15 novembro 2008

Uma solução inconveniente


Ele engoliu o almoço dominical, sem dizer uma sílaba. A mulher não gostou de ver o marido assim preocupado, mas compreendeu perfeitamente suas razões. Os filhos pequenos, olhares inquisidores, estranharam ao vê-lo degustar o último gole de cerveja e retirar-se para o quarto, não para a sesta habitual, mas para envergar o terno reservado para a missa. Andaram pelos cantos, perscrutando-o em sua movimentação suspeita. Ouviram-no pedir para a mãe deixar a cozinha e arrumar-se. E entenderam que a tarde de domingo seria longa e sem graça, quando a vizinha chegou para ficar com eles, numa clara alusão de que os pais se ausentariam por um bom tempo.

E assim, marido e mulher tomaram o coletivo para Santo Amaro e dali, uma lotação para o centro da cidade. Informaram-se como ir até a ponte das Bandeiras e uma vez lá, postaram-se à entrada da ponte, em frente ao clube Tietê, e esperaram. Ele leu ainda uma vez o telegrama recebido, olhou para as redondezas, sim, não havia dúvidas, o lugar era mesmo aquele. O suor abundante no rosto refletia sua ansiedade pela insólita espera, enquanto a mulher procurava tranquilizá-lo, ajeitando-lhe o caimento do terno e o nó da gravata. Passados poucos minutos sob o sol aberto de outono, eis que surgiu discretamente um cidadão portando um chapéu panamá, barba por fazer, com um maço de papéis sob o braço. Mais tarde, a mulher descreveria detalhes importantes desta figura sinistra, como o jaleco que ele vestia, parecendo ser "de um defunto maior", além da "fala mansa e da contenção nos gestos". 


O cidadão vindo do nada se apresentou como Sub-Contador dos Materiais Permanentes da Municipalidade e foi logo entregando os papéis ao homem que, atarantado, ouviu um discurso furtivo sobre suas responsabilidades futuras pertinentes à administração da ponte. Algo como: Saiba, senhor José, que a cidade espera que seja cumprido o seu dever na preservação desta ponte..., ao que acrescentou, com a voz falsamente embargada, tentando criar um caráter solene para a situação, Gostaria de reiterar o constante no artigo seis, parágrafo d, do Programa de Cuidados Sobre Bens Públicos (ah sim, aqui está... dê uma olhada na página quatro do contrato), que, por qualquer descuido em suas funções de preservador da coisa pública, a punição prevista será sua detenção por tempo indeterminado... 


Os carros passavam indiferentes pelo lugar, a tarde fazia-se mais abafada do que qualquer outra, a mulher teve alguma dificuldade em entender o que se passava, o marido olhou a sua ponte enquanto o Sub-Contador aprumou-se, espanando uma sujeira fictícia no ombro de seu interlocutor. Bem, senhor José, preciso de sua assinatura nestes recibos. Use minhas costas como apoio e seja rápido, determinou com a inalterável fala mansa, apenas preocupado com as surpresas laterais.



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