28 junho 2010

Tarde de segunda-feira...


Nada que contemplar, em casa, os móveis, os mesmos objetos, dispostos em seus lugares de sempre, uns poucos acumulados provisoriamente sobre a mesa e as poltronas... nenhuma ideia a respeito, os dias de far niente chegaram e me tomam, mostram-me o quanto estou exangue e farto da mesmice... enrolo o cachecol (nem sei porque, faz calor) e tomo a máquina fotográfica, antes que o Galvão comece com sua nadificação midiática, alcanço as ruas, ganho a cidade, mais uma vez, ternamente, brevemente, minha cidade, que começou a me abandonar nos anos sessenta, com a tal pujança econômica, só não nos diziam que o endinheiramento seria circunstancial e muito restrito... e que a cidadania seria perdida para a ganância, para esses poucos que nos ludibriaram com o discurso de que o bolo cresceria e seria dividido... e não foi, e a cidade se perdeu, abandonando-nos a todos, os mais espertos acharam um jeito e se encastelaram em seus fortins inexpugnáveis... inexpugnáveis?, há, há, bando de insanos e, com o correr do tempo, incompetentes... e como não surgiu um projeto nascido nas entranhas neoliberais (não foi por falta de tempo!) ficamos todos à mercê do temor do outro, nada mais apropriado para uma cidade que segregou-se como poucas, fiel que foi ao almanaque do liberalismo individualista e... do automóvel, esse símbolo da rapidez, do isolamento e da brutalidade... nada mais São Paulo do que milhões de automóveis desbaratados nas ruas de ninguém, mais impotentes do que os carros da Autopista Sul de Cortázar, ocupados por indivíduos assustados com o outro, com o tempo perdido, com o futuro imponderável... Mas tudo isso não interessa, não quero ouvir os prolegômenos da Globo e as previsões do Galvão e as matérias com as famílias dos jogadores e as torcidas uniformizadas e... saio com vontade de recuperar a cidade, minha cidade, e registrá-la, ainda que pontualmente, e subo a Augusta, ultrapasso dezenas de torcedores canarinhos, vestidos com a amarelinha e portando a vuvuzela, dirigem-se em blocos para os lugares fechados, eis a minha cidade que nos momentos de patriotismo exacerbado (e consentido) prefere os lugares privados em vez do espaço público, da comemoração coletiva, do sorriso dividido entre diferentes... nada disso, são homens e mulheres que trabalham nas redondezas, no pedaço mais rico da América Latina, e no entanto não lhes resta mais do que as migalhas do descanso oportuno e da comemoração possível... Alcanço a Paulista e o movimento torna-se mais acelerado, falta pouco, mais uns minutos e a seleção entra em campo, não quero ver isso, pelo menos desde o início, encontro o jornaleiro de sempre, diante do Conjunto Nacional, cumprimento-o afetuosamente e prossigo, o esvaziamento se acelera, também isso, minha cidade imprime velocidade em tudo, a vida pautada pelo passar de um lado ao outro, de uma situação à outra, de um encontro ao outro, sem que ninguém queira se dar conta da fragilidade promovida pelo ritmo sem presteza... a saúde... bem, mas agora não há tempo, ninguém quer saber de morrer no trânsito ou de estresse, quando muito diante do telão mais próximo e assim caminha a paulistanidade... Meu primeiro registro, o mendigo de sempre, ali no mesmo pedaço, no mesmo quarteirão, parece-me, diante de tanta alucinação produzida de supetão, o mais lúcido, ele reproduz o mesmo comportamento, sentado na calçada, sua cabeleira imunda, a roupa malcheirosa, um ponto cinzento que cresce à medida em que me aproximo e passo - como tudo passa na cidade - passo por ele, que parece ausente em relação à grande festança da copa, do matraquear galvaniano, dos bons negócios por trás das imagens nítidas e dos gols que virão... numa ocasião ele se lavava na água corrente jogada de um dos prédios de luxo, um jorro intenso ao lado da guia, e ele com as pernas abertas, deixando a água vazar para baixo e as mãos em concha acumulando o possível para lavar-se... e outro dia conversava... conversava consigo mesmo, palavras entrecortadas, enquanto agitava as mãos e a cabeça, era convincente em seu gestual, de terno e gravata em um escritório daria a boa impressão de um empresário fechando um bom negócio... mas ali, no seu canto despojado, em meio ao lixo acumulado dos condomínios verticais, não passava de um zé-ninguém em meio a seus delírios... e avancei, segui para os interiores mais vazios, ruas que tombam para a encosta mais nobre do espigão da Paulista, não tive o que registrar senão o silêncio mórbido, que se quebrou duas vezes quase em seguida, os gritos dos interiores plenos, os pulmões felizes, as bandeiras auriverdes indicando para quem aquele pedaço se inclinava, ainda que politicamente signifique um bastião de forte oposição (e rejeição) ao governo dirigido por um ex-operário... sim, também isso, a Paulicéia ao tempo em que se desmilinguiu espacial e socialmente, tornou-se ainda mais exclusiva do ponto de vista do conservadorismo xenófobo e apátrida, garantindo-se com a riqueza acumulada e desprezando a miséria que ajudou a constituir... mas agora é hora de torcer, de torcer por esse país dirigido pelo operário, bem, dane-se... e que será dirigido por uma mulher, bom, dane-se também... torcer então para quê? por quê?... o que espera essa bande à part paulistana, exclusiva, que não ultrapassa o limiar de suas identificações classistas, que assume um lugar tão somente como pouso efêmero para seus voos incessantes pelo mundo?.... Essa massa globalizada que mal conhece as origens da nação e jamais se bateria por elas... ou por qualquer outra coisa, deixa pra lá, a seleção está em campo e é o que conta... e tem o Galvão produzindo os tempos mortos com sua narração esvaziada... como a São Paulo da pós-modernidade ou como os vagos interesses neoliberais... mas vazios que não determinam um nada, ao contrário, preenchem, infestam o presente contínuo, esse que não se cansa de esvair ao longo do evento e que acompanhamos diante da telinha... então ele consegue nos capturar com sua fala infindável, determinando a impossibilidade de qualquer análise reflexiva, sua voz extrapola o fato e nos apreende nas bobagens hipotéticas, nas tradições de almanaque e infunde uma expectativa que tende a se esvair no momento seguinte... que não consegue, pois no momento seguinte uma nova surpresa, um novo arcabouço de palavras que se estende ao máximo... a continuidade da narrativa esvaziada como a constatação inevitável do vazio de ideias, de pensamento, de vontade de ver futebol... e uma vez terminada a porfia, de algum modo descobrimos que nada sobrou, além do desnecessário produzido... Galvão nada mais é do que a pura ativação do descartável, a narrativa que existe sem desejar existir, que se apresenta esgarçando o presente e elaborando o desnecessário, eis seu pobre mérito... E nesse ínterim, já atravesso de volta a Paulista, desço a Augusta no sentido do Bixiga dos teatros e da resistência cívica... me aproximo de casa, na rua ainda ouço o rufar das vuvuzelas, a comemoração abafada, esse silêncio no centro da minha cidade perdida, que não sei se a recuperei nessa breve flânerie... ainda visualizo uma cabecinha branca se esticar para fora da janela, atenta para algum movimento ao longe, solitária, indiferente, sei lá se preocupada com a copa midiática...

Como é bom pensar, ainda que por um mísero momento, na copa não-midiática, na verdade que se encontra por trás da comemoração natural, resultante do encontro das pessoas possuídas genuinamente pelo evento, sem a massificação das emoções produzidas e estimuladas pelo negócio. Então vejo, ao sair novamente, as pessoas se encontrarem e confraternizarem em gestos gentis, retomando o calor da sociabilidade. Pessoas que se dirigem ao ponto de ônibus, que se encontram nas saídas dos edifícios, que comemoram nos bares, que singram para qualquer outro destino. Estão vestidas com as cores do país, nos mínimos detalhes, roupas, sapatos, fitas, colares, até esmaltes verde-amarelos. Saúdam felizes e marcam presença no espaço público, ainda que de passagem. Não há referência ao garrote da narração global, mas sim à televisão (uma importante diferença), às imagens que as impregnou e as deixou exultantes. A cobertura que tratou o espectador como um tolo incompetente, foi por ele mais uma vez jogada na lata de lixo. E agora, em pequenos grupos, as pessoas se movimentam para discutir livremente os acontecimentos. Troca coletiva de impressões, ainda que de passagem...

Sem forças para nada!... O espírito do viajante que se impõe e aguarda a hora de partir... esse viajante que não desejaria lançar-se em mais uma aventura apenas por si... Por ora, não consegue avançar no prazer da leitura de Le Père Goriot... não consegue se concentrar na alegria da escritura de Sebastião, sujo de areia...

O que se passa, mon vieux camarade?...



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