28 setembro 2021

Victor Serge

Victor Serge no México

No livro Memórias de um revolucionário, à página 362, há uma delicada descrição de Serge, prestes a ser transferido para algum lugar não definido pela GPU, como se designava então a polícia secreta soviética: "O velho Eltsin, tolhido pelo reumatismo, vivendo num quartinho gelado, numa casa sem banheiro, quando lhe perguntei, 'Devo fazer no exterior uma campanha de imprensa para exigir a sua saída?', disse: 'Não, meu lugar é aqui' ". 

Serge, favorecido por sua dupla cidadania, belga e soviética, e por uma campanha intensa dos intelectuais europeus, conseguia, depois de três anos como deportado nos confins do Casaquistão, ser banido da URSS. Sua descrição sobre esses espaços ignotos e sem-fim impressionam pela simplicidade do processo: após dias e mais dias de transporte ferroviário, o condenado era desembarcado e entregue à própria sorte, tendo que se apresentar regularmente à sede local da GPU. Temperaturas rigorosas no inverno e verão, subempregos e as transferências para outros rincões faziam da luta pela vida uma tarefa íngreme. Sobreviveu, segundo suas palavras, por não ter capitulado nos interrogatórios que amargou, por apoiar Trotski e outros velhos revolucionários que faziam parte da Oposição ao regime de Stalin. Caso tivesse admitido algum dos crimes que lhe eram falsamente imputados, certamente não teria recuperado a liberdade.

Eltsin, assim como outros companheiros de Serge, Bobrov, Guirchek, Bielienki, que lutaram pela construção do socialismo na URSS, sofriam o desterro que, pouco tempo mais tarde, culminaria em seus desaparecimentos. Tinham participado da tomada do palácio de inverno, da guerra civil e depois da economia de guerra, do "passo atrás" da NEP, dos debates acalorados no Comitê Central que propiciaram, já no final dos anos 1920, a implantação da coletivização forçada e da aceleração do processo de industrialização. 

As palavras de Eltsin conformam a aceitação do destino imposto a muitos revolucionários, de variadas tendências, deportados como valorosos bolcheviques, "meu lugar é aqui", palavras ditas sem quietismo, simplesmente se aceitava beber o cálice amargo até o final. Isso nos levaria, de imediato, às descrições vívidas de Serge dos rincões perdidos na Rússia, enfiados nas estepes esquecidas, sempre piolhentas e esfomeadas, relatos que, pela sua densidade, pela ignomínia, envolve um processo semelhante para cada um dos desterrados. Não o farei aqui.

Victor Serge acabou banido da URSS em 1936, no auge dos processos de Moscou, rumo à França, graças ao forte apoio de entidades políticas e intelectuais atuantes da Europa ocidental. Sua preocupação era escrever, produzir sua literatura sob vários gêneros, relatando as experiências do exílio, a poética, as perspectivas políticas. É sugestivo passar por suas páginas das Memórias..., para se conhecer a deturpação stalinista do que deveria ser o comunismo. Fica também claro, pelo menos para mim, que os desígnios do comunismo democrático não passariam exclusivamente pelos caminhos propostos por Trotski, Bukharin, Preobrazenski, ou mesmo Lênin, mas certamente por uma conjunção de todas essas tendências. Naqueles anos turbulentos seria difícil que as escolhas políticas e econômicas mais acertadas lograssem sucesso.

A morte de Lênin, prematura, em janeiro de 1924, acelerou disputas internas que imobilizariam, durante os cinco anos seguintes, a instalação de um comunismo ao menos funcional, com uma cara minimamente humanista, voltada para a elaboração de uma sociedade que abraçasse a realização dos novos ideais. A guerra civil, que tomou três anos da jovem república, retardou de modo indelével o início de um programa socialista, distorcendo-se com a ascensão de Stálin, então o regente de uma burocratização que imobilizaria o partido e o conduziria ao poder absoluto.

A sociedade soviética igualmente se imobilizaria, tanto pelo cansaço como pelo terror que recrudesce e que paulatinamente elimina os mecanismos democráticos de decisão. Não é por acaso que surge uma oposição da qual Serge fez parte, não como uma ação sectária, mas como o desejo de resistir ao rolo compressor burocrático. A partir de 1934, com o assassinato de Kirov, o estado policial se instaura e com isso, extingue-se toda e qualquer oposição interna, com o fim físico dos velhos bolcheviques. 

Pode-se estar ou não de acordo com o relato de Victor Serge, mas é inquestionável a qualidade da narrativa, que nos leva a vivenciar a crueldade das deportações. Trotski primeiro, e mais tarde o próprio Serge, escaparam da humilhação ao serem banidos. E ser banido representou o apagamento de intensa participação nas heroicas jornadas revolucionárias. Seu texto surge de maneira crua ou poética, dependendo da circunstância. É curioso notar que o filho adolescente o acompanha em todos os momentos mais sombrios; sua esposa, doente, passou parte do tempo internada em um sanatório de Moscou. 

Serge ainda escaparia das garras do nazismo, na última badalada, para o exílio final no México. Lá passaria a última etapa da vida, falecendo aos 57 anos incompletos.



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