30 julho 2009

Sobre Buzzati



A matéria dos textos de Dino Buzzati é o sentimento grave que envolve a dolorosa reflexão sobre a vida, as certezas e os dilemas que de algum modo descrevem a caminhada do ser humano. Este seria o resumo mais objetivo (se é que é possível fazê-lo) de sua obra. A nostalgia do passado, a expectativa do presente, a projeção de uma esperança, suas personagens se movem em torno dessa perspectiva, e que se abre para um conjunto riquíssimo de situações alegóricas.

Buzzati alterna o elemento fabular de suas narrativas com os percalços da realidade, mescla os aspectos insondáveis do mistério com movimentos ponderados, que conduzem suas personagens para seus destinos, e o leitor as suas conclusões. Giuseppe Corte entra no hospital crente de que tratará uma indisposição qualquer, e aos poucos se depara com o inesperado e cada vez mais próximo espectro da morte (sobre o conto Sete andares); há também os relatos fantásticos, como quando a personagem (narrado em primeira pessoa) encomenda uma jaqueta com um alfaiate e, surpresa, dia após dia encontra nos bolsos somas crescentes de dinheiro, subtraídos de outros lugares e que, ao serem gastas, geram uma sucessão de infortúnios... (sobre o conto A jaqueta enfeitiçada); ou então o filho do rei, que ao decidir explorar o reino de seu pai, cavalga rumo aos seus confins, enviando um a um, sete mensageiros para relatar as novidades ao pai. Aqui, o tempo desempenha um papel preponderante, pois diante das dimensões infindáveis do reino, os encontros com os mensageiros se tornam cada vez mais e mais escassos (sobre o conto Os sete mensageiros). E o que dizer do soldado Giovanni, que retorna à casa da mãe após anos de ausência, apenas para se despedir, já que tem um compromisso com seu acompanhante, a morte (sobre o conto O casaco)...

Gostaria de me deter um pouco em sua obra máxima, seu romance O deserto dos tártaros. E transcrever uma passagem, onde ouso intervir, apenas com o intuito de localizar o leitor na história. Ela que nos mostra uma das inúmeras 'reflexões sentimentais', um dos momentos de soturna elegia que transborda o questionamento íntimo, e que somos convidados a partilhar. O trecho descreve a lembrança de um passado já ultrapassado (não por seu anacronismo, mas pela dinâmica da vida), que se distancia na igual medida em que o autor desvela - não sem a beleza característica de estilo - o desdobramento inevitável da existência humana.

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Após dois dias de cavalgada solitária, o tenente Giovanni Drogo recém chegou ao forte Bastiani, em um lugar indefinido, o vale tortuoso sem plantas nem verdes, aqueles precipícios a pique e, finalmente, aquele triângulo de desolada planície que as rochas à frente não conseguiam esconder. Quanto tempo permaneceria servindo ali, junto a homens que não guarda nenhuma identidade, em uma fortaleza encravada em algum ponto no deserto dos tártaros, um território isolado, inóspito? O major Matti, que o recebera, dera-lhe as opções, partir de imediato, o que para Drogo teria sido a melhor solução, ou então aguardar por quatro meses, até a próxima avaliação médica, quando poderia enfim solicitar baixa para um outro setor militar.

Os dias se passaram e Drogo se dá conta das suas funções, como era de se esperar. As noites dilatam-se longamente, passadas em meio a pensamentos que repercutem imagens e sons de lembranças longínquas. Na noite em que realizou a guarda com sua tropa, permaneceu acordado. Conforme o experiente sargento Tronk, seria uma atitude bem vista pelos comandados. Em seu quarto, estirou-se por breves instantes na cama, protegido da iluminação dos lampiões, deparando mais uma com vez a irreparável fuga do tempo”.

Recordou a primeira juventude, despreocupado com os amigos, brincando sob os olhares benevolentes dos adultos, esses que apontam os desafios no horizonte, para em algum momento no futuro. Falta muito? Não, basta atravessar aquele rio lá longe no fundo, ultrapassar aquelas verdes colinas. Ou já não se chegou por acaso? Não são talvez estas árvores, estes prados, esta casa branca o que procurávamos? Por alguns instantes tem-se a impressão que sim e quer-se parar ali. Depois ouve-se dizer que o melhor está mais adiante e se retoma despreocupadamente a estrada. Assim, continua-se o caminho numa espera confiante e os dias são longos e tranquilos, o sol brilha alto no céu e parece não ter mais vontade de desaparecer no poente”.

Mas nessa estrada, onde o tempo indica que um dia deverá inevitavelmente acabar, as coisas mudaram, as nuvens se amontoam precipitadas e o regresso não é mais possível. Drogo, em seu transe entorpecido, olhará a sua volta incrédulo; depois ouvirá um barulho de passos vindo de trás, verá as pessoas, despertadas antes dele, que correm afoitas e o ultrapassam para chegar primeiro. Ouvirá a batida do tempo escandir avidamente a vida. Nas janelas não mais aparecerão figuras risonhas, mas rostos imóveis e indiferentes. E se perguntar quanto caminho falta, ainda lhe apontarão o horizonte, mas sem qualquer bondade e alegria".

Drogo adormece; vê mais uma vez os amigos a se perderem de vista. Ele sonha e sorri. São as últimas vezes que chegarão até ele, na noite, as suaves imagens de um mundo completamente feliz. Ai, se pudesse ver a si próprio, como estará um dia, lá onde a estrada termina, parado na praia do mar de chumbo, sob um céu cinzento e uniforme, sem nenhuma casa ao redor, nenhum homem, nenhuma árvore, nem mesmo um fio de erva, tudo assim, desde um tempo imemorável”. (...)

(Tradução dos trechos destacados de O deserto dos tártaros: Aurora Bernardini e Homero de Andrade)



20 julho 2009

Venezuela que se transforma



Se você me perguntar qual a imagem mais representativa que guardo da Venezuela, diria sem demora, o jeito simples do povo venezuelano, que exprime naturalmente o amor pela sua cultura. Se isso ocorre, não tenho dúvidas que o grande mérito se deve à atuação do governo de Chávez, por sua forte atuação social, priorizando os anseios coletivos e a cultura nacional. Com isso, reconstrói a auto-estima e os valores comunais, dando alento ao que antes era irremediável desconsolo. Poderia perder-me aqui em divagações burguesas, analisando aspectos formais da sociedade venezuelana, mas gostaria de abordar alguns aspectos que me deixam orgulhoso – e esperançoso – de que a opção do socialismo bolivariano seja uma saudável vereda, como alternativa ao mainstream insalubre do capitalismo neoliberal.

A meu ver, a marca dessa saudável vereda que se abre é a recuperação social (que para os incautos pode ser lenta ou corrupta), fundamentada na distribuição de instrumentos de participação política. Constrói-se um caminho ideológico de consciência e atuação na realidade social, e isso para mim é uma enorme conquista. O senso comum capitalista avalia essa experiência com desdém, quando não com virulento repúdio. Não retomarei aqui essa discussão, que prolongaria exageradamente meu comentário, apenas digo que a cada dia que passo aqui em minha cidade e rememoro meus dias venezuelanos, aprofundo uma certeza íntima que o caminho que se constrói na Venezuela tem de ser reconhecido e respeitado.


Ver, por exemplo, a rede comunitária de comunicação que se expande na capital, dando voz à mobilização popular (os conselhos comunais) é algo especialmente estimulante para mim, um professor da área de comunicação. Os jovens que acompanhei, por exemplo, na programação da ÁvilaTV, discutindo questões pertinentes à juventude urbana, com um desprendimento e uma leveza admiráveis, foi algo que me confirmou esse anseio pela conquista dos meios, com a excelência dos programas, da edição, direção, qualidade de imagem, agilidade no trato dos temas sociais, nos vídeos realizados nas comunidades, enfim, um aperfeiçoamento contínuo do domínio da tecnologia, e nesse caso a serviço do bem-estar social.


Por mais que as vozes dissonantes não aprovem os caminhos que são abertos para todos, com prioridade para uma maioria secularmente abandonada, não há como não se louvar o esforço que se realiza, bem como os resultados que se alcançam. Os programas de educação, malgrado os problemas de se alcançar a excelência na formação dos professores voluntários, prosseguem e dão novas esperanças para aqueles que sequer sabiam ler e escrever. A incansável Hermes, atuante no conselho comunal de Chuao, presenteou-me com uma gorra do projeto Robinson, que cuida da alfabetização de jovens e idosos. Também os programas de medicina preventiva realizada nos barrios das grandes cidades prosseguem.


A ideia principal é transferir o modelo de democracia representativa para um de democracia participativa. Aqui no Brasil, as prefeituras do PT criaram com algum sucesso os orçamentos participativos. Na Venezuela, a ideia é que a participação seja praticada em todas as instâncias da vida social. No caso, as comunas assumem um papel decisivo, porque é a partir do seu coletivo que se organiza a democracia participativa. Cabe ao poder central gerenciar as demandas comunais e proporcionar recursos para que as comunidades se desenvolvam.


Dez anos de socialismo bolivariano permitiram sensíveis avanços sociais, diminuindo o abismo que separava os mais ricos dos mais pobres. Vi pobreza, mas não miséria; também não vi uma polícia que maltrata os menos favorecidos, para dar satisfações aos mais privilegiados. Nas mídias, ao menos as ligadas ao governo, não se percebe a ditadura de índices econômicos que nos aporrinha diariamente, as novelas de enredo único, ou a reprodução de um padrão étnico (predominantemente branco) entre os profissionais. De alguma forma, o que lá se denomina de terrorismo midiático (os temas repetidos à exaustão, como parte de um procedimento que conduz ao medo e a apatia social) tem sido assunto de acaloradas discussões, com direito a manifestações de rua. No dia 27 de junho, por exemplo, governo e oposição organizaram passeatas em comemoração ao dia do jornalista. A data reverberou em todos os meios de comunicação e o debate foi intenso.


Assim, entendo que, longe de se estabelecer uma ditadura conduzida por um sujeito destemperado (Hugo Chávez), o que ocorre é um árduo processo de transformação social, que encontra (e encontrará) toda sorte de obstáculos, de leituras parciais, mas que prosseguirá na construção de uma sociedade socialista, de inspiração bolivariana porque calcada na figura do libertador nacional, Simon Bolívar.




19 julho 2009

A aristocracia paulistana




Está na revista Carta Capital desta semana:

"Os lojistas da rua Oscar Freire, templo de consumo e ostentação nos Jardins paulistanos, criaram uma engenhosa fórmula para afugentar os moradores de rua da região. Trata-se do vale-esmola. As empresas distribuem os cupons entre os clientes e os orientam a entregar o papel aos pedintes, em vez de oferecer doações em dinheiro. O 'vale-valor', como a iniciativa foi batizada, só pode ser descontado na Casa Restaura-me, entidade assistencial localizada cerca de 15 quilômetros das reluzentes vitrines de joalherias e grifes estrangeiras da rua. (...)"

Como denominar esse tipo de atitude? O que esperar dessa aristocracia deslocada no tempo, que acredita em carruagens e se emociona com histórias encantadas? E que pensa que a miséria nas ruas se resolve se o miserável tiver menos preguiça e mais vontade de trabalhar? E que bandido bom é bandido morto?...

Lembram-se do furto que o Luciano Hulk sofreu nesta mesma Oscar Freire? Do texto que ele escreveu chamando o capitão Nascimento, da Tropa de Elite, para resolver (na base da porrada) a questão da (sua) segurança? E lembram-se do texto do Ferréz, discutindo a miserabilidade que conduziu o sujeito a furtar o reloginho de 20 mil reais?

Ambos os textos foram publicados na Folha de SP. Pontos de vista distintos, análises sociais distintas. Pois Ferréz respondeu processo por apologia ao crime e violência.

Casa grande e senzala, meus caros. Ainda se ouve o estralar do chicote.


18 julho 2009

Quando mais é menos



Veja a fartura de títulos que você dispõe para se tornar um sujeito feliz e bem sucedido. Não é legal? 

Muitos dos autores das obras que faço questão de registrar abaixo, estarão em fóruns de administração e marketing, como convidados especiais, falando de maneira original sobre... nada.

Como diria o mestre Jack S. Fucker, o segredo é acreditar... e o resto – todo o resto – é com você.

Não é lindo?

Vamos a alguns títulos:


"A quinta disciplina"
Arte e prática da organização que aprende

"As nove vendas da inovação"

"Quebra tudo"
Foi para isso que eu vim e você?

"Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes"
Lições poderosas para a transformação pessoal

"Caminho do meio para lideranças"

"O elefante não sabe"
Histórias para inspirar vencedores

"O show é você"
Encante as pessoas e realize o que parece impossível

"A estratégia do oceano azul"
Como criar novos mercados e tornar a concorrência irrelevante

"A cereja do bolo"
Negociação persuasiva: o poder da Emoção como diferencial no Bolo do Sim

"Como chegar ao sim"
A negociação de acordos sem concessões

"Tudo o que você pensa, pensa ao contrário"

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Não é interessante?
Abundância que promete uma infinidade de possibilidades.

Abundância onde mais é sempre menos.
Quase nada.



Mídia e poder




Com uma semana em Caracas, me desvencilhei do estranhamento inicial. Passo a passo, coloquei-me a par das nuanças da vida urbana, suas especificidades, observando cada dia com mais desprendimento os costumes e a gente caraquenha. Além de conhecer novos sítios interessantes, participei de mobilizações sociais, estabeleci contatos com mídias comunitárias, conheci pessoas interessantes, sorridentes, gentis, marquei encontros, descobri lugares para se beber uma boa cerveja, para se tomar um bom café, para ler, escrever, ouvir salsa, andei à pé, de metrô, de teleférico, tornei-me, enfim, um flâneur da cidade. Sempre um lugar desconhecido nos propõe desvendá-lo, e era minha proposta desde o início me permitir aos desafios. Um pouco mais e me apaixonaria por Caracas, pela feia e desconjuntada Caracas.

Um dos fatores que contribuíram para ‘descobrir’ Caracas foi o golpe em Honduras. Apenas dois dias depois de minha chegada, ele estourou com força nos meios midiáticos venezuelanos e nas ruas. Em pleno domingo, me vi em meio a manifestações de rua diante do palácio Miraflores, perto de dez mil pessoas levando a solidariedade a Manuel Zelaya, o presidente deposto, e ao povo de Honduras. Pela televisão, tive a oportunidade de confrontar as informações provenientes da CNN e da Globovisión – uma espécie de Globo venezuelana, claramente anti-governo – que avaliavam os acontecimentos com irritante naturalidade, dentro da fórmula “sucessão forçada de governo”, enquanto a TV Sur – governamental – acompanhava desde Tegucigalpa os fatos, com uma correspondente que mais tarde seria detida pelo exército hondurenho.

Enquanto as TVs privadas mostravam em seus noticiários entrevistas com ‘experts’ em ciência política ou direito internacional, sempre encontrando formas de validar o golpe, as TVs governamentais (além da TV Sur, Vive, Venezuelana de televisión, TVes) cobriam em pool, praticamente em tempo integral, o desdobramento dos acontecimentos, fosse em Tegucigalpa, em Washington (com o chanceler venezuelano na OEA), em Caracas (com intervenções de líderes do governo).


Assim, foi possível dispor de todas as informações, por todos os meios midiáticos, de todas as tendências, que aproveitaram o alzamiento para um embate aberto pela informação. Nas ruas, o que se viu foi a manifestação acima descrita, no domingo, onde identifiquei pelo menos duas rádios comunitárias cobrindo o evento – Junquitena e Negro Primero, e ao longo da semana, inúmeras manifestações de apoio ao governo deposto de Honduras, nos chamados Colectivos Socialistas, barracas em pontos estratégicos da região central, que transmitiam em tempo real o desdobramento da crise.

Foi possível ver, a partir desse embate midiático, que ao contrário de um processo ditatorial tão reverberado na mídia brasileira, existe sim uma ampla abertura à participação popular, já que fartura de informação não falta. O que ocorre, e isso é visível, a oposição venezuelana (como a brasileira) não possui um projeto político viável. A burguesia caraquenha odeia Chávez e tudo que recenda a participação popular. Pensa no poder como meio de satisfazer suas ambições, e ponto. Em compensação, a população menos favorecida, moradora nos barrios, secularmente alijada por centros de decisão política, está ao lado de Chávez em seu esforço por implementar as transformações sociais.

De modo que essa ruptura na sociedade venezuelana existe na forma de uma fratura exposta, sem conciliações à vista. Como dizem Rómer e Carol, um jovem casal que conheci em viagem a Choroní, “a proposta socialista de Chávez tem pontos positivos e negativos, o que está sendo implementado na saúde, educação, moradia, é um avanço, ainda não suficiente... há muito o que se fazer...”, deixando claro que apóiam o governo. Encontrei vozes dissonantes, como Gregório, recém-chegado de uma viagem a estudos da Itália: “o que esse governo faz é criar uma classe social, nivelada por baixo, pela pobreza”. No El Arroyo, outro hotel por que passei, Helena, a bela e simpática atendente dizia-se "chavista, por supuesto", enquanto seu chefe, o bom de papo Nelson, mostrava-se sempre cético “naquilo que o governo põe as mãos...”.

E prossegui desvelando essas incompatibilidades, que de algum modo se manifestaram ao sabor da espontaneidade do venezuelano. Poderia falar do amigo Títi, grande prosador; de Sebastián, el guarachero, de Rosana e seu sorriso insinuante; de Júlio, o faz-tudo; de Juan, o canoeiro; de Vicente, o pescador que se pescou; de Zuleima e seu bebê por nascer, da suavidade da playa de Chuao... mas isso já é outra conversa...




15 julho 2009

Primeiras impressões



Acabei na parte central de Caracas, por opção. Uma nova capital a se conhecer, nada melhor do que ficar em seu núcleo mais popular e antigo. No primeiro momento, ressalta a feiúra, o abandono dos edifícios, o caos do tráfego, a pífia infra-estrutura hoteleira, ao menos para atender viajantes com recursos limitados, como eu. Busquei três hotéis indicados no Lonely Planet e fiquei impressionado com a má qualidade das instalações. O outro problema foi encontrá-los, já que as ruas, praças e avenidas raramente dispõem de placas indicativas com seus nomes. Nesta parte da cidade, as ruas são designadas por pontos cardeais, norte, sul, leste, oeste... seguida de um número, por exemplo, Norte 2, Oeste 3... havendo sempre uma avenida como ponto de partida.

Optei pelo Gran Galaxie, sofisticado apenas no nome, porque estava cansado e porque anoitecia. Logo na entrada, como um anexo ao hotel, uma pequena e simpática panificadora; uma vez no hall, a circulação inusitada de clientes me revelaria uma animada boate, por trás de uma porta discreta, nos fundos. O Gran Galaxie é um ponto de encontro de alta rotatividade. As mulheres começavam a chegar e a se acomodar nas poltronas da pequena sala, ao lado do balcão de atendimento. Subi ao sexto andar, uma habitação simples, aparentemente agradável. Deixei minha bagagem e antes de sair, deparei com cucarachas de diversos tamanhos, um tanto assustadas com a repentina iluminação do ambiente. Considerei o fato como sendo de menor gravidade e saí pelas ruas.

A noite é mais feia e silenciosa nos lugares que nos causa estranhamento. Esta parte central da cidade me pareceu também erma, além de sem graça. Tudo à penumbra, espaço recortado por prédios de estilos desconexos, poucas pessoas circulando nas ruas. Costumo sempre nessas ocasiões buscar um recanto, um local que se torne uma referência ao longo da estada, um bar, um café, uma praça, e nem isso. Estava em um pedaço da cidade que - àquele horário do dia - se recusava a ser receptiva.

Por fim, encontrei a praça Bolívar, que se revelaria um delicioso local de convívio, mas que a esta altura estava escura e esvaziada. Duas mulheres faziam a limpeza e me aproximei. Sorriam generosas a cada pergunta. Na extremidade oeste da praça, um cantante tocava seu violão, interpretando músicas revolucionárias. Caminhava de um lado para outro, inclinado sobre o instrumento, concentrado nas músicas. Uma pequena assistência de velhos o acompanhava serenamente, aplaudindo-o ao fim de cada canção.

Atravessando a praça, uma outra indicação do Lonely Planet, o hotel C., que não me estimulou nem um pouco a mudar: seus quartos, embora mais assépticos, não dispunham de... janelas. Alfonso, o atendente, não se importou que eu não ficaria e batemos um papo. Perguntei sobre câmbio, ele prontamente me ofereceu a melhor oferta até então, prometi retornar no dia seguinte. Voltei para as ruas, nenhum lugar aberto para uma cerveja. Faltava pouco para as dez da noite, regressei lentamente ao Galaxie e as minhas cucarachas, para assistir um pouco de TV e esperar a claridade do dia seguinte.

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13 julho 2009

Sobre perdas e ganhos


Se meu avô estivesse vivo, estaria próximo dos cem anos. Não está, morreu logo após fazer 76, uma idade que virou referência para mim. Costumo dizer que quem vive menos que isso, morreu cedo; quem viveu mais, viveu o tempo certo. A coisa é simples assim. Quando nasci, ele tinha 44 anos e as fotos que disponho da época mostram minha avó e minha bisavó comigo, nada da presença dele. Aprendi a compreender esse seu comportamento ao longo da vida, discreto nos movimentos e quase sempre ausente nas manifestações emocionais. Hoje que ele não está mais, sinto falta de um hipotético afago, algo mais duradouro do que os abraços e beijos formais de nossos encontros. E nossos encontros foram muito poucos... Ele se movimentava timidamente em minha direção e me envolvia com um aperto carinhoso, um momento fugidio que expunha toda sua emoção, para no instante seguinte retornar ao seu mundo paralelo, transformando-se apenas em um figurante na casa repleta de gente. Vez ou outra ganhava os netos quando se propunha a descascar laranjas. Laranjas... Rodeado de crianças, mostrava sua destreza com o canivete de modo pacato, com um brilho suave nos olhos...
Acompanhei-o em muitas ocasiões, nas caminhadas silentes de sua casa até a loja de sapatos e com dificuldade me recordo de uma de suas raras visitas a São Paulo, quando veio resolver umas questões trabalhistas. Foi certamente o momento mais longo que permaneci ao seu lado, ainda que sem densidade, não passávamos de dois pontos em trajetórias paralelas. Uma extensa jornada em que a palavra ameaçou, espreitou, mas sucumbiu à frieza dos gestos distanciados. Saímos cedo de casa, tomamos um ônibus urbano e outro intermunicipal até a cidadezinha, na serra da Mantiqueira. Lá chegamos ao final da manhã e quem ele procurava não estava, de modo que ficamos caminhando pelas ruas feito dois cães abandonados, para cima e para baixo, pelas ladeiras desertas do lugarejo.
Quando meu avô achou que havia passado o tempo suficiente, regressamos à sede da loja de sapatos, da qual ele não passava de um vendedor descartável. Tudo o que desejava era encontrar o sujeito que lhe pagaria um dinheiro devido. Lembro-me que recebeu uma promessa de crédito para o mês seguinte. Tomamos o caminho de volta, cada qual com um sentimento definido, eu satisfeito por sair daquele impasse sem sentido, ele desconsolado em suas reflexões inexpugnáveis. Não havia ódio ou rancor, apenas uma desolação mais escavada. A partir dali, sei que a empresa de sapatos afundou irremediavelmente, e nunca recebeu o crédito prometido. Resolveu mudar de negócio, e de sapatos passou a vender doces, uma boulangerie numa cidadezinha condenada ao marasmo... Seus esforços, por mais honestos fossem, não conseguiriam safá-lo de nova decepção.
Nesse meu olhar retrospectivo, vejo que foi um homem incansável, movendo-se atrás das oportunidades e com uma família que não parou de crescer. Em sua juventude, circulou por meio mundo abrindo e fechando negócios, até chegar à cidadezinha condenada ao marasmo, com uma mão na frente e outra atrás. Fundou a rádio da cidade, sendo afastado por pessoas ambiciosas. Essa foi outra dificuldade sua, não via a malícia dos outros abordando-o, fosse a estibordo ou a bombordo. E acabava pelejando não pelos sonhos dourados, mas tão somente pela sobrevivência. Ligo os fatos, um empreendedor perdido em sua ingenuidade (ao menos um formulador de projetos ousados), buscando o sucesso redentor, embora há que se reconhecer, jamais a qualquer preço. Bem postas as coisas, era um idealista, a seu jeito é verdade, e não um negociante. Agarrou-se, por fim, ao plano que consumiria a segunda metade de sua vida: recuperar a rádio na cidadezinha condenada ao marasmo. Foram quarenta anos de luta inglória, que terminaram sem despertar a menor compaixão, dentro ou fora da família. Foi como se tivesse empreendido uma derradeira luta em exasperante câmara lenta, um Quixote ainda mais alucinado, sem a salvaguarda de um Sancho, sem conseguir mobilizar quem quer que fosse ao seu redor. Seus minguados recursos foram parar nas mãos de um advogado obscuro, que um belo dia desapareceu com a escriturária do cartório.
Da ilusão para o desespero soturno foi um doloroso passo e foi esse estágio que me marcou: era comum, nos últimos anos, vê-lo entretido nas questões mais comezinhas da casa, descascando frutas para o almoço, limpando objetos elétricos, moendo café, fazendo anotações sobre os preços dos alimentos, sempre com a atenção dispersa em seus pensamentos, que se tornaram mais e mais herméticos. De outra parte, poucas pessoas se deram tão mal na vida profissional e tão bem na vida familiar. Ou seja, é lícito dizer que nenhum desses problemas afetou o desenvolvimento do caráter de seus filhos - meus tios e minha mãe. Mais do que isso, tornaram-se pessoas amáveis, afortunadas, donos de um contagiante senso de humor, instrutivo para todos os momentos de desalento, cordiais, apaixonantes. Em suma, de alguma forma meu avô construiu um lar em que não faltou educação, carinho e proteção, permitindo a seus filhos crescerem como seres humanos dignos, respeitados e bem-sucedidos.
Em um mês de maio, em viagem à Europa, enviei um postal a ele e a minha avó, que já viviam solitários: É muito bom conhecer novos lugares, mas estar longe bate uma saudade imensa da nossa terra e das pessoas queridas... Amo vocês! Um ano mais tarde, ele faleceria em decorrência das seqüelas de um derrame. Dias depois, eu recebia de volta o postal, como resgate de um espólio indesejado. Minha mãe relata que ele teve consciência da morte se aproximar, deitado em seu leito hospitalar, de ora em vez lançando um olhar através da vidraça da UTI, talvez exprimindo todas as incertezas acumuladas na vida. O silêncio envolvendo seus últimos movimentos foi absoluto e a luta resultante, a mais inglória de todas.
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11 julho 2009

Catia



A chuva desabou, por fim, no último dia, na última tarde. Por diversas vezes ela ameaçou, sem se realizar, o que normalmente é bom para um viajante. Tomei o táxi no terminal de ônibus, depois de chegar de Maracay, e segui em direção ao aeroporto. Restava ainda umas quatro horas para o embarque, mas optei por me adiantar, sabendo que encontraria um tráfego pesado, no longo percurso a cumprir. Freddy Hernandez, nome de cantante de salsa, foi o taxista da vez. Sujeito de poucas palavras, tímido, animava-se com poucos temas. Aceitou com breve e delicada resistência minha proposta para a corrida, 120 bolívares. Em Caracas, há uma tabela de custos, de acordo com a corrida, por isso a possibilidade de regatear. Ao lhe falar sobre meu prazer pela salsa, ele sorriu mais abertamente e colocou um CD gravado por ele, que serviu como fundo musical para nossa conversa entrecortada, com poucas revelações.

E assim fomos, em meio ao atravancado tráfego, sob chuva torrencial, ao aeroporto. De súbito, uma pergunta inesperada de sua parte: Que te pareces la Venezuela? Antecipou o que seria minha pergunta, reproduzida pela enésima vez. Achei oportuno que eu começasse, pois em seguida imaginei que seria fácil extrair uma opinião sua, o que não ocorreu. Freddy ficou fechado em copas, mas pelo menos foi um taxista que não atacou o governo.

Avançamos aos bocados por uma ampla via-expressa, transida de carros de todos os tipos, de chatarras ambulantes a modernos utilitários. Com 4 bolívares, uns três reais no câmbio oficial, enche-se um tanque com 40 litros de gasolina, o que explica a profusão de veículos de todas as idades e tipos, circulando pelas ruas o tempo todo. Já estávamos quase uma hora avançando de metro em metro, quando desembocamos na auto-pista, bem mais livre, que conduz ao aeroporto e ao litoral. Ao deixarmos a alça de acesso, surge a impressionante visão do barrio chamado Catia, uma comunidade enorme que se estende encravada nas encostas da montanha.

A medida que se avança pela auto-pista, desvela-se com mais detalhes a carência, a feiúra, as dificuldades dessa comunidade. Antes de se alcançar o túnel que cruza a enorme montanha, a aproximação é contínua, como se a favela se posicionasse para nos tragar, permitindo desvelar a pobreza instalada, os casebres acumulados uns sobre os outros, a ausência de espaços úteis... Lembro-me que ali foi um dos pontos de resistência ao golpe midiático de 2002. Funcionava a TV Catia, comunitária, prestando serviços sociais à comunidade, e suas câmeras ajudaram a registrar as imagens de sublevação popular que reinstalou o poder constitucional. No interessante livro de Renato Rovai sobre o tema, ficamos sabendo que se disseminou uma guerrilha informativa baseada na internet e em celulares, que mobilizou a população naquela ocasião.

Mas volto a Catia, seu olhar denso, brutal, me encara sem piedade. Encara a todos sem piedade. Três ou quatro minutos, até que mergulhamos no túnel, um não-lugar que nesse caso tem a importante função de reter nossa última imagem de Catia por um bom tempo. Começo pelo fim meu (breve) relato venezuelano, um derradeiro olhar a uma comunidade longamente abandonada, e que pouco a pouco é convidada a participar da vida civil. 

Cátia, um nome atraente, delicado, que não faz questão de esconder suas vicissitudes; uma dentre tantas outras comunidades pobres que busca transformar-se, abraçando o impulso revolucionário ora instalado no poder.