14 setembro 2020

Vocacional, uma grande experiência


Ao assistir ao filme Vocacional, uma aventura humana, de Toni Venturi, constatei que toda a força e beleza daquela experiência educativa narrada não era a mesma que vagamente recordava em minha experiência pessoal. De 1967 a 1969 acompanhei à distância, nos fundos do Linneu Prestes, uns jovens calados, que aparentavam mais idade e usando como uniforme um macacão escuro trabalharem em uma pequena horta coletiva. Era o trabalho externo deles. Eram orientados por professores diferentes, que não conhecíamos. Parecia-nos uma atividade à parte da escola, é controlada a ponto de sermos estimulados a não nos aproximar. Havia poucas informações sobre aquela "gente" e sobre o que faziam. 

Entre nós, jovencitos sem a menor noção das coisas, corria uma conversa de que aqueles rapazes e aqueles professores era gente imbuída de outros propósitos e que devíamos evitar. Ninguém nos explicava nada, mesmo quando eles conviviam conosco, nos recreios. Sempre houve um manto de silêncio a acobertar suas práticas e creio que era bem esse o esforço da diretoria, que tudo permanecesse sem explicações até que o período letivo se encerrasse e todos voltássemos para casa. E assim ocorreu. Um dia o ano acabou e eles não mais voltaram. 

Com a cronologia do maravilhoso filme de Ventura, resgatei o que desconheci por completo, e pior, o que descriminei sem ter qualquer conhecimento. Já em 1967, meu primeiro ano de colégio público, essa experiência concebida pela educadora Maria Nilde Mascellani já estava fadada à extinção. Seus anos mais profícuos foram antes do malfadado golpe cívico-militar que terminou por abestalhar este país e nos conduzir à vala em que estamos. 

É de singela beleza ver os depoimentos emocionados de ex-alunos, hoje vovôs respeitáveis, descrevendo as discussões coletivas em sala de aula, as preocupações com economia doméstica, a prática da integração social, a valorização do ser humano. É bonito acompanhar um trecho do filme com uma narração over de ex-alunos descrevendo a prática do trabalho na cantina, como exercício não só de matemática, mas de cidadania. Há também um momento em que alunos se posicionam sobre o cenário geopolítico, em que têm completa noção da realidade em que vivem. 

Era comum realizarem pequenas excursões para cumprirem determinadas atividades, e assim permitir que os alunos desenvolvessem um sentimento de convívio social. Percebam a diferença desses pequenos jovens de 7, 8 anos em relação a mim, um ingênuo incrustado em meio a temores e desconfianças. Eles praticavam o que se denominava de aula síntese, onde comunicavam em determinada ocasião os conhecimentos adquiridos, compartilhando com a sociedade (o público). 

Aprendiam história e cultura ao vivo, com excursões mais longas, a aula plataforma, onde, por exemplo, todos participavam por 10 dias de atividades nas cidades históricas, em contato com nosso barroco. Há descrições lindas sobre o trabalho com a arte, a manifestação poética, a passagem do não-ser para o ser... Fazer, pensar, voltar a fazer, voltar a pensar! Para isso os professores tinham seis meses de preparo antes de assumirem uma turma. Ganhavam bons salários e para tanto funcionava o prazer em exercerem o papel afetivo como educadores. Bem feitas as contas, tratava-se de uma visão de respeito profundo ao ser humano.  

É com o sentimento de humilhação profunda observar que todo esse maravilhoso programa educativo foi desativado por insinuações obtusas e obscuras de que tudo não passava de uma experiência marxista-comunista ou coisa do gênero. O tempo que perdi em travar conhecer ciências como a filosofia, a sociologia, a antropologia, a própria matemática, é algo que não consigo conceber, até porque as razões para que isso acontecesse foram medíocres, sem qualquer comprovação. O mesmo aconteceu com a maioria dos jovens de minha geração, perderam, sem que o jogo fosse jogado. Ver o filme de Toni Venturi é descobrir que neste país houve uma tentativa maravilhosa de educar com seriedade e competência. Uma brisa refrescante em se ouvir, aprender e apreender, e se demonstrar que o ensino era parte do processo de formação cidadã. 

Quanto a isso, sou testemunha e digo com todas as letras, os patéticos militares em comunhão com nossa fútil classe dominante, não tiveram a menor inspiração para produzir. Ao contrário, defenestraram a poesia e as artes, o prazer do aprendizado e o amor pelo outro como formas perniciosas de ser, que, no final das contas, em sua vil interpretação, só poderia destruir o poder popular. Essas pobres criaturas se reproduzem caricatas, ainda estão aí, vicejam entre nós, e sua herança será o nada sobre nada.





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