28 agosto 2009
Facundo Cabral
26 agosto 2009
Pour une femme
(...) Costumávamos
saltar na estação e andar por caminhos distintos. A primeira foto que fiz ela
estava sentada na plataforma deserta, observando o bosque que se estendia até o
rio, olhar viçoso, decorado pelos lindos brincos com pingentes de flores. No
verão, era comum descermos pelo caminho gramado, que serpenteava as árvores,
até a borda do rio. Acomodávamo-nos sob o remanso de uma copa acolhedora,
quando me estendia sobre a relva.
Ela
sentava-se sobre um fragmento de rocha e então punha-se a observar os navios ao
longe, que partiam para distintos destinos, talvez imaginando-se passageira de
um deles a caminho do mundo. Deleitava-se com a brisa a alvoroçar continuamente
os cabelos cacheados. O sol, quando banhava sua fronte, revelava os
contornos de uma beleza rutilante, que exalava felicidade. Ouvíamos o
murmulho ritmado das águas a nos alcançar timidamente e o estalar da vegetação
balouçada pelo vento. No inverno, costumávamos seguir até a praça para uma taça
de vinho, ao abrigo de um dos bistrôs.
Era
quando nos deixarmos levar pelo tempo de nossas conversações, quando confirmava
sua beleza sob outra luminosidade, mais discreta, adornada pelo tremeluzir das
velas. Seus olhos resplandeciam uma luz deleitosa e não havia coisa melhor
do que perder-me em seu sorriso, em enredar-me nos seus caprichos (...)
21 agosto 2009
Barco Negro
De manhã, que medo, que me achasses feia!
Acordei, tremendo, deitada n'areia
Mas logo os teus olhos disseram que não,
E o sol penetrou no meu coração.[Bis]
Vi depois, numa rocha, uma cruz,
E o teu barco negro dançava na luz
Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas
Dizem as velhas da praia, que não voltas:
São loucas! São loucas!
Eu sei, meu amor,
Que nem chegaste a partir,
Pois tudo, em meu redor,
Me diz qu'estás sempre comigo.[Bis]
No vento que lança areia nos vidros;
Na água que canta, no fogo mortiço;
No calor do leito, nos bancos vazios;
Dentro do meu peito, estás sempre comigo.
19 agosto 2009
A mulher de Uidamlil
Foi uma casualidade o nosso encontro em Tânger. Convenceu-me em inutilizar meu bilhete de ônibus para Mellila e a acompanhá-lo até Ujda, para chegar à Argélia. Durante as sete ou oito horas de viagem vi a cabina se encher e se esvaziar de árabes, homens do deserto, velhos cansados, mulheres com seus filhos, adolescentes falantes... ele com sua Leica, tomando imagens sem parar, closes de nossos companheiros de viagem, panorâmicas das paisagens gradativamente mais áridas... Meknés foi a última parada urbana e também a enxurrada final de passageiros a se espremer nos espaços internos do trem. A espontaneidade de meu amigo granjeou o sorriso nas pessoas, que facilitavam sua dificultosa movimentação pelo vagão, com seu aparato fotográfico. Tinha gastado mais de um rolo quando a viu. Ela estava de pé, observando o nada pela janela do corredor, a atenção fundindo-se com o horizonte. Ele permaneceu por instantes em estado de estupor, adentrando a cabina, trêmulo... e balbuciou, A pérola do deserto está aqui! Logo me puxou e a indicou discretamente, era de fato a mulher de incrível beleza, na flor dos seus dezoito anos, vestida com um traje de seda cinza escuro, que lhe adornava elegantemente os braços, o tronco e as pernas, até o tornozelo...
Possuía um xale colorido que lhe protegia a cabeça e escorria para o pescoço em uma ou duas voltas, com uma das extremidades delicadamente pendente no ombro. Ele estendeu-me sua Leica, a mensagem subliminar evidente, Fotografe-a para mim! Jamais o vira assim antes, fora de si, contido pelo encanto magnético de uma mulher inesperada do deserto, paralisado nas atitudes, em meio à multidão de humildes trabalhadores. A mulher recostada na porta da cabina vizinha posou imóvel, sabendo-se fotografada. O trem sacolejou antes de uma parada na terra de ninguém, onde muitos desembarcaram. Abriu-se pela primeira vez espaço na cabina para sentarmos e conversarmos adequadamente sobre a viagem, mas após um curto espaço de tempo, ainda inquieto, ele ergueu-se e colocou-se no corredor, ao lado de sua musa. Não ouviria mais sua voz até o conclusivo adeus amigo, na parada em que desceram para os confins do deserto. Coube-me desvendar o nome do lugarejo, duas dúzias de casas esparsas nas planuras quentes do pré-Saara. Um advogado de Fez, sentado ao meu lado, solucionou a dúvida, proferindo a palavra desconhecida: Uidamlil.
Não me restou alternativa senão concluir a viagem até a Ujda que não procurava, e, contagiado pela irreverência de meu amigo, lancei-me para além, por caminhos que se confundiram com quimeras, desvelando as belezas e cruezas de um movimento errático que desnudaram minha incompletude humana. Numa entrega sem qualquer receio com os acasos, acompanhei caravanas de reguibas, ziguezagueando por desertos, não só mercadejando peles e especiarias de todos os tipos, como acampando ao relento, em meio aos bandos tuaregues. Acolhia-me o lume dos fogaréus noturnos, cujo estalar das brasas despertava a sonolência e o descanso profundo. Não raro, deixei-me embalar pela sonoridade de seus instrumentos e de suas canções, que realçavam a magia daquelas latitudes tão silentes quanto esquecidas. Suportei o sol caudaloso das caminhadas sorvendo a água dos cantis de tripas de camelos e sobrevivi à base de pão e tâmaras secas. Foi ao cabo de uma noite de completa libertinagem, nos confins do Sahel, que delirei com danças tribais embaladas por melodias de Nick Cave.
16 agosto 2009
O pior e o melhor dos mundos
Temor generalizado que não construiu outra coisa que insegurança social, e para os interessados, em índices de audiência. As chamadas noticiosas não se preocuparam com a informação – séria, sem controvérsias ou espetaculosidade – mas com as suspeitas, com as dúvidas, com a fatalidade de mais um pânico devidamente mantido a fogo brando. A contagem mórbida, mais um suspeito de gripe ali, mais um morto aqui, não, mais dois, agora mais seis... não, não, mais oito... bem, essa contagem mórbida só era suspensa para as reportagens sobre hospitais lotados, desespero popular, a falta de medicamentos e produtos de assepsia. As declarações de médicos, de autoridades de saúde, eram exploradas em seus pontos não-coincidentes, criando naturalmente um discurso evasivo, quando não artificialmente contraditório.
Esse jornalismo, que convém ser descrito como terrorismo midiático, assustou, em vez de comover; desagregou, em vez de organizar uma forma de combate à gripe, conduzindo (ou desejando conduzir) a população à incerteza, ao lugar comum de uma tragédia instalada e impossível de ser assimilada. E, a exemplo do “pânico dengue”, do “pânico gripe aviária”, do “pânico crise”, o “pânico gripe suína” é superada pela continuidade natural da vida cotidiana, cujos atores sociais sabiamente depuram a farsa dos inúmeros e verdadeiros dramas existenciais. Esse terrorismo midiático nos isola, nos aquebranta, rompe com toda e qualquer atitude solidária e tenta nos transformar em sombras de nossos temores. Quando chegamos nesse estágio, já tomados como reféns, passamos a reproduzir o pânico que nos é vendido. Esquecemos o orgulho, esquecemos a dignidade, esquecemos a prática política, para reverberar o que passamos a entender como nosso fracasso.
Só vejo uma forma de confrontar essa mediocridade, que no lugar de nos informar, nos enferma: tomando a iniciativa da responsabilidade como compromisso de ação social. Realçar a atuação política no cotidiano, dar-lhe força, consistência, assumir o outro como parte do meu problema. Como disse um dia Germán Abdala, “a política é a ferramenta para modificar a sociedade em que vivemos”, e decerto ele se reporta aqui à política do dia-a-dia, das decisões mais prementes para organizarmos a vida, a sua, a minha, a vida em comum.
14 agosto 2009
Interlúdio
Impressiona-me tanto a qualidade do som desse ótimo álbum, quanto o registro dos ruídos incidentais, cuja sobrevivência reverbera um momento especial. O saxofone prossegue nota após nota, proeminente, enlevando os espíritos, fazendo da presença das pessoas um motivo para a celebração elaborada ao sabor do jazz, possível de ser imaginada em sorrisos e em gestos afetuosos. Ao cabo de quatro minutos e quinze segundos, o solo de Mobley voluteia em notas improvisadas, magnífico, e os semblantes, certamente impregnados pelo inesperado encerramento, reverberam a onda emocionada dos aplausos...
09 agosto 2009
Agustín Días
Quando começa a refletir, o homem toma consciência de que não dispõe de certeza, nem de apoio.
Karl Jaspers
As garrafas o distraem. Observa-as, com o desejo mortal de um gole para molhar um pouco a garganta ressequida. Amarga certo desgosto pela situação, certa impotência pelo prazer impedido. Não abandona as garrafas, acariciando-as com os olhos, contendo o impulso de atacá-las, acreditando que será uma questão de tempo ver o seu copo cheio. Olha para um lado, para o outro, está com os braços cruzados sobre o balcão. Ninguém. Volta às garrafas de tequila, Minhas queridas...
Custa a virar-se para o centro do salão. As cadeiras e as mesas estão estranhamente empilhadas num canto, ao fundo. Sem dúvida, um inquietante abandono. Ao que se recorda, e Agustín faz um esforço neste sentido, Juarez, o dono da taberna, não lhe disse sobre um possível fechamento nesse dia. Agustín divertiu-se bastante na noite anterior, aliás, não se recordava de uma farra tão alegre e divertida como aquela, e ali está ele de volta, pronto para mais uma noite movimentada.
Não deseja ficar assim, pensando coisas. Acredita que os amigos da noite anterior chegarão a qualquer momento, para prosseguirem a diversão. Resolve girar no banco e coloca-se mais uma vez diante do balcão, a fim de dedicar-se as suas garrafas. A visão está um tanto turva, os ombros arqueiam-se para frente, como se suportassem um peso enorme, e quando leva os braços sobre o balcão, esbarra incrédulo em um copo com tequila, a sua disposição. Agrada-lhe a surpresa e sem perda de tempo, vira garganta abaixo o precioso líquido. Desaba a mão com o copo vazio sobre a madeira, num estrondo que ecoa pelo ambiente. Degusta feito um coiote saciado o resto da aguardente retida nos lábios, começa a sentir-se feliz por estar ali.
Passa a ouvir, após alguns instantes, notas alegres provenientes do piano, a voz indefectível - um pouco distante é verdade - de Mary Bay cantarolando. Do lado oposto, as gargalhadas sonoras de Benitez, seu velho amigo. A imagem de Juarez limpando copos e servindo-lhe mais um gole parece-lhe ainda incongruente, enquanto ouve outros colegas entrando taberna adentro, ruidosamente, sequiosos também para o primeiro trago. Seu espírito é preenchido por uma satisfação crescente. O calor que o angustiava agora o extasia... passa a vislumbrar o que pode das mulheres, do pôquer, das gargalhadas com hálito de tequila e cerveja... Esvazia o terceiro copo, pedindo ansiosamente por mais um. Anima-se com a pianola tocada pelo velho Romero, que completa o clima festivo do lugar... Olha mais uma vez para o canto do balcão, onde entreviu Juarez engraçando-se com Juju Buterfly e não os vê.
Perdeu Juarez e, inesperadamente, todo o movimento que se insinuava no interior da taberna. Nem a melodia aveludada cantada por Mary, nem Gustavo el guarachero, ou Roberto, o contador de histórias, el conquistador del mar... todos, num piscar de olhos, perdem-se nas brumas do silêncio ressurgido. Nada mais; um vazio conclusivo, desolador e, ao fundo, mesas e cadeiras empilhadas. Agustín volta-se para o seu copo cheio de ar. Talvez tudo seja uma questão de tempo, titubeia, ainda com um ranço de esperança mal apanhada a envolver-lhe a mente.
Não saberia dizer quanto tempo mais. Distingue vagamente uma engrenagem de ruídos, que se intensifica aos poucos. Aguça os ouvidos sem se mexer e ouve o galopar de cavalos, lá fora, na areia que se esfria. Os sons imprecisos se assemelham ao rodar de carroças, várias delas. Vozes, cavalos, o chicote estalando, o alarido chega e logo passa. Uma caravana. Também foram audíveis alguns cães velhos ladrando. Eles ladravam, enquanto a caravana passava. Agustín ouve e agora vê uma mosca. Ela pousa em sua mão.
04 agosto 2009
Critério de interesse
Acompanhei um programa sobre três mulheres egípcias 'malucas', que resolveram denunciar as fraudes ocorridas nas eleições para o parlamento do Egito, em 2005. Uma delas, jornalista de uma rede de TV, foi votar pela manhã e encontrou sua seção praticamente vazia. De um modo geral, a participação popular tinha sido muito baixa, cerca de 30% do eleitorado. No noticiário da noite, leu a notícia de que havia ocorrido uma participação massiva da população nas eleições...
No dia seguinte, perguntou-se que papel estava desempenhando como jornalista, se em vez de divulgar suas impressões, tinha de ler o que lhe obrigavam. Por alguma razão que não entendi, as eleições no Egito ocorrem em três etapas, três dias diferentes. A jornalista então resolveu romper com a farsa e, junto com outras duas 'malucas', foi denunciar o que ocorria, ainda a tempo de tentar salvar alguma coisa. No final das contas, como resultado da atuação dessas mulheres, apenas dois juízes prometeram investigar a fundo a corrupção eleitoral. Passaram a ser perseguidos e até onde se pode ver, organizava-se uma mobilização de outros juízes, amparados por uma parte da população que superava o medo para se colocar nas ruas.
É curioso que esse fato, permeado por violenta repressão policial nas ruas, tenha passado incólume em nossos noticiários. As imagens são tão impressionantes como as que foram divulgadas (exaustivamente, diga-se) de Teerã, há pouco tempo. Por que a mídia não se reporta à ditadura Mubarak, que vige monolítica há 28 anos?
Temos que os fatos são selecionados segundo um critério de interesse, muito apropriado para cada ocasião. Posso lembrar outros acontecimentos parcamente cobertos pela mídia, como o massacre desatado na faixa de Gaza, onde mais de duzentas crianças palestinas foram assassinadas por bombardeios aéreos israelenses. Ou, como já foi discutido neste blog, nenhuma palavra sobre a expansão das colônias judaicas em território palestino. Nas informações alcançadas por nós através da mídia, Mubarak não é outro senão o interlocutor por excelência do impasse palestino-judaico.
02 agosto 2009
Esforço pueril
A princípio meu olhar se perde diante da multidão, um bloco visualmente organizado que se desloca inercialmente numa velocidade constante, um estranho corpo coletivo constituído por porções individuais cujas sombras se estendem no solo, vindas dos diversos becos e ruas adjacentes, que se amontoam o tempo suficiente para ensejar a dispersão. A massa constituída é multiforme, essencialmente fragmentária, ora densa, ora esvaziada, porém sempre cativa. Posso acompanhar seu movimento para leste e observá-la se afunilar como sendo a saída de um funil, delimitando os contornos dessa multidão líquida, que um pouco mais além se desprende para a liberdade da praça, de onde cada indivíduo toma seus diferentes destinos.
Pois o que me interessa é esse trecho, o caminho forçoso de centenas de esfalfados. Esforço mundano, completamente pueril, se me permitem dizer... Estou dois andares acima dessa massa que se renova diariamente e ainda assim preserva suas características intrínsecas de massa. Assisto a tudo, dia após dia, manhã após manhã, tomando tranqüilamente meu café com bolinhos, envolto em meu robe de chambre, sem pressa para absolutamente nada. Após investir na ampliação da janela, passei a ter uma sala mais arejada e o mais importante, uma visão privilegiada desse fluxo humano que, por longas duas horas, parece não se exaurir. Das seis e meia até às oito e meia, impreterivelmente, lá está o que chamo de fermentação do demônio, esse deslocamento insano que surge do nada e extingue-se em nome da sobrevivência, ou seja, por nada. Indivíduos que se transformam irrefletidamente em coletivo para, após um tempo que não passa de uns parcos minutos, tornarem a ser indivíduos. Nenhum ganho ou nenhuma perda nessa transformação, apenas um processo de aglutinação que se forma, que escorre e de maneira macia e comportada se fragmenta. Um processo que me diverte. O relógio me desperta às seis, num salto ponho-me de pé, preparo o desjejum, acomodo-me diante da janela e fico a assistir, sentado em minha confortável poltrona. Às vezes resolvo escolher um desditoso qualquer para acompanhá-lo em seu percurso. Aguço a atenção, um mero ponto na paisagem que aos poucos vai tomando vulto, ganhando mais contorno humano, até ele cruzar bem diante de minha janela. Sou, então, capaz de ver seu rosto, analisar suas feições, sentir sua respiração, imaginar seus pensamentos desafortunados, intuir sobre sua personalidade. Não sofro por ligar-me tão intimamente ao infeliz, mas a essa altura deixo de divertir-me, pois sou capaz de, vez ou outra, identificar-me no meio da multidão.