... de modo que seguiam sentados em torno da mesa de refeição, tomavam um bom vinho chileno e conversavam animadamente, enquanto Guilherme e Anastácia preparavam a corvina ao modo paulista. Ainda estavam nos entretantos sobre as situações vivenciadas em sala de aula, quando Jéssica sorriu antes de mais uma provocação, Quando foi a última vez que você se emocionou de verdade?, perguntou olhando a Fernando.
Por uma história de amor..., sorriu abertamente.
Não... me fale de um motivo banal, corriqueiro, desses que ninguém dá bola!...
Olhou para todos, incluindo Otávio e Marcela. Anastácia quis comentar uma situação passada havia dois dias... Só um pouquinho, espera só um pouquinho – cortou Jéssica – quero saber primeiro dos machos presentes!, interveio, satisfeita com a provocação. Os rapazes entreolharam-se, desacorçoados. Houve um momento de espera, algumas risadinhas indigestas, um comentário breve de Guilherme, tudo indicava que não haveria qualquer comentário.
Bom, posso contar uma situação singela, redargüiu Otávio, volteando no ar o copo de vinho em movimentos suaves, por fim sorvendo um bom gole da bebida. Não o levaram a sério, imaginaram que começaria um melodrama de efeito burlesco, como era bem do seu estilo. Mas fizeram silêncio, uma chance para que Otávio dissesse algo que não fosse tripudiado por Fernando, comentarista mordaz nas reuniões entre amigos. Otávio era visto pela turma como o sujeito das observações fora do lugar e quando elas construíam algum sentido, costumava escorregar no momento inoportuno, propiciando a galhofa atravessada. Tornara-se uma espécie de escada para os piadistas da turma, de modo que desta vez todos, especialmente Fernando, o mais ferino, aguardaram bem comportados a hora certa.
Então... como disse, creio que não faz muito sentido, mas... Aconteceu anteontem, estava ouvindo música cubana, um disco, escolhido ao acaso, queria terminar uma aula no power-point e o primeiro que alcancei foi o Compay... (deteve a narrativa por um instante, como a escolher as palavras certas) Passei a ouvir as músicas... o prazer de sentir a leveza daquela voz grave, áspera, o elogio da vida... até que uma canção... uma canção chamada... vejam só, essa música tocou-me de modo diferente... detive o meu trabalho e tomei o libreto do álbum nas mãos, de súbito quis saber mais, o que estivesse ali relatado, enquanto ouvia a música virava as páginas e deparava com imagens de Compay, sua presença sempre sorridente, junto aos amigos... na contracapa a foto decisiva, Francisco com seus vinte e poucos anos, ao lado da companheira Ana e embaixo, uma dedicatória que expressava amor: Para Ana, Yo te quiero, cariño... ... deslizei pela cena, amparando-me em seus detalhes, como se revivesse uma juventude que me parecia eterna... a voz encorpada cantando... Mi vida es um martírio sin cesar/mirando tu retrato me consuelo/ vuelvo a dormir y vuelvo a despertar...
Em um instante eu estava lá, o fotógrafo cúmplice, minha imaginação flertando como em um sonho, sob o clima da suave manhã, o aroma eflúvio de seu inseparável charuto... a contagiante satisfação de Francisco com sua querida Ana, eu a pedir-lhes uma pose... Sim, isso, agora, um sorriso!... a pressão no obturador da máquina, a imagem captada, o início da trajetória do mito... Sua pose... pedi que apenas apoiasse a mão delicadamente sobre o ombro de Ana... Os gestos resultando em um sóbrio equilíbrio para a cena... o jardim ao fundo... o silêncio... a expressão de felicidade captada... Diga algo, Francisco, solicitei e prontamente sua poderosa voz rompeu, um rugido impreciso, como se ajustasse o tom até ganhar a impostação correta... Francisco exprimiu-se, sorridente em meio a sua aura de bondade, que atravessou os tempos e, como um bumerangue, tornou a alcançar-me neste futuro de tão pouca memória... reencontro emocionante com o olhar generoso, sempre feliz ao lado de Ana...
A voz de Otávio subitamente se interrompeu, sob o inesperado silêncio dos amigos...
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