20 fevereiro 2024

À flor da pele


Diego Rivera, A noite dos pobres

Antes que me esqueça dos pequenos gestos, escrevo. No convívio com meu tio Hoffman, por estes dias, a expressão de um homem firme e desgastado pelo tempo. Foram dois dias no hospital, somente eu e ele. Noites que passaram silenciosas, que escorreram como córregos condenados. Sua mão segurava a minha com força, nas limpezas e trocas de lençóis. O olhar sereno não se despregava de uma hipotética visão débil, que lhe sorria com compaixão. Quando permanecemos a sós, continuei segurando sua mão, dizendo-lhe que contaria histórias. Ele aprovou, e ao longo da narrativa, o mesmo olhar incerto, um delicado sorriso por talvez reconhecer-se como protagonista da narrativa. E depois, o mergulho no mesmo sono das horas indefinidas.

Já em casa, em uma das noites, outra vez as mãos que se agarram, sinto a textura forte da pele e da carne de seus dedos, de sua palma, é uma mão que não difere de outras tantas. Pergunto se está tudo bem, ele me responde com clareza, ‘maravilhoso’. Permaneço um pouco mais, seus olhos na penumbra, tão atentos quando nas ocasiões em que se põe alerta. Digo-lhe que contarei mais histórias e pergunto se gostaria de ouvir, ‘é’... a resposta que assente de modo positivo, mais simples de dizer do que ‘sim, quero continuar a ouvir’... Ficamos conectados mais um tempo pelas mãos, retorna o balbucio de palavras indecifráveis, e logo pronuncia um ‘eu te amo’ límpido e fulminante. Precisei aguardar toda uma vida para testemunhar tamanha emoção.

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Segue o massacre em Gaza, agora o objetivo final da destruição, Rafah, mais um nome palestino a ser riscado do mapa, A autorização por parte da comunidade internacional para essa violência inaudita me estranha: em nenhuma circunstância se verificou o direito continuado por um grupo eliminar outro de maneira tão aberta, excessivamente acintosa! Os foguetes caem dos céus e explodem quarteirões. Os hospitais são invadidos e pacientes sofrem com as consequências. O deslocamento contínuo traz o rastro da fome, a incerteza no futuro, o perigo de existir. A faixa de Gaza tornou-se no inferno terrestre. Como se não bastasse, os drones que flutuam sobre as cabeças emitem um ruído contínuo, uniforme, sem fim, enlouquecendo as pessoas. Não há escolas, não há trabalho, não há vida comunitária, tudo se transforma em um contínuo fluxo migratório, sem destino, cujo limite final parece ser Rafah, onde um milhão e meio de pessoas estarão concentradas, esperando pela condenação final.

Não me parece oportuno ficar comparando o que foi a maldição do holocausto com o genocídio que acompanhamos ao vivo e em cores sinistras. Por mais que sejam horrores historicamente distintos, e são, o que interessa aqui é condenar um e outro, com a mesma repulsa de humanidade que nos resta. Se não é justo comparar os dois acontecimentos, nada justifica a continuidade do massacre em Gaza, sob qualquer pretexto. Se é exagero colocá-lo no mesmo patamar do flagelo judeu, é igualmente inadmissível que se mate aos borbotões, sem distinção entre inimigo armado e população civil, a homens, mulheres e crianças. Os números se aproximam a 30.000 mortos, e sabe-se lá quantos feridos e desalojados. Uma região toda foi pelos ares, e uma vez mais fico a meditar, seria preciso implodir a comunidade da Maré, para destruir o Comando Vermelho? Afirmar positivamente não passa de uma retórica para a validação da limpeza social.



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