22 fevereiro 2010

Clarice e Fernando


Fernando não suportou a profundidade do silêncio, que se estendia por semanas a fio. Tomou o fone, discou e antes do quarto chamado, uma voz feminina despida de paz atendeu. O alô de Clarice não expressava outra coisa que dever, um dever sólido e sem graça, calcado num desses gestos burocráticos que representamos na vida.
Tudo está terminado assim, sem ao menos um olhar de adeus?
Encontraram-se dias antes, na casa de uma amiga em comum e falaram com as pessoas sem que cruzassem seus olhares, ainda que se percebessem nos desvãos da indiferença mútua. Ao contrário do que poderia parecer, Fernando não queria dar ao telefone um ar de falsa gravidade e por conta disso, envolto num tom de literatura barata. Apenas tateava em sua pergunta um caminho de reencontro, fosse lá como fosse. As centelhas fulguraram e voltaram a enriquecer, ainda que por frações de segundo, o imaginário de um Fernando febril. Vagas idéias já tidas, lembranças de situações vividas, turbilhonaram seu momento de breve espera... Por que havia de ser tão calcinante os momentos pós-plenitude?... tão alheios à vida real... esse amor convergente, sublime ao alcançar as planuras do prazer e que se comprazia em perder-se no espaço sideral da indiferença... morbidez dos atos insensíveis... o desgaste extenuante, fiel à incompletude e que imobilizava a alma, sempre e sempre, teimosamente, feito a roda da fortuna, miserável, cruel em seus desígnios, até que novamente retornasse a mais algumas horas de pleno prazer... ao pleno desprendimento das almas felizes... ao belo sorriso, à fremida cópula, ao reconfortante sono compartilhado... e então sobrevinha o novo dia, uma nova semana e com ela, novas tensões e mais indiferença... de novo a roda da fortuna em movimento... meras responsabilidades alhures agiam como componentes diversionistas de um amor que não sabia se recompor de seus melhores ou piores momentos... ... súbito a lembrança da voz, de uma outra voz, captada em algum lugar, em algum momento da vida, mas que se dimensionava num vazio longínquo e que de vez em vez teimava em retornar, como agora nesta fração de tempo em transe e que ilustrava a Fernando a perenidade da sua perdição... a voz da velha sem rosto, com um doloroso sorriso malparado por trás das trágicas lentes escuras de seus óculos, a repetir ao garçom, Só mais um pouco de chá, só mais um pouco..., a frase fundamental, como se a sua existência humana se pautasse pela completude de um gesto, o ápice de um ato anunciado por uma voz sinistra, prestes a regozijar, sob um sorriso sem carnes flácidas, sem movimentos senis, sem face definida, mas ainda assim a pura imagem de uma voz encarquilhada que se sobrepunha, vindo do nada para atormentar-lhe os pensamentos, Fernando se dava conta do tempo suspenso em pura expectativa e prosseguiam os delírios mais desencontrados, circulando para serem capturados pela consciência alucinada, antes que o silêncio do outro lado da linha sucumbisse com o aflorar das palavras de Clarice, o corpo febril a embaralhar o discernimento levava Fernando a envolver-se de modo carnal nas questões instantâneas... perguntas do tipo O que ela deseja, o que lhe dizer...?..., ou as derivações subjacentes, não menos importantes, Como rever seu sorriso envolvente...?, pura decorrência da amargura que os tolhia e os afugentava...
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...Qual dolorosa dificuldade!... Rompo com esse turbilhão em que atiro minhas personagens, abandono a função narrativa (e a descrição da consciência atormentada de Fernando) tomado pela força indomável que cala minhas personagens... E não consigo delineá-las para além desse repentino imobilismo! Entrevejo na dor desse impasse um orgulho insensato... rancor envolto em paixão – o fel escorrendo das feridas dos corações de Clarice e Fernando – e que assim, de forma imprecisa, insiste em repeli-los na exata medida em que os aproxima, numa convulsa torrente de dor e paixão, uma sem poder se desvencilhar da outra, uma não subsistindo sem a outra, decompondo sensibilidade, horizontes, sonhos... a própria razão da existência de um amor tão imenso e tão frágil, a contradição dialética, o prazer da amargura em pleno desperdício. Nas palavras de Bowles, quantas vezes mais apreciarão a beleza da lua cheia? Para eles, a vida não parece ter limites, enquanto os dilui em seu fragor delicadamente mortal, sem qualquer comiseração. Pode-se dizer que os anos a seguir se transformem num fardo monstruoso, sem que lhes seja permitido deleites definitivos como sentir o murmúrio das águas do mar lambendo a areia, deitados no leito de amor da casa tão sonhada por eles... mas tratamos da equação da dor, a dor que se estabelece, que baixa a cortina do sofrimento incomunicável, impedindo a catarse plena do gozo enquanto... enquanto não compartilham os seus caminhos cheios de luz, de uma harmonia desigual, lúcida e ao mesmo tempo incerta... ... como posso acuá-los e aprisioná-los de acordo com meus preceitos e caprichos?!... Fernando me diz da sua asfixia e eu o entendo até certo ponto; Clarice, em seu jeito reservado, nada me diz, mas eu a compreendo pela expressão de sua mudez e por tudo isso, tão próximos e tão distantes, sintonizados em suas maneiras de vivenciar a angústia, sem desejarem a intervenção de quem quer que seja, e eu lhes ofereço o cinismo de uma velha sem face, que solicita ‘mais chá!...’, enquanto se desvanece em meio aos derradeiros suspiros de uma vida inútil... Sei que a dor de cada um me alcança, tornando-me um cúmplice de mãos atadas... eles se me escapam do mundo em que lhes proponho, para exercerem a liberdade de seus sentimentos... ah, que mundo posso lhes oferecer, a não ser o mundo em que eu almejo contemplá-los...?... essa é a mais genuína realidade, torno-me uma testemunha vil, não um cúmplice, e me esforço para transformá-los em personagens da minha história, quando de fato eles se esquivam e me atiram na face as suas verdades sentidas...
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Clarice e Fernando ensaiam retomar as palavras, o próximo ato os mobiliza para um gesto mais desenvolto, para a fala buliçosa sem peias contritas... todavia, (sempre a presença de um todavia...) o sentimento mútuo não os enlevou mais de um instante, em que as divagações de Fernando se diluíram como o hálito ao vento e o coração de Clarice teve uma fugaz oportunidade para aprofundar seu desamparo. Um corte, sim, um inesperado corte da ligação, que ao fim e ao cabo permitiu que seus destinos permanecessem em aberto...
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