01 abril 2011

Desintegração da verdade




Em tempos outros, menos brutalizados pela mercantilização da alma, o dia da mentira era de alguma forma comemorado pelas pessoas, com uma trama que se sustentava até o possível, e uma vez desvelada, emergia a sutileza da brincadeira, contada por diversas vozes. Para o dia da mentira fazer sentido, era importante a duração da mentira. Prolongada indefinidamente, a mentira tornava-se um engodo sem graça.

No mundo líquido-moderno, a mentira transformou-se em farsa, com o objetivo indefinido de postergar o embuste, a enganação. A mentira, que se tornou coisa burlesca, não tem tempo para terminar, ao contrário, a representação bem ou mal feita torna-se o fundamento do jogo neoliberal, postergando-se ao máximo. E uma vez desmascarada (e não revelada, como se fazia com a brincadeira), outra farsa é montada, pronta a disseminar-se, até que outra surja e assim por diante.

E perdura o tempo que se sustentar como um produto explorável. A farsa, o método da bufonaria, procede de acordo com a ideologia dominante. Seu discurso mais grandiloquente não sugere nada que o menor dos significados, mas a permanência de um insólito esvaziado. O método da pós-modernidade neoliberal é a antítese, e dela não escapa. Destruir para edificar, desinformar para formar, exceder para esvaziar... Para ser um vencedor, ignora-se o comportamento ético, e descartando a ética, estende-se a sensação fugidia do bem-estar.

A sensação fugidia do bem-estar é um dos pilares da publicidade de nossos dias, e como sabemos, ela se impregna por todos os poros, transformando em natural o artificioso, em falta o suficiente. Temos cada qual que desejarmos mais do que precisamos, alinhando-nos ao modo mais fácil de ser. Em outras palavras, o dia primeiro de abril não faz mais sentido, porque a mentira vinga como a grande verdade da vida.

Assim, chegam as disparatadas informações das agências noticiosas, dando conta que ora são os rebeldes, ora são as tropas de Gadafi que avançam e conquistam. Por trás de tudo, amarrando os acontecimentos descontextualizados, sabemos que os mísseis da Otan seguem caindo, em nome da segurança da população civil...

A intervenção midiática sobrevém e complementa a onda sísmica, não dos bombardeios, mas da trapaça informativa. O esforço das notícias compõe um quadro de confusão, a alimentar uma intervenção humanitária das potências industriais. É o sensacionalismo, estúpido! Quanto mais embuste se divulgar, menos se saberá onde está a verdade.

E então, de onde menos se espera, também o método da bufonaria em funcionamento. Surgem os cronistas e os filósofos de ocasião (que poderiam ser cronistas e filósofos da velocidade), propondo a revelação do que mais desejam esconder (ou do que menos se preocupam), a teleologia dos fatos. Quanto aos cronistas de ocasião, assumir uma função a serviço de interesses corporativos já não parece uma novidade, os temos em profusão suficiente para acreditar que a verdade seja a irrealidade criada em cada crônica, em cada artigo.

Mas quanto aos tais filósofos de ocasião, isso sim, me surpreende. Vê-los mergulhados até a alma nessa técnica oportunista, empenhados em difundir suas razões melífluas, que se escoram em um jogo perverso de surfar na onda (da ocasião), e amealhar muita grana com isso! Posto que se sacramentam, como fariseus do sistema capitalista, pautados na ideologia do sucesso a qualquer preço. Tudo o que podem oferecer, esses filósofos da velocidade, não vem do saber que acumulam, mas da espetaculosidade de suas técnicas de sedução.

De acordo com o espírito da antítese neoliberal, na qual se aprofundaram como poucos, a esses filósofos de ocasião não interessa a essência, mas a visibilidade; não a perenidade das ideias, mas a elaboração fortuita, que se esboroa ao primeiro vento. Adensam o choque provocador quanto mais faturam com isso, e são hábeis no trato de temas os mais diversos. As técnicas de sedução têm como ítem sagrado não permanecer nas mesmas ideias, multiplicá-las - com competência discursiva - para enredar a platéia. O filósofo de ocasião não crê em nada que subsista com consistência.

Temos, pois, o tempo da mentira, das palavras descartáveis, das ideias espúrias, das técnicas de explanação e de sedução, das explicações que não alimentam o desejo de serem compreendidas... Que jorrem pois os mísseis na Líbia, que se arroguem filosofar sobre os escritos de Nelson Rodrigues, quando pouco ou nada compreendem da obra de Nelson Rodrigues, que se desvirtue na edição das notícias, com mais estrepolias desconexas. Na modernidade-líquida, a diplomacia, como a filosofia de ocasião e a informação midiática, têm propósitos que poucas vezes contemplam a verdade.



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