29 setembro 2020
Webinar sobre o Capão
26 setembro 2020
A famigerada 'ponte para o futuro'
Uma das falácias que estruturou o
discurso da derrubada de Dilma Rousseff e, consequentemente, do PT, foi a de
que era imperioso eliminar a corrupção, desentravar a economia e com a abertura
para novos investimentos estrangeiros, construir as condições para o
desenvolvimento, o que se denominou "uma ponte para o futuro". Os
personagens públicos que repetiam esse mantra, enquanto tomavam providências
para a mudança forçada no poder, não eram propriamente pessoas merecedoras do cheque
em branco que parte da sociedade lhes entregava, era gente conhecida de outros
invernos, de caráter duvidoso e confiabilidade rasa, mas que, dentro da imensa
engrenagem montada, adequaram suas falas e comportamentos para vender
esperança.
Por trás dessas falas e comportamentos não havia garantias: tratava-se das mesmas hienas que em épocas passadas tinham surfado em ondas gloriosas que rebentaram nas areias, sem perder a sanha por carne manipulada. O que fizeram, mais uma vez, foi cuidar de seus interesses pessoais - a honra que se dane - e aproveitaram por algum tempo as circunstâncias positivas para esse propósito. Logo esqueceram da parcela menos favorecida do país que os acompanhou, ao destroçarem os direitos trabalhistas e em seguida os direitos previdenciários. A "ponte para o futuro" ficou no passado, mais precisamente em uma zona nebulosa de esquecimento, não mais sendo aventada por quaisquer dos agentes golpistas.
Na verdade, com Michel Temer, ela nunca passou de um esboço no papel, para ser utilizado como aríete pela mídia corporativa em sua função de propagandear as delícias de uma nova era gerenciada pelo mercado. Ela encarnou por um tempo o símbolo do que Bourdieu um dia definiu como "o retorno a um tipo de capitalismo radical, sem lei a não ser a do benefício máximo". Ficou o rastro um vago sentimento de meritocracia, que sempre existiu e nunca vingou.
Se o discurso da ponte para o futuro não funcionou, como é possível compreender que tenhamos chegado a esse ponto, com quatro anos de precarização trabalhista, perdas salariais, corrupção política em alta, destruição da natureza, pauperização do ensino público, subserviência diplomática completa, dentre outras tantas ações destrutivas? Se não compreendermos que esse novo tempo prescinde dos discursos revolucionários de boutique, mas ao contrário, solicita um engajamento renovador na batalha das ideias, por certo a sangria continuará e levará o tecido social a uma condição bem próxima da inanição, onde o socorro anímico sobrevirá da satisfação dos indivíduos se assumirem como míseras peças da engrenagem, "sem sonhos e utopias", promovido pelos verdadeiros donos do mundo.
18 setembro 2020
Para breve!
O próximo lançamento |
Acabo de receber da editora Penalux as primeiras provas de meu próximo livro, O fragor silencioso de cada dia, contendo a capa e o miolo. Ficaram muito bons, ainda assim vou propor duas ou três correções estéticas que me parecem necessárias e claro, farei uma nova revisão. Aguardo o texto de orelha composto pela querida Mônica, o que deve complementar o trabalho da capa. Eu e a editora não temos pressa, preparamos o lançamento para o primeiro semestre de 2021.
O isolamento da pandemia me permitiu corrigir e concluir este volume, já pronto há mais de dez anos. A meu parecer, ficou um trabalho redondo e com algum atrevimento, o considero meu Álbum Branco, pela profusão de estilos narrativos. No final, quase duzentas páginas divididas em três capítulos com 19 contos. Nesta obra, de maneira curiosa, se adensam as referências aos "senhores", neste caso contendo sete senhores e uma senhora.
14 setembro 2020
Vocacional, uma grande experiência
Ao assistir ao filme Vocacional, uma aventura humana, de Toni Venturi, constatei que toda a força e beleza daquela experiência educativa narrada não era a mesma que vagamente recordava em minha experiência pessoal. De 1967 a 1969 acompanhei à distância, nos fundos do Linneu Prestes, uns jovens calados, que aparentavam mais idade e usando como uniforme um macacão escuro trabalharem em uma pequena horta coletiva. Era o trabalho externo deles. Eram orientados por professores diferentes, que não conhecíamos. Parecia-nos uma atividade à parte da escola, é controlada a ponto de sermos estimulados a não nos aproximar. Havia poucas informações sobre aquela "gente" e sobre o que faziam.
Entre nós, jovencitos sem a menor noção das coisas, corria uma conversa de que aqueles rapazes e aqueles professores era gente imbuída de outros propósitos e que devíamos evitar. Ninguém nos explicava nada, mesmo quando eles conviviam conosco, nos recreios. Sempre houve um manto de silêncio a acobertar suas práticas e creio que era bem esse o esforço da diretoria, que tudo permanecesse sem explicações até que o período letivo se encerrasse e todos voltássemos para casa. E assim ocorreu. Um dia o ano acabou e eles não mais voltaram.
Com a cronologia do maravilhoso filme de Ventura, resgatei o que desconheci por completo, e pior, o que descriminei sem ter qualquer conhecimento. Já em 1967, meu primeiro ano de colégio público, essa experiência concebida pela educadora Maria Nilde Mascellani já estava fadada à extinção. Seus anos mais profícuos foram antes do malfadado golpe cívico-militar que terminou por abestalhar este país e nos conduzir à vala em que estamos.
É de singela beleza ver os depoimentos emocionados de ex-alunos, hoje vovôs respeitáveis, descrevendo as discussões coletivas em sala de aula, as preocupações com economia doméstica, a prática da integração social, a valorização do ser humano. É bonito acompanhar um trecho do filme com uma narração over de ex-alunos descrevendo a prática do trabalho na cantina, como exercício não só de matemática, mas de cidadania. Há também um momento em que alunos se posicionam sobre o cenário geopolítico, em que têm completa noção da realidade em que vivem.
Era comum realizarem pequenas excursões para cumprirem determinadas atividades, e assim permitir que os alunos desenvolvessem um sentimento de convívio social. Percebam a diferença desses pequenos jovens de 7, 8 anos em relação a mim, um ingênuo incrustado em meio a temores e desconfianças. Eles praticavam o que se denominava de aula síntese, onde comunicavam em determinada ocasião os conhecimentos adquiridos, compartilhando com a sociedade (o público).
Aprendiam história e cultura ao vivo, com excursões mais longas, a aula plataforma, onde, por exemplo, todos participavam por 10 dias de atividades nas cidades históricas, em contato com nosso barroco. Há descrições lindas sobre o trabalho com a arte, a manifestação poética, a passagem do não-ser para o ser... Fazer, pensar, voltar a fazer, voltar a pensar! Para isso os professores tinham seis meses de preparo antes de assumirem uma turma. Ganhavam bons salários e para tanto funcionava o prazer em exercerem o papel afetivo como educadores. Bem feitas as contas, tratava-se de uma visão de respeito profundo ao ser humano.
É com o sentimento de humilhação profunda observar que todo esse maravilhoso programa educativo foi desativado por insinuações obtusas e obscuras de que tudo não passava de uma experiência marxista-comunista ou coisa do gênero. O tempo que perdi em travar conhecer ciências como a filosofia, a sociologia, a antropologia, a própria matemática, é algo que não consigo conceber, até porque as razões para que isso acontecesse foram medíocres, sem qualquer comprovação. O mesmo aconteceu com a maioria dos jovens de minha geração, perderam, sem que o jogo fosse jogado. Ver o filme de Toni Venturi é descobrir que neste país houve uma tentativa maravilhosa de educar com seriedade e competência. Uma brisa refrescante em se ouvir, aprender e apreender, e se demonstrar que o ensino era parte do processo de formação cidadã.
Quanto a isso, sou testemunha e digo com todas as letras, os patéticos militares em comunhão com nossa fútil classe dominante, não tiveram a menor inspiração para produzir. Ao contrário, defenestraram a poesia e as artes, o prazer do aprendizado e o amor pelo outro como formas perniciosas de ser, que, no final das contas, em sua vil interpretação, só poderia destruir o poder popular. Essas pobres criaturas se reproduzem caricatas, ainda estão aí, vicejam entre nós, e sua herança será o nada sobre nada.
12 setembro 2020
Mario Benedetti, 100 anos
Minha biblioteca Mario Benedetti |
Tenho andado saudoso por aqui, mas fazer o que, memória é também ação política. Em 1997 estava de passagem na cidade de Guadalajara, em razão de um congresso de semiótica. Permaneci alguns dias antes de iniciar, por conta própria, uma longa viagem terrestre até Seattle, no estado de Washington, passando por Puerto Vallarta, Mazatlán, La Paz, na Baja California, Tijuana, Los Angeles e São Francisco. Antes de iniciar o longo périplo, passei em uma livraria tapatia e em uma prateleira de autores latino-americanos, optei por um pequeno livro de contos, La muerte y otras sorpresas, de Mario Benedetti.
O conjunto de contos me agradou plenamente. Não se tratava do melhor livro de Benedetti, mas Acaso Irreparable, Ganas de Embromar, La Muerte, Cinco años de vida, foram alguns dos textos que me fizeram retomar diversas vezes este pequeno tomo, sempre desconcertado pelas surpresas. Foi a porta de entrada para conhecer mais profundamente sua obra, e que me despertou de modo decisivo para a prosa do nosso continente. Me fez também conhecer mais a fundo a resistência política que ocorreu no Uruguai nos anos 1960, fazendo-me conectar com as demais lutas contra os estados de exceção ocorridos no Cone Sul.
Cheguei a visitar o Uruguai duas vezes com ele vivo, alimentando sempre o desejo de conhecê-lo, porém não passei da aquisição de livros seus. Era ainda o tempo que com alguma sorte, poderia ir até o Café Brasileiro, na entrada da Cidade Velha, e encontrá-lo bebericando seu café, talvez na companhia de outro dos frequentadores, Eduardo Galeano, mas quis o destino que não houvesse esse encontro mágico. Hoje leio com regularidade a ambos, em especial nas transmissões da rádio Balmaceda, onde declamo poesias ao final da noite para mi querida y única radioyente, Moniquita Rebecca.
Segunda-feira, 14, é o aniversário de 100 anos de Benedetti. Em maio do ano passado completaram-se dez anos de sua morte. Teve uma vida longeva, 88 anos, plena de acontecimentos e reconhecimentos. Seguirei lendo e relendo seus contos sempre com uma alegria especial, que me toma profundamente quando inicio uma narrativa sua. Um escritor que empurrado para o mundo para fugir do ignominioso cerceamento que sofreu pela tacanhez totalitária, seguiu produzindo com qualidade admirável seus contos, poemas relatos, análises sociais, memórias, oferecendo-nos uma personalidade sensível, em profundo diálogo com os encantos e apreensões da alma humana, e igualmente se fazer decidido em suas escolhas da vida.
A Expressão
Milton Estomba tinha sido uma criança prodígio. Aos sete anos já tocava a Sonata no. 3, Op. 5, de Brahms, e aos onze, o unânime aplauso de crítica e de público acompanhou sua série de concertos nas principais capitais da América e Europa.
Entretanto, quando cumpriu vinte anos, notou-se no jovem pianista uma evidente transformação. Tinha começado a preocupar-se desmesuradamente pelo gesto rebuscado, pelo rosto afetado, pelo cenho franzido, pelos olhos em êxtase e outros tantos efeitos afins. Ele chamava a isso "sua expressão".
Pouco a pouco, Estomba foi se especializando em "expressões". Tinha uma para tocar a Patética, outra para Crianças no Jardim, outra para a Polonesa. Antes de cada concerto ensaiava em frente ao espelho, mas o público freneticamente envolvido tomava essas expressões como espontâneas e as acolhia com ruidosos aplausos, bravos e batidas com os pés.
O primeiro sintoma inquietante apareceu em um recital de sábado. O público percebeu que algo raro ocorria, e no aplauso chegou a demonstrar um incipiente estupor. A verdade era que Estomba havia tocado a Catedral Submersa com a "expressão" da Marcha Turca.
Porém, a catástrofe sobreveio seis meses mais tarde e foi qualificada pelos médicos de amnesia lacunar. A lacuna em questão correspondia às partituras. Em um lapso de vinte e quatro horas, Milton Estomba se esqueceu para sempre de todos os noturnos, prelúdios e sonatas que haviam figurado em seu amplo repertório.
O assombroso, o realmente assombroso, foi que não esquecera nenhum dos gestos exagerados e afetados que acompanhavam cada uma de suas interpretações. Nunca mais pôde dar um concerto de piano, mas há algo que lhe serve de consolo. Ainda hoje nas noites dos sábados, os amigos mais fiéis o visitam em sua casa para assistir a um silencioso recital de suas "expressões". Entre eles é unânime a opinião de que seu capolavoro é a Appasionata.
(traduzido do texto original La Expressión, da obra La Muerte y otras sorpresas, Buenos Aires, Ed. Seix Barral, 1998).