11 setembro 2020

Encontros com Kafka

Folhetim, 3 de julho de 1983

Em fins de 1977 preparava-me para os exames de vestibular para Economia, inscrevendo-me um uma série de faculdades. E recordo-me que incluí administração de empresas na Getúlio Vargas. Fiz a inscrição no edifício da avenida Nove de Julho, havia uma pequena fila e na minha frente, duas garotas conversavam. Tive tempo para observar que uma delas, a menor, portava um livro que já tinha ouvido falar, O Processo, de um tal de Franz Kafka. Meu desconhecimento era tamanho que imaginava tratar-se de uma obra metafísica, na linha dos livros de Herman Hesse e naquele momento de descobertas, estava mais interessado na concretude (e nas durezas e dissabores) das narrativas do real. 

O que mudou minha opinião a respeito daquele autor foi simplesmente tê-lo visto nas mãos de uma bela garota, que prestaria um dos vestibulares mais concorridos do país. O que isso queria dizer? Nada, mas o detalhe não me passou despercebido. Precisava, pois, investigar e saber mais. Em um tempo que não havia as facilidades dos sítios de busca no celular, fui ao longo dos anos juntando as peças desse infindável mosaico e valeu o esforço quase obsessivo. Descobri que em casa tínhamos, pelo velho Clube do Livro, A Muralha da China. E depois avidamente as busquei nas prateleiras das livrarias, encontrei outros títulos e o que li me impressionou de maneira decisiva. Veio A Metamorfose, e em seguida, O Processo, pontapé inicial para adentrar o labirinto kafkiano e me guiar os primeiros passos em minhas histórias, em meus contos.

Poucos anos mais tarde, recebi como encarte da Folha de SP o Folhetim que destaco acima. Era todo dedicado a Franz Kafka, e dentre as fábulas e aforismos traduzidos diretamente do alemão, havia uma narrativa de outro autor que então desconhecia por completo, Otto Maria Carpeaux. Um texto magnífico, que consolidou minha admiração pelo escritor checo. Com o passar dos anos, acumulei diversos títulos, a maioria com tradução de Modesto Carone, mas também alguns de Portugal, como O Castelo e Os Aeroplanos de Brescia. Acabei montando uma pequena e respeitável biblioteca kafkiana, mas, bem, essa já é outra história.

Para mim, Kafka tornou-se uma importante referência literária, por seu estilo tão característico, pela maneira sóbria de relatar, provocando uma incômoda impressão de impotência que se multiplica por caminhos labirínticos sem fim. Atraiu e influenciou um número expressivo de escritores, que nas palavras de Carpeaux, faz de Kafka um dos mais imitados no mundo. Eu não fui exceção, e embora não tenha desejado imitar sua narrativa, certamente fui por ele compelido a colocar no papel minhas dolorosas visões existenciais, abrindo caminho sem dúvida para, mais ou menos nessa época, enveredar pelos autores franceses do pós-guerra, como Sartre, Beauvoir e Camus. 

Trago abaixo um apanhado pessoal do belo ensaio de Otto Maria Carpeaux, publicado originalmente no livro de ensaios póstumo Realidade e Reflexo (1978), e republicado no Folhetim em julho de 1983.

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1

Divididos em cinco partes, o ensaio Meus encontros com Kafka ocupa as duas páginas centrais do caderno Folhetim de 3 de julho de 1983. Apenas o primeiro dos encontros retrata um contato físico entre os dois autores, na longínqua Berlim de 1921. Foi em uma tarde de domingo, no Café Românico, onde convergiram inúmeros escritores, como Doblin, Zweig, Werfel, dentre outros. Ocupavam as mesas especiais, e ao redor, os demais presentes. Em um canto, o jovem Carpeaux observava o movimento próximo de um rapaz taciturno. Com a voz embargada em razão da tuberculose, apresentou-se, 

- Kauka. 

Carpeaux não compreendeu, e vem a confirmação, 

- KAUKA. 

- Muito prazer.

Na saída, ao perguntar sobre aquele rapaz magro e de voz rouca, o amigo respondeu, é de Praga, publicou uns contos que ninguém entende, não tem importância.



2

Estamos em 1926. Carpeaux realiza alguns trabalhos para a editora Die Brüke, A Ponte, antes de ir para a Itália, para os estudos universitários. Ao retornar a Berlim, soube que a casa entrou em falência e para lá se dirigiu. O diretor lhe devia, Pagar não posso, querido, mas se você quiser, pode levar, em vez de pagamento, a tiragem toda. Tratava-se da primeira edição de O Processo, de Franz Kafka, acumulada em um canto e da qual Carpeaux folheava um exemplar enquanto esperava pela conversa com o diretor. 

Arrependeu-se profundamente em não ter aceito a partilha de livros. Hoje é uma raridade e nos Estados Unidos pagam mil dólares por um desses livros. Carpeaux conseguiu manter, com toda a posterior dispersão de sua biblioteca com a ascensão nazista, o exemplar que levou. Leu o livro naquele mesmo ano sem entender o alcance da obra.


3

Em 1930, depois de diversas oportunidades perdidas, Carpeaux decide conhecer Praga. Salta de madrugada na estação Presidente Wilson. Na cidade velha, vê na porta de uma loja um velho judeu esperando fregueses. Tem um ar de grande suficiência e o faz lembrar do pai austero de Kafka. Da ponte Carlos, sobre o rio Vltava, ergue os olhos e observa o antigo palácio real. Reconhece o Castelo de Kafka. Entra na igreja São Vito e identifica o lugar onde o personagem Joseph K. ouve a voz da Lei.


4

Uma vez em Viena, no pós guerra, Carpeaux faz a peregrinação para Kierling, em busca do sanatório onde Kafka morreu. Descobre que o proprietário, doutor Hoffmann já havia falecido e na casa morava o seu filho, Hugo Hoffmann. Na conversa, pergunta sobre um antigo paciente de seu pai, Franz Kafka. O homem enrubesceu e bruscamente responde que não conhecia nenhum Kafka, batendo a porta. Através das grades da propriedade, observa uma janela meio aberta, talvez Kafka tivesse morrido ali, a 3 de julho de 1924, trinta anos antes.


5

Em Viena, pouco depois de Kierling. Carpeaux dirige-se à Biblioteca Nacional da Áustria,  uma das mais ricas do mundo, localizada em um imenso palácio barroco. Procura nos fichários, letra K, nada encontra. O bibliotecário o conduz ao subdiretor, um velho, mal-humorado por ter sido interrompido na leitura de um manuscrito medieval. Carpeaux diz que gostaria de consultar o texto exato de uma frase numa obra de Kafka. O erudito o encara por sobre os óculos de leitura, a resposta tem um componente hilário misturado com uma ponta de tristeza, pois a resposta do senhor diretor foi Não conheço. Como é o nome, KAUKA?





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