Vivir
Adrede foi um dos últimos livros de Mario Benedetti, publicado em 2007,
dois anos antes de sua morte. Nesta obra, composta por 32 breves reflexões
poéticas, e 83 cachivaches, pensamentos vagos, soltos,
'descartáveis', fala-nos das efêmeras percepções do mundo ao redor, dos
detalhes perdidos na memória, dos sofrimentos e das alegrias humanas.
Sempre
me tocou a obra de Benedetti pela elegância de seu estilo, que a meu ver se
robustece ao incorporar paixão e dúvida. Paixão
por entregar-se com ardor aos seus temas, e dúvida ao reconhecer os limites
humanos, a começar pelos seus. Daí a poesia plena, os escritos cortantes e
sutis, o estilo que expõe com igual maestria o sensível e o concreto.
Nesta
coletânea, sobrevém a serenidade dos anos, o olhar ainda mais cuidadoso e ainda
mais incisivo, mas sempre cadenciado pela ternura humana, inextinguível mesmo
nos momentos mais delicados. Sabedor do limite da existência, descreve
aleatoriamente o que pode e deseja descrever, o passado, o crepúsculo, o tempo,
a piedade, a globalização. Degusta cada palavra, imergindo-nos na serenidade
que apenas os longos anos de paixão e dúvida podem brindar.
O
SILÊNCIO
"No
princípio foi o silêncio. Sombrio, inextinguível, poderoso. Que esplêndida
laguna é o silêncio. O ouvido científico e ateu ainda não descobriu qual foi o
primeiro som que enfrentou essa calma nem qual foi o ser vivente que proferiu o
alarido inaugural.
Nessa
questão da origem do humano, os crentes se apoiam no Gênesis e ali se dão conta
da aparição de Adão, de Eva e da serpente celestina (também criação de Deus)
que organizou os primeiros amores incestuosos. Depois a coisa se fez trágica e
os primeiros cainitas acabaram com os primeiros abelitas.
Enquanto
isso, o silêncio era um vigia contemplativo, porém imóvel, e assim seguiu de
século em século, esquadrinhando guerras de soslaio e esmigalhando pazes, tão
breves como transitórias.
A
partir daí, o silêncio se apoderou dos insones e também dos sonhos, onde os
piores pesadelos convertiam o adormecido em cego e surdo. Assim pois, quando os
amantes se abraçam em silêncio não escutam o pulsar de seus comovidos corações.
E quando os suicidas ingressam no fim, talvez compreendam que a morte é o
silêncio. De sua parte, o silêncio do mar, que escuta sempre, é mais concentrado
que o de um cântaro, mais implacável que duas gotas.
Alguns
veteranos narram que em sua desgastada sombra apenas o grilo rompia o silêncio,
mas quando emudecia a serenata, a escuridão era de novo silenciosa e azul.
Assim
posto, para que negá-lo (tal como escrevi há trinta anos), existem poucas
coisas tão ensurdecedoras como o silêncio".
PERSONAGENS
"Lemos
e relemos. Quando lemos muito, costumamos esquecer os títulos, porém não dos
personagens. Estes perduram mais que a trama romanceada ou o ritmo dos poemas.
Em certas ocasiões, o nome do personagem nem sempre fica na memória, todavia
seu sopro vital sim, penetra na alma do leitor.
Existem
personagens literários em que se oferece um abraço carregado de adjetivos e
também existem atraentes bocas femininas em que se recebe um beijo de papel.
Os
personagens vibram, avançam, se detêm, voam, submergem, se deixam escolher, e
os acomodamos no arquivo das recordações. Alguns são como espelhos e outros são
como aliados ou acusadores.
Existem
personagens jubilosos e outros com um poço de tristezas. São tão melancólicos
que nos contagiam sua melancolia; tão promissores que os aplaudimos nos sonhos.
Tão santos que os encaramos com ceticismo, e tão demoníacos que nos espantam o
coração.
Existem
personagens cegos que nos miram com as mãos e outros delirantes que nos
envenenam os hábitos. Existem personagens transparentes e outros
irremediavelmente opacos. Há os que cavilam em verso e os que se lavam na
chuva. Os que mendigam e os que desperdiçam.
Existem
personagens viúvos que choram sem lágrimas e quando terminam com sua liturgia
impressa, se evadem do papel e a celebram com seu cônjuge de carne e osso, ao
sabor de um beaujolais.
Finalmente
existem personagens que quase quase somos nós mesmos. E os queremos, apesar de
tudo".
(Textos extraídos e traduzidos da obra Vivir Adrede, Santillana Ediciones, 2009).
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