31 janeiro 2009

Harvey, mídia, Estado


O que temos oferecido nas mídias (sempre ressalvando as honrosas exceções), para o nosso consumo diário, é tudo o que não passa pela reflexão, mas pela repercussão. Em outras palavras, a torrente midiática não se detém nas entrelinhas do assunto discutido, mas na sua constituição como produto acabado, passível de ser aceito no instante em que é oferecido, apreciado por seu encanto tão envolvente quanto efêmero. Toda a sorte de elaboração na forma, descartando-se o conteúdo. O final de uma novela tem de mostrar-se grandiloquente, com um final holywoodiano, não importando os meios para atingir tal efeito. O que fica não é o roteiro, sua elegância ou sutileza reverberadas pela mise-en-scene, mas a impressão estética causada pelo espetáculo.

O mesmo se verifica com as notícias editadas nos jornais eletrônicos, olhares parcimoniosos onde pululam algo do fato e muito de um discurso emocional, descartável. Tudo em nome da velocidade e superficialidade, conseqüência lógica desse capitalismo contemporâneo, ou nas palavras mais oportunas de David Harvey, “a luta pela manutenção da lucratividade apressa os capitalistas a explorarem todo tipo de novas possibilidades. São abertas novas linhas de produto, o que significa a criação de novos desejos e necessidades (...)”.


Harvey não se refere especificamente aos senhores da mídia, mas o argumento cabe aos capitalistas e, consequentemente, aos senhores da mídia, cada vez mais interessados nos lucros do negócio, em vez da análise consistente dos fatos. E, como não poderia deixar de ser, a sombra do temor se agrega à exposição dos fatos. Não há noticiário sem notícias da crise; e não há notícia sobre a crise sem que não se estimule a insegurança e a instabilidade, que para Harvey, são consequências diretas do capitalismo liberal, ávido por lucro e avaro em regulamentação.


Nós brasileiros pouco sabemos sobre a tal crise, ou talvez, saibamos o suficiente para entender os chamados midiáticos sobre os tempos de crise. Raros foram os momentos em que tivemos uma discussão lúcida sobre suas causas (e não só sobre os efeitos). A mídia relata, ou se satisfaz em relatar, a resultante de insegurança e instabilidade, sem sujar as mãos e investigar a fundo o movimento da tal crise, os exageros das especulações financeiras nos mercados, os criminosos de colarinho branco que aceleraram fundo em busca de mais dividendos, as avaliações das agências de classificação de risco...

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Volto a insistir no ponto: a função esclarecedora dos fatos (e social, por suposto) da mídia aos acontecimentos de seu tempo (e da tal crise) se esboroa ao se limitar a uma edição espetaculosa dos fatos. É a chance de o discurso midiático (no Brasil, sobretudo) optar por um viés ideológico conveniente, com pouco comprometimento e forte apelo sensacionalista (audiência e publicidade, boa conjunção de interesses) e de volta ao fútil do entretenimento. Temos o imaginário da miserabilidade. Imagens da violência urbana alternadas com insistentes ressonâncias da crise financeira, pânico amenizado com circo, big brother e futebol (e logo logo, carnaval). Almas assustadas são mais suscetíveis a medicamentos inócuos e perambulam cordatas, à deriva.


A crise que nos alimenta atualmente é a crise do capitalismo pós-moderno, em sua sanha desmedida em busca do impossível, um Chronos que não se satisfaz em devorar seus filhos, um Belerofonte convencido de sua invencibilidade, e que agora mendiga em andrajos pelos becos do infortúnio. Uma vez assimilado o choque da ineficiência especulativa, onde a ficção suplantou a função, o discurso midiático joga com as ondas progressivas do temor e incerteza, como resultante dolorosa de um evento indolente, como se tudo afinal não passasse de uma catástrofe não-anunciada.

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O Estado é então chamado a intervir, e de acordo com Harvey, para evitar que se promova estratégias particulares de acumulação de capital (muito propício nesses momentos de ‘crise aguda’), deve “criar um sentido de comunidade que seja uma alternativa ao que se baseia no dinheiro, além de formular uma definição dos interesses públicos acima dos interesses e lutas de classes (...); deve, em resumo, legitimar-se”.


Uma análise como esta, para o discurso midiático embebido de sensacionalismo, soa como uma obsolescência a ser descartada, ainda fascinado pela nova ordem liberal onde os mercados se regulam por si. Os arautos desse discurso são incapazes de compreender que o papel do Estado social, nesse contexto de crise, é como diz Marx, de “magnificar sua tarefa na imaginação”, desdobrando-o em ações múltiplas e eficazes, em conjunto com os diversos agentes sociais. Para Harvey, “o poder do Estado não pode ser mais nem menos estável do que o permite a economia política da modernidade capitalista”. O poder do Estado pode e deve atender as demandas expressas pela sociedade civil, em equilíbrio com o desenvolvimento capitalista, uma dificuldade se considerarmos "o movimento fluido do capital", essa dinâmica de competição e fluxos globalizados, touro indomado e de tendência suicida.




27 janeiro 2009

O senhor Reuben



Já não podia repassar as fotos, de modo que relembrava pela memória. E demorava-se nas reminiscências, nas mulheres que não soube amar, nos amores que não soube sustentar. Imagens deformadas que iam e vinham, ao sabor das noites mal dormidas, sonolentos acordes que se estendiam até perderem-se desgarrados em pesadelos sem fim.

Só havia refresco com o alvorecer. A difusa luz matinal o acalentava, dispersando as vozes rudes e aliciando novos sons, que concorriam para acudir o imaginário. Conseguia uma pausa diversionária, os carros na avenida, o rádio do vizinho, o assoalho de madeira do quarto, rangendo a cada passo titubeante em busca do banheiro. O bulício do cotidiano o enlaçava em uma dança morna, às cegas, que dadas suas condições de algum modo o distraía...

A sopa do almoço, o café da tarde, os gestos perdidos, as horas que pingavam morosas segundo após segundo, nada contava de fato até que o crepúsculo em suas ondulações esmaecidas retomasse o estupor de todas as noites, preparando o senhor Reuben para suas entorpecidas lamúrias, para as reminiscências perdidas, para as mulheres que não soube amar e os amores que não soube sustentar...


Benedetti




ESE GRAN SIMULACRO
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Cada vez que nos dan clases de amnesia
como si nunca hubieran existido
los combustibles ojos del alma
o los labios de la pena huérfana
cada vez que nos dan clases de amnesia
y nos conminan a borrar
la ebriedad del sufrimiento
me convenzo de que mi región
no es la farándula de otros
.
en mi región hay calvarios de ausencia
muñones de porvenir, arrabales de duelo
pero también candores de mosqueta
pianos que arrancan lágrimas
cadáveres que miran aún desde sus huertos
nostalgias inmóviles en um pozo de otoño
sentimientos insoportablemente actuales
que se niegan a morir allá en lo oscuro
.
el olvido está tan lleno de memoria
que a veces no caben las remembranzas
y hay que tirar rencores por la borda
en el fondo el olvido es un gran simulacro
nadie sabe ni puede, aunque quiera olvidar
un gran simulacro repleto de fantasmas
esos romeros que peregrinan por el olvido
como si fuese el camino de santiago
.
el día o la noche en que el olvido estalle
salte en pedazos o crepite
los recuerdos atroces y los de maravilla
quebrarán los barrotes de fuego
arrastrarán por fin la verdad por el mundo
y esa verdad será que no hay olvido



25 janeiro 2009

Sobre a torrente pós-moderna


Num mundo onde os videogames ultrapassam os filmes, a rapidez na tela cria carreiras no ramo do entretenimento. Anúncios e videogames são hoje centros de treinamento para a carreira de diretor de cinema. Não admira que, frequentemente, a edição dos filmes não sirva para acelerar a consciência linear, mas para atacá-la. A narrativa não passa de pretexto. Em filmes de ação, perseguições seguem-se a perseguições, um veículo atrás do outro: carros, utilitários, caminhões, ônibus, trens, aviões, helicópteros, hovercrafts, teleféricos, tanques, o que se quiser. A questão é nos sacudir, chocalhar e rolar, manter-nos sem fôlego, deliciar-nos, caçar-nos e mergulhar-nos numa ávida suspensão da descrença. Dizer que a trama resultante ‘não faz sentido’ erra o alvo, já que, em geral, o objetivo é só fazer sentido suficiente para permitir que os sentidos assumam o controle”.

Todd Gitlin, in Mídias sem limite
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18 janeiro 2009

O senhor Blanes




O rio, sempre muito presente. Fiquei horas apreciando suas águas, seu murmúrio contra as rochas, o vento soprando e soprando. E sua conjunção com o sol desaparecendo ao longe, sempre um espetáculo magnífico, completado por gente solícita aos forasteiros deslumbrados. Em Colônia, ao caminhar ao longo da vegetação costeira, acompanhando os trilhos remanescentes do antigo caminho de ferro, encontrei um senhor com seu cão. Perguntei-lhe aonde ia dar aqueles trilhos, ele me disse, Em Montevidéu e mais além... Entramos em uma inesperada e não menos bem-vinda conversação, ele se apresentou, Blanes, professor aposentado...

Vivia há mais de quarenta anos ali, em um pequeno apartamento, e atendeu-me a cada uma de minhas indagações sobre os trens, as viagens, as pessoas, como se dava aquele prazer. Foram minutos em que outra paisagem, esquecida no tempo, fora recuperada em seus mais singelos detalhes. Por fim, um pouco mais confortado, compreendeu que tudo tinha acabado. Ele me apontou para um pequeno prédio, que se insurgia em meio ao que seria o percurso natural dos trilhos, Veja, mesmo que quiséssemos retomar as viagens, seria impossível...


Olhando o entorno, nada me remetia ao saudável movimento de uma estação final, mas ao persistente fragor das marolas a rebentar próximo dali. Como uma consequência fortuita dos fatos, a natureza das cercanias fora preservada, oferecendo a Blanes e seu cão a caminhada ao longo do rio, ao abrigo das sombras das árvores.


Cumprimentei-o e segui meu trajeto, envolto pelas palavras ouvidas, a memória viva e seu milagre em recompor as cores de um mundo apartado. Uma nesga de resistência, antes que a realidade, no caso a paz suave e aconchegante, se restabeleça em sua continuidade esmorecida. Os versos de uma antiga milonga me acudiram,


Volvi por caminos muertos
Volvi sin poder llegar
Grité con tu nombre bueno
Lloré, sin saber llorar.

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17 janeiro 2009

Esta guerra destrói a alma de Israel



Mais uma vez tomo a liberdade de divulgar um texto publicado em uma mídia estrangeira (jornal Clarín, Buenos Aires), que reproduz matéria do jornal Haaretz, de Israel, sobre o massacre que ocorre na Faixa de Gaza, transformado em um evento silencioso e distante por grande parte dos veículos de comunicação brasileiros (afinal, estamos em tempo de Big Brother, e logo logo, muuuito futebol e carnaval...).

Como não me sinto nem um pouco disposto a corroborar com este silêncio dos bons negócios, além de profundamente desconfortável com a condição humana da pós-modernidade, deixo-os ao sabor do texto de Ari Shavit, cujo título tomo emprestado para nomear esta postagem.


Por: Ari Shavit
Fuente: DIARIO HAARETZ

La operación "Plomo Fundido" se volvió loca. Atacar cualquier ciudad densamente poblada es un acto grave siempre, pero cuando la legitimidad internacional queda reducida a polvo, un ataque de este tipo se reduce a locura. Bombardear un predio de la ONU es algo que no se debe hacer nunca, pero hacerlo justo el día que el secretario general de la ONU está de visita en Jerusalén está más allá de la locura. El nivel de presión que los militares israelíes han estando ejerciendo sobre Gaza puede estar oprimiendo a Hamas, pero está destruyendo a Israel. Destruyendo su alma y su imagen. Destruyéndolo en las pantallas de TV del mundo entero, en los livings de la comunidad internacional y, lo más importante, en el EE.UU. de Barack Obama. Israel no es Rusia y Gaza no es Chechenia. Israel no puede lidiar con sus enemigos de la forma cómo las superpotencias beligerantes lidian con los suyos. Las guerras deben ser equitativas y proporcionales. Si no es equitativo, Israel no podrá triunfar en el campo de batalla. Veintiún días atrás la campaña contra Hamas era equilibrada y correcta. Alrededor de una semana atrás, comenzó a derrapar y en los últimos días cruzó todas los límites. Es cierto: Hamas está en situación de zozobra, sus líderes son asesinados y su prestigio decae. Pero lo que comenzó como una operación militar calculada y vital se convirtió en una orgía insubordinada dentro de una zona poblada. El primer ministro decidió, al parecer, actuar como una suerte de Vladimir Putin. Si termina su primera guerra sin una conclusión clara, terminará su segunda con un territorio carbonizado. En unos días, el fuego cesará y el humo se va a dispersar, dejando al descubierto el horror. Hamas será aplastado, pero las imágenes de esta atroz destrucción y muertes inundarán el mundo. Descubriremos entonces que no vamos a pagar el precio de la beligerante aventura en el EE.UU. de Obama nada más. Lo pagaremos con las almas dañadas de nuestros hijos e hijas.


Alejandra Pizarnik




A LA ESPERA DE LA OSCURIDAD


Ese instante que no se olvida
Tan vacío devuelto por las sombras
Tan vacío rechazado por los relojes
Ese pobre instante adoptado por mi ternura
Desnudo desnudo de sangre de alas
Sin ojos para recordar angustias de antaño
Sin labios para recoger el zumo de las violencias
perdidas en el canto de los helados campanarios.


Ampáralo niña ciega de alma
Ponle tus cabellos escarchados por el fuego
Abrázalo pequeña estatua de terror.
Señálale el mundo convulsionado a tus pies
A tus pies donde mueren las golondrinas
Tiritantes de pavor frente al futuro
Dile que los suspiros del mar
Humedecen las únicas palabras
Por las que vale vivir.


Pero ese instante sudoroso de nada
Acurrucado en la cueva del destino
Sin manos para decir nunca
Sin manos para regalar mariposas
A los niños muertos




15 janeiro 2009

Palavras ao vento...



Disse o senhor Ban Ki-Moon (Secretário Geral da ONU)
"Apresentei meu forte protesto e ultraje ao ministro da Defesa e à ministra de Relações Exteriores, e exigi uma plena explicação"

E disse o senhor Ehud Barak (Ministro da Defesa de Israel)
“Foi um grave erro e (levaremos) isso muito a sério. (...) Será dada atenção extra às instalações e funcionários da ONU, e que isso não irá se repetir”.

E a carnificina está apta a prosseguir.


(fonte: Agência Reuters)




13 janeiro 2009

O senhor Abílio



Tomou o jornal nas mãos, apenas para confirmar as notícias da primeira página. Deteve-se na mais insensata, ilustrada por uma imagem. Nela, via o que seriam corpos de crianças enrolados com panos, prontos para baixar a sepultura. Uma densa presença de adultos expressava sua dor, homens e mulheres que choravam ou simplesmente olhavam para o chão, devastados pelos acontecimentos. As mulheres expunham o sofrimento de maneira menos contida, os rostos crispados por mais uma jornada de dor e impotência. Suas almas estavam em comunhão com um tempo que já não lhes pertencia. Abílio não queria, mas pensou na prostração, na indolência, no prosseguimento da carnificina que súbito, lhe pareceu tão viva e inescapável. “Amanhã serão outros pais e mães pranteando suas crianças...”, e só então se deu conta do espírito irredutível da morbidez humana, que principiava como pequenos equívocos, lamentados aqui e ali, aos bocados transformados em crimes hediondos, em série, justificados com pesar, para depois serem esquecidos e sepultados como aquelas crianças.



10 janeiro 2009

Vergonha


Pela inexistência de artigos contundentes nos grandes veículos midiáticos brasileiros, seja por desinteresse, omissão ou incompetência mesmo, que expressem com um mínimo de aprofundamento crítico os fatos que se sucedem em Gaza, divulgo abaixo o texto de Pedro Lipcovich, publicado no diário argentino Página 12, cujo título tomo emprestado para esta postagem.

Hoy, en enero de 2009, la mejor manera de asumir la condición judía es la vergüenza. Vergüenza fáctica, por el genocidio que el Estado de Israel lleva a cabo sobre el pueblo palestino. Vergüenza conceptual, por la grosera identificación de ese Estado con prácticas de las que el pueblo judío ha sido objeto en su historia: el terror sobre la población civil, la negación de los factores básicos para la subsistencia, el gueto.Pero la mayor vergüenza es la utilización de la memoria de la Shoah – que hubiera querido preservarse como patrimonio sagrado, horroroso, de la humanidad – para justificar políticas que siniestramente la reproducen sobre terceros.


La política del Estado de Israel es antisemita, no sólo porque sus víctimas, los palestinos, son semitas, sino porque responde a los principios del antisemitismo: la negación de derechos a un conjunto humano definido étnicamente, el sostén de privilegios derivados de un supuesto origen racial, el milenarismo. Pero, sobre todo, se atiene a una condición esencial del antisemitismo, que es la cobardía. La acción del antisemita se desarrolla entre dos polos: en un extremo, tiene por requisito la debilidad de su víctima; en el otro, la fuerza de los intereses que lo alimentan: el antisemita siempre fue matón al servicio de un poder dominante.


El proyecto antisemita, hoy encarnado por el Estado de Israel, fracasará, como ha fracasado antes en la historia, porque su lógica, irrealizable, requiere la desaparición total de la población agredida. Las hazañas militares israelíes – que en la última semana mataron más de cien niños, incluyeron la voladura de una escuela sostenida por las Naciones Unidas y causaron la mayor crisis humanitaria en el territorio de Gaza – sólo pueden prosperar bajo el sostén de la primera potencia económica y militar del mundo. El día que Estados Unidos de Norteamérica caiga, se debilite o modifique sus políticas (o quizás antes), Israel deberá enfrentar las consecuencias de los actos de su Estado.