Minha biblioteca Mario Benedetti |
Tenho andado saudoso por aqui, mas fazer o que, memória é também ação política. Em 1997 estava de passagem na cidade de Guadalajara, em razão de um congresso de semiótica. Permaneci alguns dias antes de iniciar, por conta própria, uma longa viagem terrestre até Seattle, no estado de Washington, passando por Puerto Vallarta, Mazatlán, La Paz, na Baja California, Tijuana, Los Angeles e São Francisco. Antes de iniciar o longo périplo, passei em uma livraria tapatia e em uma prateleira de autores latino-americanos, optei por um pequeno livro de contos, La muerte y otras sorpresas, de Mario Benedetti.
O conjunto de contos me agradou plenamente. Não se tratava do melhor livro de Benedetti, mas Acaso Irreparable, Ganas de Embromar, La Muerte, Cinco años de vida, foram alguns dos textos que me fizeram retomar diversas vezes este pequeno tomo, sempre desconcertado pelas surpresas. Foi a porta de entrada para conhecer mais profundamente sua obra, e que me despertou de modo decisivo para a prosa do nosso continente. Me fez também conhecer mais a fundo a resistência política que ocorreu no Uruguai nos anos 1960, fazendo-me conectar com as demais lutas contra os estados de exceção ocorridos no Cone Sul.
Cheguei a visitar o Uruguai duas vezes com ele vivo, alimentando sempre o desejo de conhecê-lo, porém não passei da aquisição de livros seus. Era ainda o tempo que com alguma sorte, poderia ir até o Café Brasileiro, na entrada da Cidade Velha, e encontrá-lo bebericando seu café, talvez na companhia de outro dos frequentadores, Eduardo Galeano, mas quis o destino que não houvesse esse encontro mágico. Hoje leio com regularidade a ambos, em especial nas transmissões da rádio Balmaceda, onde declamo poesias ao final da noite para mi querida y única radioyente, Moniquita Rebecca.
Segunda-feira, 14, é o aniversário de 100 anos de Benedetti. Em maio do ano passado completaram-se dez anos de sua morte. Teve uma vida longeva, 88 anos, plena de acontecimentos e reconhecimentos. Seguirei lendo e relendo seus contos sempre com uma alegria especial, que me toma profundamente quando inicio uma narrativa sua. Um escritor que empurrado para o mundo para fugir do ignominioso cerceamento que sofreu pela tacanhez totalitária, seguiu produzindo com qualidade admirável seus contos, poemas relatos, análises sociais, memórias, oferecendo-nos uma personalidade sensível, em profundo diálogo com os encantos e apreensões da alma humana, e igualmente se fazer decidido em suas escolhas da vida.
A Expressão
Milton Estomba tinha sido uma criança prodígio. Aos sete anos já tocava a Sonata no. 3, Op. 5, de Brahms, e aos onze, o unânime aplauso de crítica e de público acompanhou sua série de concertos nas principais capitais da América e Europa.
Entretanto, quando cumpriu vinte anos, notou-se no jovem pianista uma evidente transformação. Tinha começado a preocupar-se desmesuradamente pelo gesto rebuscado, pelo rosto afetado, pelo cenho franzido, pelos olhos em êxtase e outros tantos efeitos afins. Ele chamava a isso "sua expressão".
Pouco a pouco, Estomba foi se especializando em "expressões". Tinha uma para tocar a Patética, outra para Crianças no Jardim, outra para a Polonesa. Antes de cada concerto ensaiava em frente ao espelho, mas o público freneticamente envolvido tomava essas expressões como espontâneas e as acolhia com ruidosos aplausos, bravos e batidas com os pés.
O primeiro sintoma inquietante apareceu em um recital de sábado. O público percebeu que algo raro ocorria, e no aplauso chegou a demonstrar um incipiente estupor. A verdade era que Estomba havia tocado a Catedral Submersa com a "expressão" da Marcha Turca.
Porém, a catástrofe sobreveio seis meses mais tarde e foi qualificada pelos médicos de amnesia lacunar. A lacuna em questão correspondia às partituras. Em um lapso de vinte e quatro horas, Milton Estomba se esqueceu para sempre de todos os noturnos, prelúdios e sonatas que haviam figurado em seu amplo repertório.
O assombroso, o realmente assombroso, foi que não esquecera nenhum dos gestos exagerados e afetados que acompanhavam cada uma de suas interpretações. Nunca mais pôde dar um concerto de piano, mas há algo que lhe serve de consolo. Ainda hoje nas noites dos sábados, os amigos mais fiéis o visitam em sua casa para assistir a um silencioso recital de suas "expressões". Entre eles é unânime a opinião de que seu capolavoro é a Appasionata.
(traduzido do texto original La Expressión, da obra La Muerte y otras sorpresas, Buenos Aires, Ed. Seix Barral, 1998).
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