15 setembro 2021

Paulo Freire, 100

 

Era assim o começo de cada semestre

Um dos reconhecidos prazeres de liberdade de cátedra é o educador ter a autonomia de montar seu curso e criar em sala de aula. E criar um ambiente de participação efetiva com o que se debate. Este foi o meu caso, nos últimos anos de minha atuação como professor, junto a alunos oriundos majoritariamente das áreas mais precárias da metrópole. Foi um tempo em que foi possível lançar luzes em autores indispensáveis para a nossa formação social, tais como Caio Prado Jr., Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Darcy Ribeiro, Antonio Cândido, dentre outros. Não havia a chateação que deve ocorrer agora, de professor ter de seguir um conteúdo programático previamente definido, engessado, vigiado, e ao romper com isso, ser chamado de ideólogo, ou doutrinador, ou alguma bobagem desse tipo.

Tempos de realização profissional, de passar por diversas disciplinas das Ciências Sociais Aplicadas, de Filosofia a Antropologia, de Teorias Sociais a Teoria Política e encontrar uma estimulante receptividade. Lembro que era comum nos divertir, eu e os alunos. Com a ajuda de imagens, o que amenizava as dificuldades do aprendizado para muitos alunos que deparavam pela primeira vez com temas tão complexos, era possível ilustrar os acontecimentos históricos, sociais, culturais, dar carne aos autores que estudávamos, criar sentido para as narrativas, e deixar que eles analisassem e julgassem livremente. Quando digo que nos divertíamos, era comum o final da aula chegar e muitos alunos, ao redor da mesa, seguir nos comentários sobre os conhecimentos apreendidos.

Certamente nesse processo o aprendizado foi mútuo. Logo compreendi que um tema que parecesse árido, absolutamente desconhecido, podia se transformar numa agradável surpresa, e nesse sentido, valia muito o esforço coletivo para chegar a uma didática que revelasse o sentido de cidadania, de percepção do processo histórico. Sobrevinham os assuntos, Canudos, escravidão, casa grande e senzala, sociedade colonial, golpe militar, o homem cordial, dentre outros tantos, e imbricados nesses grandes painéis, os aspectos presentes da vida cotidiana, como a desigualdade social, o negro como subalterno, a mulher cerceada em seus direitos, a força e o abandono das periferias urbanas e por aí afora.

Começávamos o semestre com uma aula mestra, que iria orientar o caminho a ser percorrido, a pedagogia de Paulo Freire. Eram aulas que resultavam em intervenções performáticas, pois a partir de um determinado momento tamanho era meu envolvimento me transfigurava, incorporando a beleza do significado de podermos constituir ferramentas  para melhor compreendermos o mundo ao redor e, ao final das contas, interagir como atores sociais. Sentia-me conduzido pela naturalidade da pedagogia freireana, e muito animado em observar que tudo fazia sentido para os educandos, que absorviam os desígnios da prática libertadora como ação cultural do ser humano. 

Era difícil esgotar o tema, era difícil chegar a um resultado final, e ficava bem assim, o horizonte aberto para novas revelações, que viriam ao longo do curso. Paulo Freire foi vital para que pudéssemos, educador e educandos, conceber utopias a partir de nossa realidade. Nunca naqueles cinco anos surgiu um aluno que invectivasse as etapas de seu método, ao contrário, não foram poucas as vezes que se produziram calorosos olhares e impressionados comentários, como fruto de uma necessidade orgânica, visceral, que precisasse ser exalada e redimensionada.  

Minha condição de educador ficou muito facilitada ao incorporar às aulas aquele manancial de ação cultural, que com a sequência do curso se transformava em caudaloso rio, cuja força e beleza nos tornava um pouco mais sujeitos cognoscentes, um pouco mais cidadãos inquietos, absortos na problematização dos temas cotidianos, a refletir de maneira crítica os fatos. Seria a mais pura falácia observar nesse processo de aprendizado algum grau de doutrinamento, pois é justamente isso que Paulo Freire condena - o indivíduo automatizado, imerso em uma empobrecida memorização alienante. 

Era por demais livre e autônomo para dar chances a um grilhão desse tipo. Foi saudável incorporar, como propunha Paulo Freire, "a esperança utópica na busca da transformação social", começando pela transformação de cada um de nós.

(atualizado em 16.09.2021)



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