02 setembro 2020

O horror naturalizado

Nossa arcaica desigualdade estrutural

Após um par de semanas sob os efeitos de forte frente fria, a temperatura se estabiliza próximo do que foram as semanas anteriores de inverno, entre os 14 e os 26 graus, com o retorno do sol e do céu azul. Isso tem feito muita diferença, pois definitivamente meu corpo não tem suportado esse frio paulistano, tão úmido e desconfortável. Penso o quão egoísta tenho sido, vendo no entorno tantos indigentes absolutamente vulneráveis. Quando chegamos a 5 ou 6 graus na madrugada, meu tremor me lançou para o desespero destas pessoas abandonadas, sem alternativa para se aquecerem e terem uma noite de sono. 

Aqui perto, meu vizinho que habita os degraus da Receita Federal já há pelo menos três ou quatro anos, deve sofrer profundamente. Um negro alto, que foi mais forte e já apresentou um sorriso mais esperançoso, agora me dá a nítida impressão que fenece aos bocados. Quando o vírus fechou o comércio e afastou as pessoas das ruas, não faço ideia como ele resistiu. Em algumas ocasiões, entrego café e pão de queijo ou broas de milho, penso que o problema seja mais de ordem alimentar do que de vestuário. Ultimamente não o tenho encontrado, suponho que se ocupa com alguma atividade, remunerada ou não, que o desloca para outra parte da cidade, ou para outro lugar discreto. Seus pertences ficam ali, fragilmente cobertos por uma espécie de plástico, e não sei se não padece com predadores, outros seres à deriva como ele e que lutam por sobreviver.

Tento imaginar como devem ser cruéis essas noites na rua, sem qualquer opção. Só mesmo os fortes, essa estirpe de gente que encontra forças para persistir, ainda que isso não forneça alternativas dignas. Pessoas delicadas e simples, duras de pele e ternas de coração. Passamos não só pelos dias mais frios do inverno, como passamos pela onda mais abjeta do capitalismo espoliador, que não tem prazo para acabar. Isso multiplica o sofrimento das pessoas miseráveis, transformando-as em alvos prioritários de destruição presumida. E não há lei ou ética social que impeça esse exercício abjeto das classes bem-fornidas e dominantes.  


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