28 fevereiro 2010

O intelectual impoluto




O mundo para ele era uma bosta, exceto quando ouvia música.

Somente a música permitia que as dissonâncias do mundo deixassem de ser a fedentina incompreensível que o incomodava, a música de suas próprias palavras.

Ao mergulhar em seus volteios de fina harmonia, peregrinava por infinitos círculos aconchegantes, de uma dimensão tão inapreensível quanto suportável...

E sua arrogância, provisoriamente embalada e adormecida.



27 fevereiro 2010

Aproveite o passeio



Prestei bastante atenção na garota sentada num banco, do outro lado da cerca: uma vez retirado o papel que envolvia a maçã, sobreveio a primeira mordida. Observei-a detidamente, com um prazer que não se esgotava. Ela saboreou metodicamente toda a fruta, com gestos pausados e tranquilos. Ao terminar com a maçã, deixei-a e prossegui em meus passos, margeando o gradil de ferro. Pensei então que seria uma boa ideia fotografar aspectos da paisagem, agora com o intuito de marcar as diferenças visíveis do lado de cá da cerca e do lado de lá. Enquadrar as casas, os edifícios, os parques, o movimento urbano, tendo como motivo principal as pessoas. As deste lado pareciam menos tensas, mais resolutas. Já do outro lado, as ações eram mais suaves, e a bela com a maçã fora um bom exemplo desta leveza. As do lado de cá pareciam ocultar o semblante, impedindo distinguir com nitidez suas expressões, o que me incomodou um pouco. Persisti no esforço e continuei sem sucesso. Não posso fotografar temas que não consigo identificar, expus ao meu acompanhante, ao que ele replicou, Tente aproveitar ao máximo o passeio, seja prático.

Voltei a observar o outro lado e fui preenchido por uma desolação ainda mais intensa. Posso perceber que sua sensibilidade põe tudo a perder, arguiu meu acompanhante, sem que eu tivesse me manifestado. Era evidente como as pessoas de lá andavam mais próximas umas das outras, se tocavam com frequência, abraços e beijos seguidos de longas conversações, tomados por um humor saudável. E igualmente me pareceu que se valorizava a dimensão humana em detrimento dos bens materiais: os imóveis, os autos, as bicicletas, os carrinhos de bebês pareciam antiquados. A impressão é que davam valor ao prazer de desfrutar a luz do sol. Mas do nosso lado também há gente que aprecia o sol, interveio meu acompanhante. Não é só isso, percebo uma clara diferença entre os dois lados, procurei embaralhar o controle mental exercido por meu interlocutor, ao que ele emendou, Não há novidade nenhuma em sua constatação, senhor B, pois bem sabe que aqui e lá são lados distintos de uma mesma moeda. Continue, disse-lhe, esforçando-me por mostrar interesse. Veja, aos poucos poderá constatar que por aqui as coisas funcionam sem interferências, as pessoas preocupam-se com o ganho de suas vidas e são felizes com isso, afirmou. Ora, mas estamos rodeados de artificialismos... e esse controle mental..., ao que ele me interrompeu bruscamente, Acalme-se, tantas novidades têm cansado um pouco o senhor... Minha opção foi assestar a câmara para o rio poluído, pensando em uma fração de segundo quando poderia ter de volta a minha liberdade. O senhor sabe muito bem, a felicidade não é compatível com a liberdade... redarguiu de imediato e completou, Agora, por favor, sem perguntas, sem reflexões, aproveite o passeio...



22 fevereiro 2010

Clarice e Fernando


Fernando não suportou a profundidade do silêncio, que se estendia por semanas a fio. Tomou o fone, discou e antes do quarto chamado, uma voz feminina despida de paz atendeu. O alô de Clarice não expressava outra coisa que dever, um dever sólido e sem graça, calcado num desses gestos burocráticos que representamos na vida.
Tudo está terminado assim, sem ao menos um olhar de adeus?
Encontraram-se dias antes, na casa de uma amiga em comum e falaram com as pessoas sem que cruzassem seus olhares, ainda que se percebessem nos desvãos da indiferença mútua. Ao contrário do que poderia parecer, Fernando não queria dar ao telefone um ar de falsa gravidade e por conta disso, envolto num tom de literatura barata. Apenas tateava em sua pergunta um caminho de reencontro, fosse lá como fosse. As centelhas fulguraram e voltaram a enriquecer, ainda que por frações de segundo, o imaginário de um Fernando febril. Vagas idéias já tidas, lembranças de situações vividas, turbilhonaram seu momento de breve espera... Por que havia de ser tão calcinante os momentos pós-plenitude?... tão alheios à vida real... esse amor convergente, sublime ao alcançar as planuras do prazer e que se comprazia em perder-se no espaço sideral da indiferença... morbidez dos atos insensíveis... o desgaste extenuante, fiel à incompletude e que imobilizava a alma, sempre e sempre, teimosamente, feito a roda da fortuna, miserável, cruel em seus desígnios, até que novamente retornasse a mais algumas horas de pleno prazer... ao pleno desprendimento das almas felizes... ao belo sorriso, à fremida cópula, ao reconfortante sono compartilhado... e então sobrevinha o novo dia, uma nova semana e com ela, novas tensões e mais indiferença... de novo a roda da fortuna em movimento... meras responsabilidades alhures agiam como componentes diversionistas de um amor que não sabia se recompor de seus melhores ou piores momentos... ... súbito a lembrança da voz, de uma outra voz, captada em algum lugar, em algum momento da vida, mas que se dimensionava num vazio longínquo e que de vez em vez teimava em retornar, como agora nesta fração de tempo em transe e que ilustrava a Fernando a perenidade da sua perdição... a voz da velha sem rosto, com um doloroso sorriso malparado por trás das trágicas lentes escuras de seus óculos, a repetir ao garçom, Só mais um pouco de chá, só mais um pouco..., a frase fundamental, como se a sua existência humana se pautasse pela completude de um gesto, o ápice de um ato anunciado por uma voz sinistra, prestes a regozijar, sob um sorriso sem carnes flácidas, sem movimentos senis, sem face definida, mas ainda assim a pura imagem de uma voz encarquilhada que se sobrepunha, vindo do nada para atormentar-lhe os pensamentos, Fernando se dava conta do tempo suspenso em pura expectativa e prosseguiam os delírios mais desencontrados, circulando para serem capturados pela consciência alucinada, antes que o silêncio do outro lado da linha sucumbisse com o aflorar das palavras de Clarice, o corpo febril a embaralhar o discernimento levava Fernando a envolver-se de modo carnal nas questões instantâneas... perguntas do tipo O que ela deseja, o que lhe dizer...?..., ou as derivações subjacentes, não menos importantes, Como rever seu sorriso envolvente...?, pura decorrência da amargura que os tolhia e os afugentava...
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...Qual dolorosa dificuldade!... Rompo com esse turbilhão em que atiro minhas personagens, abandono a função narrativa (e a descrição da consciência atormentada de Fernando) tomado pela força indomável que cala minhas personagens... E não consigo delineá-las para além desse repentino imobilismo! Entrevejo na dor desse impasse um orgulho insensato... rancor envolto em paixão – o fel escorrendo das feridas dos corações de Clarice e Fernando – e que assim, de forma imprecisa, insiste em repeli-los na exata medida em que os aproxima, numa convulsa torrente de dor e paixão, uma sem poder se desvencilhar da outra, uma não subsistindo sem a outra, decompondo sensibilidade, horizontes, sonhos... a própria razão da existência de um amor tão imenso e tão frágil, a contradição dialética, o prazer da amargura em pleno desperdício. Nas palavras de Bowles, quantas vezes mais apreciarão a beleza da lua cheia? Para eles, a vida não parece ter limites, enquanto os dilui em seu fragor delicadamente mortal, sem qualquer comiseração. Pode-se dizer que os anos a seguir se transformem num fardo monstruoso, sem que lhes seja permitido deleites definitivos como sentir o murmúrio das águas do mar lambendo a areia, deitados no leito de amor da casa tão sonhada por eles... mas tratamos da equação da dor, a dor que se estabelece, que baixa a cortina do sofrimento incomunicável, impedindo a catarse plena do gozo enquanto... enquanto não compartilham os seus caminhos cheios de luz, de uma harmonia desigual, lúcida e ao mesmo tempo incerta... ... como posso acuá-los e aprisioná-los de acordo com meus preceitos e caprichos?!... Fernando me diz da sua asfixia e eu o entendo até certo ponto; Clarice, em seu jeito reservado, nada me diz, mas eu a compreendo pela expressão de sua mudez e por tudo isso, tão próximos e tão distantes, sintonizados em suas maneiras de vivenciar a angústia, sem desejarem a intervenção de quem quer que seja, e eu lhes ofereço o cinismo de uma velha sem face, que solicita ‘mais chá!...’, enquanto se desvanece em meio aos derradeiros suspiros de uma vida inútil... Sei que a dor de cada um me alcança, tornando-me um cúmplice de mãos atadas... eles se me escapam do mundo em que lhes proponho, para exercerem a liberdade de seus sentimentos... ah, que mundo posso lhes oferecer, a não ser o mundo em que eu almejo contemplá-los...?... essa é a mais genuína realidade, torno-me uma testemunha vil, não um cúmplice, e me esforço para transformá-los em personagens da minha história, quando de fato eles se esquivam e me atiram na face as suas verdades sentidas...
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Clarice e Fernando ensaiam retomar as palavras, o próximo ato os mobiliza para um gesto mais desenvolto, para a fala buliçosa sem peias contritas... todavia, (sempre a presença de um todavia...) o sentimento mútuo não os enlevou mais de um instante, em que as divagações de Fernando se diluíram como o hálito ao vento e o coração de Clarice teve uma fugaz oportunidade para aprofundar seu desamparo. Um corte, sim, um inesperado corte da ligação, que ao fim e ao cabo permitiu que seus destinos permanecessem em aberto...
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21 fevereiro 2010

Três vezes Ernesto




Tarde ensolarada de domingo, convidativa para o passeio na praça. As pessoas vão chegando aos poucos, pela expressão sofrida jovens dos bairros mais pobres. Vestem em sua maioria roupas negras e trazem faixas vermelhas, que aos poucos decoram o ambiente. Enormes faixas, que são suspensas nos vãos entre as árvores, declarando o movimento ao qual pertencem. Pergunto para um dos que estão na tarefa do que se trata, ele me diz que haverá um evento político, e depois um show de bandas de rock.

Circulo pela praça e escolho um lugar com sombra. Abro meu livro e adentro a narrativa. Um casal senta-se junto a mim, traz seu pequeno filho de onze meses. Aprecio o jeito deles, me apresento. São simpatizantes do movimiento obrero. Ela, trabalha numa fabrica a quinze quilômetros do centro, ele faz uns bicos na construção civil. Ganham juntos, nos bons meses, mil e oitocentos pesos, algo como mil e duzentos reais. Brinco, dizendo que o garoto nasce em um berço de lutas, ao que sorriem abertamente. Outras famílias vão chegando neste sete de outubro, dia da prisão do Che.

No dia seguinte, encontrei em uma loja, na Corrientes com Callao, o filme Contra Site. Chamou-me a atenção a ousadia estética e de linguagem, como tema as buscas das ossadas do Che, em Vallegrande, um vilarejo boliviano. Os autores, Fausta Quattrini e Daniele Incalcaterra, completamente desconhecidos. À noite, consultei um hóspede sobre a possibilidade de zapear em seu notebook o filme, e ele não só concordou como achou uma forma de instalá-lo numa mesa, de tal forma que poderíamos dividir o prazer de vermos o filme juntamente com mais pessoas. 

O começo difícil, flui dentro das experimentações tecnológicas que a construção de um site oferece, enquanto desponta o questionamento da atitude extrema da equipe de haver se isolado em um lugar inóspito. Surgem dificuldades na obtenção de informações direto das escavações, dificuldades que promovem os primeiros problemas nas relações dos integrantes da equipe. O formato da proposta fílmica foi aos poucos assimilado e ao final nós, a meia dúzia de espectadores, terminamos satisfeitos. Começamos um pequeno debate sobre o tema, que avançou pela madrugada.

Na terça-feira, lia o Página 12 em uma livraria na Santa Fé e minha atenção foi subitamente deslocada para um pequerrucho, que corria e se esfalfava por entre as mesas da cafeteria. Quando passou próximo, decidi puxar conversa e perguntei-lhe o que fazia. Desatou a falar, com a propriedade e a disposição que um jovencito de seis anos não costuma ter. Para não ficar aburrido junto aos pais, aguardando-os terminar a leitura, resolveu ocupar os espaços e brincar. Perguntei onde estavam seus brinquedos, ele disse que não os tinha trazido, mas não estava triste. E falou mais, que tinha um irmãozinho, que gostava do Rosário Central, das brincadeiras com os novos amiguinhos, que o aguardavam. Pelo que percebi, era o que comandava as ações. Resolveu partir e então lhe perguntei seu nome, ao que me respondeu, já
en route, Ernesto.

E buscou o convívio mais agradável com os amiguinhos. Antes de retomar minha leitura um pensamento se formou, a continuar assim, com seus vinte anos a cidade será pequena para sua inquietude e quem sabe Ernesto compre uma moto e se lance pelo mundo, aventurando-se por novos projetos...



17 fevereiro 2010

Fluxo de consciência...



Nas bancas, essa profusão de revistas vendendo beleza e imortalidade...
bobagem, tudo bobagem...
nos escritórios da modernidade, a busca incessante pelo sucesso a qualquer preço...
mais bobagens...
o esforço diário que, abandonando o essencial para a vida, se volta para os projetos descartáveis...

Quanto artificialismo, quanta perda de tempo! Circulo pelas ruas e já não vejo os semblantes calmos, saudáveis, regidos pela sagração do espírito coletivo...
Retoma-se a vida sem vida, as cobranças estigmatizadas, os movimentos individualizados, febris, que desconstroem o corpo, em nome do bem-estar corporativo...

Quando não, deparo com esse espírito blasé, de quem mostra ter muito a dizer e não passa de um poço de movimentos desprezíveis... os dândis que se forjam em berço de ouro e, por não ter mais o que fazer, se auto imolam em uma desesperança fútil. Como nos fala Baudelaire, 'possuem, à sua vontade e em larga medida, o tempo e o dinheiro sem os quais a fantasia, reduzida ao estado de devaneio passageiro, pouco pode traduzir-se em ação'...

Ainda há pouco li sobre um desses, sujeito de grandes posses e influência na sociedade, que vê seu império ruir silenciosamente, a dor de estômago aumentar e, talvez em razão disso, reage remoendo a sua indiferença pelo mundo. A literatura, para esse indivíduo encastelado na Weltanschauung de uma aristocracia que igualmente fenece, não passa de 'um testemunho do fracasso, algum tipo de falência'...

Sugestivo, se não fosse patético.

Mas, as coisas vitais para a vida. O sonho, o prazer, a literatura... juntos, constituem a alegria indizível, a coroar a sutileza da vida. Há mais: o encontro, o sorriso como resposta, o amor, essa terna solicitude de nossa condição humana...

Como somos frágeis! Essa fragilidade deveria nos alertar para as bobagens que nos estimulam a nos fragmentar em objetivos inalcançáveis... e de novo a sofreguidão em torno da beleza e da imortalidade. E a poesia? Nada de poesia em um mundo vexado pela intolerância... 

Diz Zumthor, a respeito da voz poética, 'A partir desse sim primordial, tudo se colore na língua, nada mais nela é neutro, as palavras escorrem, carregadas de intenções, de odores, elas cheiram ao homem e à terra'... quanta força, quão adorável exaltação, contida em uma sentença! Eis a poesia, que nos oferece o frescor do bem coletivo, da resistência cotidiana, e ainda assim ignorada...

Como uma exigência ontológica de nossa condição, nos realizamos comprometidos com nossas ações. Só não se compreende porque elas insistem em tornar-se tão submissas, inócuas... E nos diz Bauman, 'essa nossa sociedade de indivíduos que buscam desesperadamente a individualidade, não há escassez de auxílios (...) que (pelo preço certo) se mostrarão dispostos a nos guiar pelos calabouços sombrios de nossas almas'...

A autoajuda midiática, que nos acaricia com seus prazeres levianos, que nos vicia com sua torrente infindável e não cansa de nos atirar ao calabouço sombrio de nossas almas... Antes da tentação fútil da imortalidade, instigada de maneira irresponsável, mercantilizada (ambas as adjetivações coexistem e encontram guarida em cada calabouço sombrio) poderíamos ouvir as preces de Unamuno, que ecoam vigorosas por onde passam, 'Não quero morrer, não, não quero nem quero desejá-lo; quero viver sempre, sempre, sempre, sempre, e viver este pobre eu que sou e sinto ser agora e aqui, e por isso me tortura o problema da duração da minha alma, da minha própria vida'...
e prossegue, em sua soturna esperança, 'Oh, quem pudera prolongar este doce momento e dormir nele e nele eternizar-se!'.

A angústia da existência não nasce como produto adequado ao mercado, que voraz e manipulador, não se adequa à poesia da vida. Não somos mais, não somos menos; somos a justa medida que se realiza em meio às relações sociais, devotados ao bem-estar comum. O sonho de uma vida feliz e digna não pode estar fora dessa constatação.

Estamos presentes, e disso podemos lograr alguma coisa...


(dedicado ao meu querido tio José Roberto Gasparini, 1941-2010).



08 fevereiro 2010

Quantas vezes mais?...


Ah, quantas vezes mais ouviremos e veremos e leremos sobre discussões na casa dos brothers?... Quantas vezes mais saberemos dessas peripécias que não nos dizem respeito? Artimanhas, intrigas, sandices, fórmulas reproduzidas à exaustão, repassadas como possibilidades naturais de convívio... Quantas vezes mais insistirão acerca desses episódios forçados, diluindo paulatinamente o sabor da vida?... O que mais nos falta ver na existência tão esvaziada dessa casa, o que mais tentarão nos vender a partir de vivência tão artificial?... Multiplicidade de signos depauperados, que se perdem em uma repetição monótona, perpassando o bom senso de espectadores que no fundo, desprezam esse exercício de futilidade!...

O Haiti é lá, o Haiti é aqui, o Haiti está por todos os lados, o que não interessa aos verdugos midiáticos, preocupados em explorar oportunidades, promover novos produtos... Nunca, a alma desmesuradamente pequena! Falei do Haiti, pois essa é a outra fatia do produto, a notícia explorada em sua faceta mais tormentosa, o drama como um espetáculo doloroso, individualizado em seu sofrimento, essa, a fatalidade humana que nos é revelada...

Homens e mulheres sobrevivem à tragédia, uma sociedade se recompõe de algum modo, maculada por novas situações alarmantes, porém, a vida continua. E disso nada ficamos a saber. As equipes de jornalismo, tão logo expira o prazo provável de se retirar algum infeliz dos monturos, retira-se para outros cenários mais promissores. Resta a vida em reconstrução, não reportada, vagamente anunciada, e fim, não há mais Haiti ...

Tempo de ver o que passa na casa dos brothers. E de novo, as briguinhas que nadificam a espécie humana, as conspirações fomentadas à socapa, que levam a fulminar um de cada vez, até que o babaca mor vença, sob os auspícios de uma comemoração supimpa, choros e abraços... Um milhão no bolso e os contratos de imagem, a voz repercutida para falar das bobagens que estão a anos-luz de nossa vida cotidiana... Tornam-se celebridades, esses todos, os personagens de um ensaio mercadológico. Celebridades...

Nos Haitis desse mundo real, penso nas mães que carregam seus filhos famélicos, desesperadas, sem voz, mergulhadas no silêncio de sua inexistência, cavoucando o solo no vão esforço em torno da sobrevivência. Elas não sabem do que se trata o termo celebridade, não fazem a menor ideia do que possa representar um milhão de reais. Porém são as verdadeiras celebridades, sentem a emoção genuína da gente que comunga as faltas, são o sal da terra em que vivem. Sofrem, choram, mas sorriem, amam, estão imunes à delação, à dissimulação, ao vazio mais acachapante de sentimentos... Carregam além do corpo, uma esperança e muitos desejos embalados nas noites menos atribuladas...

Não há nada de mais contundente no drama da vida, mas o que se há de fazer, são evidências que já não despertam o menor interesse...


04 fevereiro 2010

Chuva de perceptos

Dresden, inverno de 2010

camminiamo sul bordo della strada che un vento gelido spazza di continuo sollevando un turbinio di nevischio ghiacciato: il freddo è insopportabile (luigi scarpel)

por que não atacamos? maldita demora já era para termos recebido as ordens de atacar mesmo com esse tempo e atolados nesta imensidão sem fim de neve ah meus pés duros a ala direita da 44ª como estará? nesse inferno de neve nessa podridão maldita paralisia tanta pressão sobre nós por quanto tempo mais? não é o melhor momento para procurar o capitão melhor assim esse sossego inoperante para esses rapazes arrebentados que não sairão daqui pobre Heinz o que sabe da guerra? como estará sua mãe doente desabrigada será difícil fazê-lo entender que não a abandonou o partido assim determinou e o Dieter outro que não faz ideia do que é sofrer numa trincheira gelada dormem agora e provavelmente morrerão ao final disso tudo ah os pés meus pés esse gelo maldito não os sinto mais por causa desse frio uff esse frio horrendo russos malditos por quanto tempo mais ficaremos aqui longe de tudo mergulhados nesta paisagem infinita esse inverno sem fim o ar frio que enregela os pulmões nem deus deve se lembrar de nós ah ah deus fiz bem em nunca criar ilusões pois aqui está nada acontece sofremos e padeceremos nesse fim de mundo isso é o que é para o bem de todos temos de vencer para vencer temos de sair desse cerco merda o que faço aqui? ora exatamente isso cumpro as determinações para o nosso lebensraun ainda que isso nos custe tantas vidas tantos camaradas tantas cidades esse inverno podia ser menos cruel essa pressão toda esses obuses por nossas cabeças está bem já basta essa brancura mortal a fome que nos devora aos bocados tudo muito científico devastador a isso nos levou as ordens insanas não tenham escrúpulos matem o inimigo não merece nossa compaixão e aqui estamos imóveis condenados a ala direita meu deus onde estará o capitão? o que passa é que estamos sem saída metidos nesse mar de neve eis nosso destino morrer como porcos e as patrulhas por que não regressam? não se manifestam nada sobre as incursões contra as linhas inimigas como é possível que possamos sair disso se não há movimento? o capitão está escondendo alguma coisa guarnecer posição e esperar mas esperar o quê? qual esforço fazem do lado de fora desse caldeirão? não ouço nada nenhum rugir nenhum combate as reservas nem mesmo as roupas adequadas chegaram já não nos basta munição precisamos de alimento menos sopa de batatas mais kümmel esse silêncio tenebroso o que nos preparam esses malditos russos? não há nada mas eles não precisam se movimentar basta apenas que nos imobilizem neste frio com seus katiushas esse tempo desgraçado dezembro natal e nós atolados assim o que virá? tão bom quando os katiushas estão calados quem pode garantir que não começarão a disparar feito animais outra vez sempre e sempre merda a primavera tão distante a licença o passeio no Tiergarten com a pequena Angela quem sabe o general esteja preparando uma grande surpresa estratégica por isso a demora o sacrifício ah o frio ouff mas ainda assim seria tão bom ouvir sua voz as palavras suaves sempre tão bem colocadas nossos últimos encontros me ajudaram a manter a esperança oh tão bela mulher o capitão exagera em seu silêncio afinal sou o suboficial mereço saber o que se passa quais são nossas chances o que afinal tem sido feito? posso ajudar na saída para essa paralisação de alguma forma posso fazer alguma coisa para isso podemos montar uma equipe de inspeção das linhas inimigas eu Dieter o Heinz o Franz por que não? tudo parecia muito certo avançar a esquerda até o vilarejo de B... está bem isso parece que foi feito está bem mas e a miserável da 44ª por que esse silêncio? o que o capitão sabe das intenções russas? se ao menos tivesse um mapa gostaria de ver um mapa entendo de mapas bons tempos das aulas geografia o professor Meyer suas palestras sobre Ratzel e La Blache bah tempos passados como estará o professor Meyer? e o professor Martim? como conhecia filosofia professor Martim a questão do cuidado, Hölderlin vamos ver ah sim E abertamente votei o meu coração à terra grave e sofredora e muitas vezes na noite sagrada lhe prometi amá-la fielmente até a morte sem receio com o seu pesado fardo de fatalidade e... e não desprezar nenhum dos seus enigmas Assim me liguei a ela por meio de um vínculo mortal como eram preciosas suas palavras ouff Berlim não deve estar assim tão fria ia bem agora umas torradas para o chá talvez o problema lá sejam os Mosquitos ingleses sem hora para despejar sua carga mortífera o professor adorável sua divagação pelos caminhos Nietzsche onde estará professor Martim? suas ideias sua forma de refletir sua sabedoria não não acredito que teria cometido deslizes tão mesquinhos como dizem gostaria de vê-lo mais falando de Nietzsche dos caminhos do mit-sein agora sentado ali adiante sobre o monturo de neve próximo de Franz que escureça que atirem sobre nós saberíamos ver o homem em sua plenitude isso nos ajudaria a suportar a sobreviver o que deverá pensar o capitão sobre a filosofia? maldito capitão que nos oculta o essencial somos na verdade um bando de pobres soldados condenados enterrados vivos no rincão dos untermenschen ah quanta ironia como podem ser inferiores se vencem se não passam frio e têm o que comer? se não vencem ao menos não são derrotados ou o que é pior nos prendem nessa ratoeira quanta privação ninguém quer pensar o pior mas não somos tolos podemos imaginar o que nos espera por mais que o comando tente nos esconder as coisas pode-se falar muitas coisas mas quem fala besteiras sobre ah Heinz movimenta sua perna! ótimo que seja um bom presságio para todos nós Steinitz não me procurou mais talvez tenha superado as dores na coluna resta solucionar o problema dos sapadores da 8ª brigada Bautz está mal Schörner com a barriga daquele jeito Viazma não pode estar a mais de cinco quilômetros o que significa bah se essa merda de tempo não piorasse à noite o vento frio que zumbe no ouvido malditos katiushas (ruído infindável de explosões) isso acabará com os ouvidos... ainda o vento cortante e assim nunca é possível relaxar os nervos o pessoal não para de gemer sofrem mais por essa inanição bem sei o contra-ataque precisa ser lançado capitão não espere mais que se foda morramos todos mas pelo menos seria uma tentativa vou perguntar ao Heinz o que se passa ele esteve no comando sabe se atacaremos ou se vamos permanecer acuados como porcos nós que chegamos até aqui maldito frio maldito russo maldita guerra nem uma carta em vinte dias minha querida Mirna o que estará fazendo agora amada ouff é preciso esfregar esfregar não pare de pensar disse o capitão Merkle (novas explosões) vou falar-lhe para andar um pouco e pensar em um passeio em Constança com Judi um café num belo restaurante à beira do lago os barcos navegando na placidez como se não houvesse mais guerra a lua prateada nenhuma pressa nenhuma dor os filhos uma bela casa as férias os banhos quentes em Baden-Baden oh como faz falta não ter a correspondência em dia quando voltaremos a receber nossas cartas novamente? Mirna precisa dizer-me algo estava muito abatida na última carta os Mosquitos sem dúvida o maior problema dia e noite não param de atacar ao menos em Nurembergue incendiaram tudo mas lá ainda há onde se refugiar sem que se sofra com o frio pelo menos penso (gritos à distância) não param bah e aqui no front nesse frio morteiros artilharia pesada e as transmissões que não se encerram desse ministro charlatão que não nos ajuda sempre e sempre elevando nossa categoria racial e veja só como estamos o que será que teremos hoje? sopa rala meus bons tempos de universidade aquela boa comida que sempre reclamei de mamãe comida farta sorrisos paz sossego caminhar-se pelas ruas de mãos dadas sem temer cercos russos aviões katiushas teremos que vencer os russos vencer os russos que mentira como alguém pôde acreditar nisso? Goebbels acredita nisso como avançaremos assim arrebentados? o que o capitão pensa sobre isso? um mapa uma palavra sobre nossa posição esse vento vem vem vem o branco sem fim o escuro das madeiras esse buraco frio a neve branca logo só a escuridão da noite tenebrosa sem poder dormir só pensar para não sucumbir estaremos atentos junto com o sexagésimo segundo pelotão ou o que sobrou dele ainda bem que cessou o bombardeio talvez os russos também tenham problemas ah o movimento da 44ª por que não vem? por que não há novidades? (baterias de katiushas ao longe) uhh que vento friiiiio ahh não vamos aguentar então eles bem que podiam atacar e acabar de uma vez com isso conhecem o terreno e nos meteram nesse bolsão estúpido por quanto tempo mais? por quanto tempo mais? os homens não suportam estão psicologicamente já deliram perderam a noção do tempo daqui a pouco não terão forças para levantar e lutar eu só resisto porque porque ah quero muito rever Mirna mas os homens não estão nada bem não não estão não sabem mais que ah claro um ataque por que não? ou uma retirada retirar para o oeste para casa nos esconder nos porões até tudo acabar ah meu deus ouff essas rajadas cortantes morreremos todos capitão! esses homens não podem ficar paralisados numa situação dessas por que não nos batemos para chegar em casa? ah esse maldito frio ooouff ...