15 junho 2010

Patriotismo consentido



Retomamos, pois, a alucinação social estimulada pelos meios de comunicação de massa, infundindo na população essa sensação gregária (sonorizada pelas vuvuzelas) que ao contrário de preencher o espírito, o conduz ao esvaziamento. Então nos sujeitamos, docilmente, aos ritual do espetáculo insípido, carga de emoção latente repetida a cada quatro anos, que pouco ou nada acrescenta a não ser nos predispor a mais produtos, a mais mercado...
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Bandeiras nas casas, bandeirolas nos carros, camisetas e chapéus verde-amarelos, vuvuzelas tonitruantes, lojas decoradas, publicidade a mil, oferecendo todos os produtos possíveis... e mais reportagens à porta dos estádios, os convidados nos estúdios, as análises infindáveis sobre as possibilidades, o retorno das mães e pais Dinás, os búzios que indicam o campeão, as falas excessivas, muitos dizendo mais do mesmo, uns poucos que desejam falar muito sem nada dizer, sobre o que de repente torna-se o mais importante para todos...
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À alucinação coletiva proporcionada pela expectativa, sobrepõe-se a narração hegemônica do evento, que trata de mobilizar sentimentos adormecidos na tribulação da vida cotidiana. Tudo é permitido, desde que a reflexão individual seja substituída pela produção da catarse coletiva. Deste modo, o narrador hegemônico não encontra limites, tampouco resistência, para disseminar seu ponto de vista, o olhar dominante que edita a apreciação do espetáculo. Somos mais uma vez tolhidos, não só não basta deixar de refletir, como somos conduzidos a assumir o sentimento do narrador hegemônico, sua zanga, seu preconceito, sua alegria extemporânea, seu receio, seu laconismo...
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Começa o jogo e as vuvuzelas silenciam até o próximo gol, se houver. Elas surgem como um complemento adicional à não-interação, a esse estar-aí sem dizer nada. São, porém, bem-vindas e estimuladas pelas vozes dominantes: seu ruído ensurdecedor é o som por excelência da alucinação coletiva, é o fundo adequado para promover a audiência, e tem a capacidade de exprimir a força de um coletivo sem corpo e sem voz - característica essencial do patriotismo consentido. Quanto mais intensa essa presença-ausência, mais o esfuziar do transe produzido, que emana algo como felicidade pela coroação do momento sublime...
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Na narração hegemônica não há preocupação com o aspecto histórico e social do evento transmitido, apenas com o gesto efêmero da alucinação coletiva astutamente produzida e conduzida. Não se constrói referências, incrementa-se o deleite pela pura apreciação do espetáculo em si. O conteúdo e suas nuanças são devorados pela sucessão de impressões criadas ao sabor do acaso; o desenrolar do fato acaba por trazer essa ambiguidade, a profusão de possibilidades interpretativas, que proporcionadas pela narração hegemônica, conduzem ao fascínio fenecido no instante seguinte.
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Os estímulos intensos e dissipáveis nos ocupam dessa maneira sucessiva por uma hora e meia, duas no máximo. Antes do desgaste nos apunhalar, o fim do jogo e o retorno à realidade, imobilizados pelos resquícios do transe, subjugados pelo patriotismo inútil...


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