de classe média, quebrando sua estrutura com o sequestro e desaparecimento do pai. Tudo manifestamente decidido e conduzido nas entrelinhas do terror, sem rosto e sem finalidade.

Caetano e Gil foram sequestrados por terem participado de um show onde os artistas expunham a faixa famosa de Torquato Neto, Seja marginal, seja herói, sobre a reprodução de um corpo estirado no solo. A significação desse gesto superava a compreensão das mentes obtusas dos militares de plantão, que viam aí uma associação intolerável com propósitos subversivos. É provável que o tropicalismo e sua rebeldia cultural tenha incomodado as casernas, que na falta do que fazer, passaram a deter artistas. Os dois meses de prisão de Caetano produziram um terrível mal-estar depressivo, superado a custo mesmo no exílio em Londres. Espíritos sensíveis, que acusavam a dor e a violência recebida, sem uma pronta reação. Assim foi também com frei Tito, que não apenas foi detido, como duramente torturado, e que acabou se enforcando no exílio francês.

Eunice Paiva não se dobrou, embora tenha mantido um impressionante sangue frio no método que seguiu para denunciar a ditadura. Até onde pôde, lutou por saber do destino do marido, até que quarenta anos mais tarde, a partir dos relatórios da Comissão Nacional da Verdade, consegue finalmente a declaração de que Rubens Paiva tinha sido torturado e morto em dois dias, e seu corpo diligentemente desaparecido. Como ela, muitos não se dobraram ao longo dos anos.



26 fevereiro 2025

Carlos Fuentes e Nuestra Latinoamerica


Foto de Fred Herzog


De minha parte, segui de certo modo envolvido com a leitura de La Gran Novela Latinoamericana, de Carlos Fuentes, intercalando com a apreciação deste ou daquele ensaio sobre os escritores de Nuestra America que ele destaca. Uma leitura difícil de abandonar, seja onde for. Não saio de casa sem o volume, e lá estou sentado em qualquer canto, devorando de modo aleatório esta obra que, detendo-se nas idiossincrasias do imaginário, expande-se até nos encontrar no mundo real. 

Com alguns autores Fuentes demonstra um apaixonado envolvimento, e descreve suas obras com leveza, carinho e profundidade, expondo a força característica de seus signos. É assim, por exemplo, quando fala da obra de Lezama Lima e suas eras imaginárias, "se uma cultura não logra criar uma imaginação, resultará historicamente indecifrável", especificamente em Paradiso. De Roa Bastos e seu Eu, o Supremo, ou da Comala do impressionante Juan Rulfo, alinha a versatilidade dos seus aspectos mágicos. 

Assim, o painel apresentado em La Gran Novela... captura o leitor mais alheio à realidade latino-americana. Um painel que se monta e se torna mais atraente à medida que Fuentes avança deste para aquele autor, criando uma espécie de relação entre eles e reafirmando a matriz comum da solene história a que pertencemos, registrada pelo maravilhoso da grande novela latinoamericana. 

O texto sobre o nosso Machado - que ainda não li na íntegra - produz o seguinte comentário: "Machado de Assis, Machado de La Mancha, o milagroso Machado, é um pioneiro da imaginação e da ironia, da mestiçagem e do contagio em um mundo ameaçado cada dia mais pelos verdugos do racismo, da xenofobia, do fundamentalismo religioso e outro, implacável fundamentalismo, o do mercado".

Pois como não pensarmos nossa ficção latino-americana como uma apropriada metáfora de nossa realidade do passado e do futuro? 

(Diários, julho/2012)





18 fevereiro 2025

Reflexões de botequim


A lua da Bela Vista

Mais para além, mais para além da mera intenção em dizer que se está feliz porque, afinal de contas, é um otimista. Assim, Rubem Montillo passou a refletir, enquanto comia sua fatia de pizza, no balcão da Santa Clara. Se a alegria se deve ao caráter quietista do otimismo, a isso em que as coisas se resolvem por uma saudável iluminação do destino, não duvido que logo essa bolha explodirá em lamurioso pessimismo. O otimista convicto não alardeia uma apreensão colorida de mundo para o mundo. Soa piegas e depois, bem, depois o otimismo não é uma graça, mas uma espécie de disposição natural que mobiliza para a ação. Supõe a intervenção humana, consciente, racional, destacando o essencial, a compreensão do compromisso. O fato de estar propenso a por si só revela o estado de espírito otimista por excelência, sendo desnecessário encontrar razões para decliná-lo como uma força mítica.

Desta forma, uma frase como hoje o dia está belo, sem umidade excessiva, sem ruídos, de uma luminosidade suave e morna, e de outra parte sinto uma disposição para escrever, para arrumar minhas coisas, de sorrir e clamar para as pessoas o quanto a vida é bela..., talvez não seja a banalidade desprezível de um pensamento da revista Caras, mas inevitavelmente o início de um torpor indigesto, propondo certo otimismo para terminar no vazio. Um torpor fútil, no caminho da prevalência do supérfluo. As derivas de Montillo esbarraram em uma frase que recordou de Benedetti, o pessimista é um otimista bem informado... Talvez bastasse para distrair-se em seu devaneio.

Mas prosseguiu, avaliou que na pós-modernidade não existe disposição para que as proposições elaboradas sobrevivam. Sem sustentar um olhar apreciativo e condescendente, subsiste à deriva esse ser-aí liquefeito, assustado, preconceituoso, esperando cada qual o seu Godot. Lembrou-se de uma frase de Bauman, não há sonho comunitário vigente, mas a sensação de segregação e exclusão... As amarras típicas de nosso tempo, que arremetem cada vez com mais força ao isolamento e à intolerância, sob a proteção dos muros salvadores. A relação cotidiana pode ser considerada como uma bênção, sempre com conforto e proteção entre os iguais. E Rubem Montillo pareceu chegar a uma conclusão momentânea, antes de pedir a segunda fatia: nesse ambiente asséptico desponta o otimismo pueril dos indolentes, que nada acrescenta a não ser desilusão e miséria.