10 junho 2010

Esvaecimento

Morgan era bem jovem quando pensou pela vez primeira na ideia do esvaecimento. Após dias de reflexão sem uma razão específica, um fulgor imaginativo o enredou em meio à sugestão de que a morte não seria o termo definitivo da vida, mas um olhar anestésico do seu duplo, que permaneceria ainda por vinte e quatro horas rondando o próprio corpo. Seria, segundo sua compreensão cada vez mais esforçada desse adeus, uma contemplação final do que fora a vida a partir das reações dos outros. A consciência final antes de sucumbir de modo absoluto. Esse pensamento lhe parecia justo – uma justiça que não só abarcaria aos ateus como ele, como também a qualquer indivíduo de qualquer credo, pois não havia contra-senso metafísico ou dogmático que impossibilitasse tal ocorrência. Nada mais do que uma autocontemplação, que permitiria aos crentes uma delicada penitência, um primeiro passo rumo à eternidade, e aos demais, uma suave despedida, um acerto de contas de si para si.

Morgan viveu sua vida e aos 84 anos tombou na sala de seu apartamento. E ali ficou, pois vivia só. Sua única filha viva ligaria dali a três dias e a faxineira viria apenas no final do mês. Não tinha visitas programadas e sua ordem expressa aos empregados do prédio era que não o importunassem, pois gostava de ler durante a tarde, após uma breve sesta. E foi assim que, de um momento para o outro, pôde vivenciar a sua contemplação, compreendendo que havia fenecido. Mas o que poderia ter sido uma experiência final avaliando as reações dos outros, acabou sendo uma longa e improdutiva percepção de si, imóvel no meio da sala. Curiosamente Morgan constatou que se transformara em pura apreensão, sem suporte material, sem a capacidade de transmutar-se para outros confins. Pelo que entendeu, prosseguiria naquele espaço, sabe-se lá por quanto tempo.

Na verdade, não era a questão do tempo o que o preocupava, mas sua desolação em morte, seu abandono sem a possibilidade de anunciar-se extinto. Como se seu duplo, fiel ao corpo tombado em posição fetal, fosse impotente para abandoná-lo. De modo que permaneceu como uma aura-sentinela, flutuando no entorno de um ambiente que já não lhe dizia mais respeito. Avaliou a possibilidade de ocorrer uma visita surpresa, de o telefone tocar e uma voz deixar um recado combinando um encontro, do zelador bater para entregar-lhe uma correspondência, de uma lufada de vento mais forte adentrar pelas janelas e refrescar-lhe a face... Pensou no cão que não teve, na companheira que abandonara há anos, nos vizinhos que não conhecia, nos amigos que se afastaram, na filha que compunha uma estrela binária com ele e que por sua culpa, a isolara do mundo transformando-a num ser subserviente... apenas recuperou uma sucessão abrupta de decisões relegadas...

Gritar já não podia, sonhar era tarde e ver, não mais que o seu corpo sem vida, abandonado na pequena sala. Estava condenado a refletir livremente, por um tempo indefinido e foi assim que subsistiu em seu estertor extra-corporal. Não sentiu frio, não sentiu olor, nem fome ou dor. Apenas apreendeu os fatos e os relacionou da maneira mais objetiva possível. Não teria tempo para ludibriar-se, por isso procurou pensar em todas aquelas coisas que invadiam-lhe o espírito, num jorro de percepções sensitivas, sem lógica aparente. Do grito primal para o abraço do amigo na sala de aula para a chuva no quintal para o amor da sua vida para o natal na casa da avó para o orgasmo na terra úmida para o sabor do feijão da mãe para o nascer do dia na montanha para o choro do irmão para o parto da filha para o olhar de desespero na doença do pai para o último livro que lera para...

Morgan arrastou-se nesse arremedo de impressões até se dar conta de que o torpor final por fim o nadificava, visto que suas apreensões fraquejavam e que a luz esmaecia antes mesmo da chegada do crepúsculo. Teve forças para mirar-se pela última vez e a lamentar o esvaecimento, que cortava-lhe de modo definitivo os laços com sua condição humana.

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