Johanna dispõe diante de si mais de 600 cartas enviadas pelo cunhado, Vincent, ao marido Théo. Além das cartas, o acervo de quadros encalhados, fruto de pouco mais de dez anos de trabalho. Seu irmão pede para que se desfaça do material maldito. Indecisa, Johanna lê as cartas, na esperança de rever, ainda que furtivamente, laivos do homem por quem se apaixonara e casara. Mas no lugar de Théo, encontra os olhos de Vincent, e por eles desvela todo o sentido para sua vida e sua obra. Algo a mobiliza, proveniente da compreensão de uma obra, envolta dia após dia na delicada apreensão de cada página. Johanna não deixou de se emocionar com a leitura dos textos, renovando a beleza das palavras, desvelando por consequência a doce rudeza contida em cada pincelada...
E retomou, decidida, o esforço de Théo em divulgar a obra de Vincent para o mundo...
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A primeira vez que ouvi de América Scarfó foi em uma deleitosa entrevista concedida pelo escritor e historiador argentino Osvaldo Bayer. Pude acompanhar sua maneira pausada em expor as memórias, límpida como o olhar sereno de quem jamais recusou o bom combate das ideias. Quando comentou sobre a jovem América, foi para dizer das cartas que Severino Giovani, um decidido líder anarquista, deixara para ela. No início dos anos 1930, o estado argentino as confiscou quando da prisão de Giovani, e depois de seu fuzilamento, delas nada se soube.
Pois nos anos 1990, as cartas foram finalmente resgatadas do museu policial. Osvaldo Bayer, envolvido na pesquisa desta história épica de amor e de luta, descreve a emoção de América, então uma mulher com quase noventa anos: Antes de morrer, gostaria de rever estas cartas para acariciar-me com elas...
Uma vez de posse delas, faleceria um ano mais tarde.
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A história de América e Giovani me recorda outra, ocorrida nos mesmos anos 1930, desvelada por uma inocente reportagem pela tevê, aqui em São Paulo. Tratava-se de uma investigação ordinária sobre achados e perdidos do metrô, e em dado momento, a câmera registra um diário com poemas, abandonado entre inúmeros outros objetos.
Dias mais tarde, um jornal de grande circulação deu prosseguimento à matéria, ao identificar a proprietária do caderno, uma jovem em seus oitenta e tantos anos, que relatava sua felicidade ao reencontrar os poemas escritos por seu amor, nos anos em que ainda namoravam. Tinha perdido (o diário) um dia desses e agora estou feliz por reencontrá-lo...
Os inefáveis caminhos do amor, a renovar o brilho de um sentimento desmedido...
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Naquela noite, estava imerso em pensamentos brumosos, sentado diante da escrivaninha, para escrever um pouco sobre o tema de minhas leituras recentes, os índios renqueles. Ao lado da janela, meu olhar vago percorreu o pátio interno, três andares abaixo, coberto pela neve. Não havia um motivo específico para acomodar a atenção nesse espaço desalentado pelo frio intenso. Talvez o tom azulado da noite, em contraponto com o improvável foco de luz à saída de um dos edifícios, me estimulasse a refletir nos homens renqueles, pacíficos, trabalhadores, e que tratavam respeitosamente suas mulheres... Segundo o coronel Rauch, o grande verdugo da nação indígena, os renqueles não tinham salvação porque não possuíam o sentido de propriedade...
Foi quando tive a atenção atraída para o movimento inopinado, um casal deixando o edifício ao fundo. Dois jovens encapotados, que se despediam desajeitadamente, sob o facho de luz. Ele acolheu o rosto da mulher para um derradeiro beijo e se afastou. Não deu três passos e talvez alertado por uma voz embargada, voltou-se para recolher uma carta, que lhe era estendida. O jovem tomou-a decidido, guardando-a no bolso, e embrenhou-se no silêncio da noite.
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