27 julho 2010

Victória


(...)
Él te sembró toda la piel de quieros,
y quiero a quiero calentó tu piel,
desabrochó tu soledad por dentro,
de un sólo quiero y de una sola vez.
(...)
(Balada para él, H.Ferrer/A.Piazzolla)

(...) e então Victória toma por opção adentrar o maravilhoso recinto, que está sob o murmúrio soturno das noites mais frias, como imaginava, e contorna uma a uma as mesinhas de fino mármore, estranhamente não mais contida pela timidez ordinária que a impediu por todas as vezes anteriores de tomar essa decisão, de dirigir-se até a figura masculina na mesa do canto, e em seu caminhar vislumbra a luminosidade espargida que rompe o vitral no teto, luz transluzente que insinua uma parte do balcão e os semblantes congelados e mais mesinhas rodeadas com suas cadeiras estofadas, os garçons circulando em seus trajes impecáveis, as bandejas com os cafés em sua brilhância difusa, a elegância morna e soturna que a convida e a faz deslindar os pensamentos nunca tão decididos... as sóbrias colunas e os lustres como grandes pingentes lustrosos que adentram o fog e se imiscuem a um fundo indiscernível, e desse modo, vagamente maravilhada, sabe que deve prosseguir nesse foco de luz que a conduz para a mesa que se aproxima e desvela o homem sentado, o braço esquerdo tombado sobre o colo, o terno escuro e o pañuelo cinza em torno do pescoço, as pernas cruzadas ao lado da toalha de fino algodão que recobre a mesa e que tem a mão direita abandonada na companhia de duas taças vazias, uma garrafa de vinho tinto e de uma única rosa vermelha que se contrapõe pela vivacidade do tom vermelho, em um vasinho esguio e delicado... e quanto mais ela se aproxima, mais ele releva o sorriso gentil, adorno sensível de uma longa espera, mais o espaço ao redor se dissipa em uma opacidade nebulosa, como se tudo mais fosse descartável diante da emoção de um encontro longamente acariciado... e quanto mais atenta aos contornos do homem, mais esse calor de seu peito a engolfá-la e sugerir mil maneiras de expressar a leveza da alma, e deixar-se levar pela circunstância, pelo ambiente de vozes sussurradas, pela sonoridade harmoniosa que se desprende aos bocados do bandoneón imemorial, a arranjar as primeiras notas de um tango que abstrai os pensamentos e abarca os sentidos, e quando o homem levanta-se para recebê-la, parece mais alto do que ela considerava em seus inefáveis lampejos de fantasia, e toma-a pela mão enluvada e oferece a cadeira mais próxima, voltada para o salão, para a espessa fumaça que concentra o longo salão e que os recobre com o olor característico de tabaco, e a enreda na insidiosa teia de um querer supremo, que não oferece escape, porque também não há esse impulso de escapar, mas sim de acudir ao ensejo que a circunstância marcada por tanta leveza decide conjurar... e se é assim, ela se deixa levar porque não há gestos suficientes que a permitam romper com a atração daquele sorriso que parece absorvê-la por uma vida, sem promessas nem escárnio, apenas as mãos que agora se tocam e os corpos, mais próximos e radiantes, e tão mais voltados para as sutilezas do espírito que desvelam, cada qual ocupado com a fisionomia que apetecem, colhidas em fluida paixão... neste momento em que o compasso marcado a enleva com o vigor de uma dança, e conduzida ao centro do salão se deixa assinalar pelos movimentos alternados e envolventes do tango, os passos enlaçados e nunca tão decididos e nunca tão plenamente feliz (...)


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