Folhetim, 3 de julho de 1983 |
Em fins de 1977
preparava-me para os exames de vestibular para Economia, inscrevendo-me um uma
série de faculdades. E recordo-me que incluí administração de empresas na
Getúlio Vargas. Fiz a inscrição no edifício da avenida Nove de Julho, havia uma
pequena fila e na minha frente, duas garotas conversavam. Tive tempo para
observar que uma delas, a menor, portava um livro que já tinha
ouvido falar, O Processo, de um tal de Franz Kafka. Meu
desconhecimento era tamanho que imaginava tratar-se de uma obra metafísica, na
linha dos livros de Herman Hesse e naquele momento de descobertas, estava mais
interessado na concretude (e nas durezas e dissabores) das narrativas do real.
O que mudou minha opinião a respeito daquele autor foi simplesmente tê-lo visto nas mãos de uma bela garota, que prestaria um dos vestibulares mais concorridos do país. O que isso queria dizer? Nada, mas o detalhe não me passou despercebido. Precisava, pois, investigar e saber mais. Em um tempo que não havia as facilidades dos sítios de busca no celular, fui ao longo dos anos juntando as peças desse infindável mosaico e valeu o esforço quase obsessivo. Descobri que em casa tínhamos, pelo velho Clube do Livro, A Muralha da China. E depois avidamente as busquei nas prateleiras das livrarias, encontrei outros títulos e o que li me impressionou de maneira decisiva. Veio A Metamorfose, e em seguida, O Processo, pontapé inicial para adentrar o labirinto kafkiano e me guiar os primeiros passos em minhas histórias, em meus contos.
Poucos anos mais
tarde, recebi como encarte da Folha de SP o Folhetim que destaco acima. Era
todo dedicado a Franz Kafka, e dentre as fábulas e aforismos traduzidos diretamente
do alemão, havia uma narrativa de outro autor que então desconhecia por
completo, Otto Maria Carpeaux. Um texto magnífico, que consolidou minha admiração pelo escritor checo. Com o passar dos anos, acumulei
diversos títulos, a maioria com tradução de Modesto Carone, mas também alguns
de Portugal, como O Castelo e Os Aeroplanos de Brescia.
Acabei montando uma pequena e respeitável biblioteca kafkiana, mas, bem, essa
já é outra história.
Para mim, Kafka
tornou-se uma importante referência literária, por seu estilo tão
característico, pela maneira sóbria de relatar, provocando uma incômoda impressão de impotência que se multiplica por caminhos labirínticos sem fim. Atraiu e influenciou um número expressivo de escritores, que nas palavras de Carpeaux, faz de Kafka um dos mais imitados no mundo. Eu não
fui exceção, e embora não tenha desejado imitar sua narrativa, certamente fui por ele compelido a colocar no papel minhas dolorosas visões existenciais, abrindo
caminho sem dúvida para, mais ou menos nessa época, enveredar pelos autores
franceses do pós-guerra, como Sartre, Beauvoir e Camus.
Trago abaixo um apanhado pessoal do belo ensaio de Otto Maria Carpeaux, publicado
originalmente no livro de ensaios póstumo Realidade e Reflexo (1978),
e republicado no Folhetim em julho de 1983.
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1
Divididos em cinco
partes, o ensaio Meus encontros com Kafka ocupa as duas
páginas centrais do caderno Folhetim de 3 de julho de 1983. Apenas o primeiro
dos encontros retrata um contato físico entre os dois autores, na longínqua
Berlim de 1921. Foi em uma tarde de domingo, no Café Românico, onde convergiram
inúmeros escritores, como Doblin, Zweig, Werfel, dentre outros. Ocupavam as
mesas especiais, e ao redor, os demais presentes. Em um canto, o jovem Carpeaux
observava o movimento próximo de um rapaz taciturno. Com a voz embargada em
razão da tuberculose, apresentou-se,
- Kauka.
Carpeaux não
compreendeu, e vem a confirmação,
- KAUKA.
- Muito prazer.
Na saída, ao
perguntar sobre aquele rapaz magro e de voz rouca, o amigo respondeu, é
de Praga, publicou uns contos que ninguém entende, não tem importância.
2
Estamos em 1926. Carpeaux realiza
alguns trabalhos para a editora Die Brüke, A Ponte, antes de ir
para a Itália, para os estudos universitários. Ao retornar a Berlim, soube que
a casa entrou em falência e para lá se dirigiu. O diretor lhe devia, Pagar
não posso, querido, mas se você quiser, pode levar, em vez de pagamento, a
tiragem toda. Tratava-se da primeira edição de O Processo, de
Franz Kafka, acumulada em um canto e da qual Carpeaux folheava um exemplar
enquanto esperava pela conversa com o diretor.
Arrependeu-se profundamente em não
ter aceito a partilha de livros. Hoje é uma raridade e nos Estados Unidos pagam
mil dólares por um desses livros. Carpeaux conseguiu manter, com toda a
posterior dispersão de sua biblioteca com a ascensão nazista, o exemplar que
levou. Leu o livro naquele mesmo ano sem entender o alcance da obra.
3
Em 1930, depois de diversas
oportunidades perdidas, Carpeaux decide conhecer Praga. Salta de madrugada na
estação Presidente Wilson. Na cidade velha, vê na porta de uma loja um velho
judeu esperando fregueses. Tem um ar de grande suficiência e o faz lembrar do
pai austero de Kafka. Da ponte Carlos, sobre o rio Vltava, ergue os
olhos e observa o antigo palácio real. Reconhece o Castelo de Kafka. Entra na
igreja São Vito e identifica o lugar onde o personagem Joseph K. ouve a voz da
Lei.
4
Uma vez em Viena, no pós guerra,
Carpeaux faz a peregrinação para Kierling, em busca do sanatório onde Kafka
morreu. Descobre que o proprietário, doutor Hoffmann já havia falecido e na
casa morava o seu filho, Hugo Hoffmann. Na conversa, pergunta sobre um antigo
paciente de seu pai, Franz Kafka. O homem enrubesceu e bruscamente responde que
não conhecia nenhum Kafka, batendo a porta. Através das grades da
propriedade, observa uma janela meio aberta, talvez Kafka tivesse morrido ali, a
3 de julho de 1924, trinta anos antes.
5
Em Viena, pouco depois de Kierling.
Carpeaux dirige-se à Biblioteca Nacional da Áustria, uma das mais ricas
do mundo, localizada em um imenso palácio barroco. Procura nos fichários, letra
K, nada encontra. O bibliotecário o conduz ao subdiretor, um velho,
mal-humorado por ter sido interrompido na leitura de um manuscrito medieval.
Carpeaux diz que gostaria de consultar o texto exato de uma frase numa obra de
Kafka. O erudito o encara por sobre os óculos de leitura, a resposta tem um
componente hilário misturado com uma ponta de tristeza, pois a resposta do
senhor diretor foi Não conheço. Como é o nome, KAUKA?
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