30 novembro 2023

Thiago de Mello - uma poesia

 

Thiago de Mello

O pão de cada dia


Que o pão encontre na boca

o abraço de uma canção

construída no trabalho.

Não a fome fatigada

de um suor que corre em vão.


Que o pão do dia não chegue

sabendo a travo de luta

e a troféu de humilhação.

Que seja a benção da flor

festivamente colhida

por quem deu ajuda ao chão.


Mais do que flor, seja fruto

que maduro se oferece,

sempre ao alcance da mão.

Da minha e da tua mão.


                                               (Valparaíso, janeiro de 63) 




23 novembro 2023

Histórias que o povo conta



Foi quando, inopinadamente para o público do Leblon e adjacências, se materializou a descida dos morros para o asfalto, a ponta de lança vinda do Vidigal. A princípio poucos podiam dizer de onde vinham aqueles desgarrados, organizados sim, pela maneira como distribuíam seu ódio pelo silêncio com que haviam sido guardados até então. Depois de disparar nos estabelecimentos de comércio elegante, nos bancos, nos edifícios luxuosos, recolheram mais de duzentos reféns e retornaram ao seu território. O público, ou mais precisamente, a audiência global, se escandalizou com o fato daqueles famélicos despossuídos, gente feia e ignorante, tivesse ousado descer de seu confinamento para mostrar a cara de sua patética existência. O que desejavam, por que essa ação intempestiva, marcada por uma violência inexplicável? Aos poucos, as lideranças da cidade passaram a ocupar os espaços midiáticos, e do estupor inicial, consideraram a ação como algo inaceitável para o cidadão de bem, e que as medidas repressivas não tardariam. As forças de segurança se incumbiram rapidamente de formular um plano de invasão, O inimigo pagará um preço que nunca conheceu, afirmou nas redes digitais o governador, descartando qualquer possibilidade de negociação política. O secretário de segurança, incumbido de distribuir suas forças, dividiu o Vidigal em três partes, e juntamente com o comando militar, elaborou um plano de ataque. A parte fronteiriça ao Leblon teria de ser evacuada em 24 horas, e apenas um posto de controle para a saída de civis foi montado, enquanto os helicópteros voavam metralhando os setores que a inteligência militar havia identificado como locais de presença dos bandidos. O problema era o que fazer para poupar os reféns, mas os mais duros do estado maior insistiam que não poderiam hesitar. O ataque foi brutal e, o que as narrativas preservadas registram, o público acompanhou em tempo real a devastação do Vidigal, com milhares de crianças assassinadas, casas destruídas, toda uma comunidade arrasada, ainda que os discursos oficiais relativizassem a destruição. Em mais de um mês de operações militares, o morro ficou com uma aparência lunar, sem qualquer barraco de pé, mais arruinado que Belo Monte após a quarta expedição, conforme atestam as imagens feitas pelos moradores da própria comunidade, que terminou ocupada pelo exército. Nas palavras de um analista da época, "Na verdade, o Sertão nada difere do Afeganistão ou de Gaza, a ordem hegemônica e seus direitos invioláveis não podem ser questionados. Quando o medo alcançou o auge, a combalida comunidade foi paulatinamente exterminada, para a satisfação de interesses personalistas e imediatos". 


18 novembro 2023

Como se nada acontecesse

 

acontece em Nápoles...

Como se tudo estivesse às mil maravilhas. O grande capital que movimenta a indústria do entretenimento organiza seus espetáculos de massa como se cada um fosse uma reunião de Nuremberg, onde prevalece a grandiosidade estética de cada evento. Não há preocupação com os possíveis pequenos problemas, que afete algumas pessoas durante o espetáculo, ou todas antes e após sua ocorrência. Não há qualquer adaptação ao momento climático por que passamos nesta semana, ou seja, uma onda de calor que tem elevado as temperaturas para mais de 35.C em São Paulo, em plena primavera. Os grandes eventos cobram de seus consumidores preços exorbitantes, que são pagos sem questionamento. Os fãs, no caso dos shows artísticos, ou os torcedores, nos encontros esportivos, aceitam enfrentar filas enormes, e a exclusividade (cara) dos produtos vendidos no interior desses espaços, explorados por empresas que também pagam para estar lá. Não há conforto na chegada, nem preocupação com isso. Repito, tudo pensado em termos massificados, o público se dirige para este ou aquele setor, parcelas da massa que são orientadas em seu conjunto. O mal-estar de um ou de outro, ou a possível morte de um fã - como ocorreu ontem no show de Taylor Swift - fazem parte de uma estatística desprezível e cujo transtorno é logo superado com uma declaração de pesar dos organizadores. E a grande mídia morde a isca e se satisfaz em ser pescada pelos grandes lobbies do entretenimento. Um grande foda-se. 

O fim do espetáculo é pior, é um salve-se quem puder, do modo que for possível. Todos de automóvel, nada de transporte de massas, já que está nas massas o interesse pela mais-valia do investimento. Caos. E o calor. E eventualmente os espetáculos que se entrechocam, como uma grande peça de teatro e uma partida de futebol, separados por algumas quadras. Para esses organizadores, fútil é pensar no inconveniente dessas saídas conjuntas. Fútil é pensar nas filas homéricas para a compra de ingressos, ainda que em parte seja feita pelas redes sociais. Fúteis são as baixas, os poucos casos de insolação ou falta de ar, porque tudo é pensado na grandiosidade das massas reunidas, no sucesso visível do evento, mostrado pelas câmeras de televisão, pela replicação das imagens dos celulares. Fúteis são as entrevistas que destacam das massas, dos amantes do espetáculo, e fazem circular nas redes como algo espetacular. O lucro estrondoso de todos passa por cima da alegria momentânea dos fãs, e cala a todos como se tudo estivesse funcionando perfeitamente, como se nada de desagradável acontecesse.

A Faixa de Gaza continua sob intenso ataque das FDI, Forças de Defesa Israelense, uma metáfora mais do que adequada para um exército invasor que não se preocupa com as baixas que provoca, nem com a destruição que realiza com suas bombas inteligentes. O cenário desse território é desolador, e sob circunstâncias normais, atingiria o bom-senso dos governantes do mundo, a começar pelos que patrocinam essa chacina, os de Israel e dos EUA. Mas não se trata de circunstâncias normais, há um desejo insano por guerra, e as consequências que venham depois. Uma crueldade poucas vezes assistida ao vivo pelo mundo. Ainda que milhares de pessoas se insinuem contra esse massacre desatado, com massivas passeatas nas principais capitais da Europa e dos Estados Unidos, é como se nada acontecesse. Um silêncio por demais incômodo. As vozes que se levantam em defesa da Palestina são fortemente reprimidas, como o caso de Roger Waters, que teve suas reservas hoteleiras canceladas em Montevidéu e Buenos Aires, ou Lula, muito cobrado quando se indignou com o terrorismo de estado praticado pelo exército de Israel. 

Disse Netanyahu, "Estamos tentando fazer, o mínimo de vítimas civis, mas infelizmente não temos sucesso". E ponto, fica por isso mesmo. Netanyahu segue sendo o bom vilão, a serviço do bem. Isso não parece que irá acabar proximamente, e nada se pode dizer sobre como ficará o território palestino, se livre e ajudado pelo mundo em sua reconstrução, ou se abandonado às forças de ocupação, mantendo os escombros como um alerta para que os palestinos jamais se insurjam contra a ocupação. Seja como for, um mundo distópico e violento, um mundo de poucas oportunidades e hipócrita quanto ao sentido da democracia. Um brutal silêncio cemiterial nos perpassa, cujos interesses coletivos se resumem ao juntar-se, como massa despossuída, para reunir-se em um espetáculo. Como se nada de mais acontecesse. 


 

14 novembro 2023

Desandar



Por muitas razões, esse conto de construção singela e ao mesmo tempo tão intenso, escrito por uma autora espanhola desconhecida, me chamou a atenção desde o li pela primeira vez, o que me levou a traduzi-lo e publicá-lo neste blog. Não há muito mais o que dizer, o texto fala por si. 
Espero que desfrutem, com a mesma alegria que me animou.
 

Desandar

Por Maria Sergia Martín Gonzalez

 

Foi mamãe quem assegurou ter escutado três golpes no caixão, justo no instante em que se derramou a primeira pá de terra. Ainda que algumas vizinhas tenham tratado em tranquilizá-la, porque entendia sua dor, ela gritou aos coveiros que abrissem de imediato o ataúde. A contragosto aceitaram, enquanto se fazia silêncio no cemitério. Dentro, papai, vestido com o melhor de seus trajes, recebia o ar fresco com um amplo sorriso e um pouco de rouquidão. Em vida, sempre havia sido um homem cordial e afável e, quando chegava o outono, sua garganta se acostumava a ressentir-se. Bem-vindo, de novo, maldito outono!, foi a primeira coisa que disse. Ajudamos com que se juntasse entre mamãe, don Anselmo, o velho pároco, e eu, enquanto sacudíamos de sua roupa a areia e as pétalas de rosa que tínhamos depositado no interior do caixão. Mamãe, que tinha os olhos empapados de lágrimas por voltar a ouvi-lo, disse bem incomodada que, se aquilo fosse outra de suas brincadeiras, tinha muita pouca graça, pois tinham vindo todos os vizinhos, os amigos das partidas das tardes, suas amigas de trabalhos manuais, e até Paquita Peña, a que – segundo se dizia no bairro – era uma filha secreta de mamãe.

Papai pediu perdão a todos ali reunidos pelo transtorno de ter que devolver as dúzias de buquês e coroas que tinham enviado para a despedida. Se desculpou com afeto de seus companheiros de cartas por não poder acabar o torneio e deu uma piscada a Paquita Peña. Dizem que o ouviram dizer que cuidou de sua verdadeira mãe e que não fizesse caso das fofocas sem sentido. Logo beijou mamãe nos lábios e explicou que tinha esquecido algo muito importante. Que não sabia muito bem o que era, mas que necessitava recuperá-lo, antes de encomendar o sono eterno. Não teve maneira de fazê-lo recuperar a razão, nem sequer quando dissemos que tia Margarita estava sendo trasladada ao hospital, depois de desmaiar ao vê-lo sair do caixão. Um enfarte, creio que afirmou um dos profissionais de saúde. Grande susto levou a pobre mulher. Depois de velar durante a noite e fartar-se de chorar com mamãe enquanto o cuidava da mortalha, parece que seu machucado e desidratado coração não pôde resistir a novas emoções.

Já em pé, papai tomou mamãe pelo braço e a mim estendeu a mão como costumava fazer sempre que me levava ao parque. Perguntou se queríamos acompanhá-lo a desandar parte de seu caminho. Eu o olhei assim como se olha a um homem mágico, capaz de conseguir que os pássaros do céu voassem para trás, ou que a chuva, no lugar de cair e se espalhar, subisse até as nuvens e deixasse seco o solo. Confesso que, apesar de não entender muito bem o que queria dizer, assenti entusiasmado só em poder passar mais tempo com ele. Mamãe o apertou contra seu peito e os três começamos a desandar juntos. Desandar, disse, é como desfazer um caminho feito com anterioridade. No começo, resultou complicado isso de colocar um pé detrás do outro e retroceder sem tropeçar, sobretudo mamãe, mas quando descaminhamos os primeiros passos, parecia que tínhamos feito a vida toda. 

Mamãe protestou um pouco, mas a mim foi divertido isso de voltar atrás. E assim, descaminhando, regressamos à funerária. Ainda perguntamos se alguém havia encontrado algo, mas ele disse que não estava ali o que buscava. Continuamos desandando até os últimos meses de hospital, até o caminho que levava aos balanços do parque, a suas partidas de cartas pela tarde, a nossa casa... Logo que entramos, comecei a chorar porque me sentia cansado e tinha fome. Mamãe me tomou nos braços, me deu a teta e me deixou dormindo no berço. Papai buscou e rebuscou em caixotes e armários, mas tampouco o encontrou. Quando saíram, senti como um desvanecimento que me fez converter em uma pequena partícula cósmica e me elevar por cima das nuvens. Eu os vi retroceder até a igreja onde ambos prometeram amor eterno. Que bonita estava mamãe, vestida de branco e ele, que elegante e jovial.

No mesmo altar, se despediu de mamãe e continuou descaminhando sozinho até a fábrica onde trabalhou toda sua vida, à estação de ônibus que o trouxe à cidade, ao lugarejo que tanto adorava, a sua festa de comunhão, aos jogos de rua... Na praça, em frente a um casarão branco de telhas azuis, o mesmo que durante anos nos havia desenhado com palavras, crianças brincavam de amarelinha. O menor o convidou a se aproximar. Papai negou com a cabeça, disse que não podia, que antes devia recuperar algo muito importante para ele e empurrou o portão com decisão. Dentro, uma mulher jovem e bonita preparava o almoço. Correu a abraçá-la pelos joelhos com seus pequenos braços.

- Mãe!

- Apronte-se, querido, ou você se atrasará para o primeiro dia de aula.


(traduzido do original em espanhol Desandar, https://www.zendalibros.com/ganadora-y-finalistas-del-concurso-de-relatos-surrealismopuro/)



Cristina Peri Rossi




Historia de un amor

Para que yo pudiera amarte

los españoles tuvieron que conquistar América

y mis abuelos

huir de Génova en un barco de carga.

 

Para que yo pudiera amarte

Marx tuvo que escribir El Capital

y Neruda, la Oda a Leningrado.

 

Para que yo pudiera amarte

en España hubo una guerra civil

y Lorca murió asesinado

después de haber viajado a Nueva York.

 

Para que yo pudiera amarte

Virgínia Wolf tuvo que escribir Orlando

Y Charles Darwin viajar al río de la Plata

 

Para que yo pudiera amarte

Catulo se enamoró de Lesbia

y Romeo, de Julieta

Ingrid Bergman filmó Stromboli

y Pasolini, los Cien Días de Saló.

 

Para que yo pudiera amarte,

Lluís Llach tuvo que cantar Els Segadors

y Milva, los poemas de Bertolt Brecht.

 

Para que yo pudiera amarte

alguien tuvo que plantar un cerezo

en la tapia de tu casa

y Garibaldi pelear en Montevideo.

 

Para que yo pudiera amarte

las crisálidas se hicieron mariposas

y los generales tomaron el poder.

 

Para que yo pudiera amarte

tuve que huir en barco de la ciudad donde nací

y tú combatir a Franco.

 

Para que nos amáramos, al fin,

ocurrieron todas las cosas de este mundo


y desde que no nos amamos

sólo existe un gran desorden.

 

(créditos: https://youtu.be/vb-FSZoelrg?si=7gHc7q5DjrvjyA60



06 novembro 2023

Embates, combates


Expulsão dos palestinos, 1948

A segunda-feira começa ensolarada, temperatura em torno de 22º.C. Seguem os ataques israelenses em Gaza, com uma violência inaudita, sem qualquer perspectiva de alguma trégua. Várias agências da ONU, em declaração conjunta, apelaram a um "cessar-fogo humanitário imediato", que por certo serão ignorados pelo Departamento de Estado e pelo governo israelense. O problema parece ser a completa ausência de limites à ofensiva das FDI, ignorando a população civil, ou confundindo-a com os combatentes do Hamas. Segundo o comunicado, Toda uma população está sitiada e sob ataque, sem acesso aos bens essenciais para a sobrevivência, bombardeada nas suas casas, abrigos, hospitais e locais de culto. Isso é inaceitável. A grande questão que ainda nem se esboça no horizonte longínquo: em que condições se dará a reconstrução de Gaza? 

Verifico pessoalmente a penetração da retórica ameaçadora israelense: no sábado, após o ato em apoio à Palestina, encontrei com um casal portando bandeiras palestinas. Perguntei se podiam me dar uma e o rapaz, de maneira solícita, entregou a que levava pendurada no corpo. Tomei o metrô, encontrei Moniquinha, participei de um belo lanche da tarde com sua família e na volta, ela me pediu para não levar a bandeira (dobrada), pois poderia ser perigoso.

Massa e Milei continuam suas campanhas para a presidência da Argentina, e por mais que me informe com os índices das pesquisas, não consigo ter uma informação concludente, pois há diferenças nos resultados. A última, da consultoria Analogías, divulgada pelo jornal Página12, mostra Massa com 42,4% e Milei com 39,7%, com mais de 12% de indecisos. Essa diferença já foi de 8 pontos há dez dias, e certamente se reduziu em função do apoio de Pato Bullrich e de uma parcela de Juntos por el Cambio. Preocupa que o ultraliberal não perca popularidade mesmo com seus atos estúpidos. Ao contrário, seus momentos de choro e de agressividade parecem cair bem na avaliação de uma parte da população. Fora esses momentos bizarros, nada acontece de substancial para uma redução tão acentuada em tão pouco tempo. Nada consegue deter o impulso da imbecilização coletiva. 

Nesse sentido, contribuem atores como Macri, que sobe à ribalta tal como um boneco teleguiado, para proferir suas certezas, atacar o peronismo e cumprir com as ordens da central a que se submete, no mínimo para criar o caos, ou para ajudar a preservar a hegemonia do poder real. Tem desempenhado tais propósitos com esmero. Mesmo que sua fala seja torpe e sem substância, tem garantido o espaço midiático e, sem nunca se alterar, profere os argumentos que, repetidos à exaustão, acabam assimilados, talvez como verdades ineludíveis. 

Por representar a nata do poder econômico e midiático, sua imagem fornece confiabilidade. Sem um filtro crítico considerável, que questione seu governo e seus atos, suas palavras tornam-se palatáveis para uma parcela que deseja mudança - sem compreender que esse não é o caminho de qualquer mudança! Subindo ao proscênio no momento mais delicado da campanha presidencial, guindado sabe-se lá por quantas mãos e cérebros poderosos, para além de ser um homem do mercado, Macri é um homem do sistema, com o mais absoluto apoio das corporações jurídico-midiático-financeiras.



01 novembro 2023

Os espectros liberais e o peronismo



A situação política na Argentina, que se mostrava tensa e complexa há duas semanas, antes do primeiro turno das eleições, modificou-se completamente. O peronismo, ensanduichado entre duas candidaturas de direita e ameaçado não ir para o segundo turno, logrou afastar uma delas, e agora, habilitado à disputa do balotage, reune todas as chances para vencer a que sobrou. Como se deu o milagre?

O principal adversário, o sinistro Javier Milei, surfou na onda do discurso de mudança até onde pôde. Era o favorito, ganhou as primárias com quase dez pontos sobre Sergio Massa, e bem à frente de Patrícia Bullrich, a candidata do Juntos por el Cambio. Enquanto se mostrava uma surpresa, carreou grandes multidões de jovens, principalmente. Suas aparições na mídia eram dramaticamente engraçadas, mas isso enquanto conseguiu sustentar-se em seu blablabla radical. Bastou o tempo passar e ser testado por seus adversários, para sua verdadeira envergadura se mostrar, e desabou por si só, como um castelo de areia. 

Tenta nessa reta final alguma composição com Bullrich e o ardiloso Maurício Macri, que mesmo não tendo reunido cacife para disputar a presidência ou uma vaga no senado, tem seus aficcionados, principalmente na Cidade Autônoma de Buenos Aires, onde seu irmão, Jorge Macri, venceu as eleições. O problema todo é que essa composição, por todos os ataques mútuos anteriores, não se sustenta e não convence. Milei, um leão assustador no primeiro turno, agora não passa mais do que uma triste imagem de um gatinho confuso.

Bullrich não agrega, e nem seu discurso agressivo seria um ponto de contato com Milei. Macri, por fora, mais preocupado em agir por conta própria contra o peronismo, não está em seu melhor momento, seja junto ao eleitorado, seja entre os poderes midiáticos de Clarín e La Nacion. Nessa enorme brecha aberta na direita, Massa consegue reunir os cacos da coligação peronista e de modo hábil, restaura sua força junto sua base eleitoral. Como ministro da Economia, avança nas propostas sociais possíveis, o que tem projetado a imagem de um político sério e atento às dificuldades econômicas da população. 

O que poderia ser seu calcanhar de Aquiles, a alta da inflação, não parece ter força suficiente para promover um desgaste letal em sua campanha, e penso, muito em razão da inapetência opositora. Isso confirma uma suspeita minha, desde o golpe em Dilma, e depois com a aparição de Macri, Bolsonaro e agora, Milei: a direita é esse fragmento de falsas promessas com suas bobagens descartáveis, que sozinhas não representam nada como projetos transformadores, como novas ideias (como disse Pedro Aznar, promesas falsas, ideas a medio cocinar, falacias mal vestidas de tecnicismos...), a não ser o empenho aos interesses dos grupos dominantes dessa mesma nação. E quando há um curto-circuito nessas relações perigosas e vaidosas, ou seja, quando os canalhas não se entendem na partilha do botim, renasce a força dos projetos mais abrangentes, mais populares, como aconteceu ano passado com a vitória de Lula, e agora, com a possível vitória de Massa. 

Milei e sua trupe dá mostras de afundar na areia movediça que a própria frente política criou, sem forças para se erguer e restabelecer, nesses próximos 20 dias, certamente vítima de suas infindáveis diatribes, que surgem sob retóricas atraentes, culminam como fundamentos vazios e quase sempre produzem indigestão. Demonstra a cada dia o que não é. Ao contrário de seu movimento desequilibrado, aliado às declarações bombásticas e de pouca substância de Bullrich (Ojala que la economia explote antes del (día) 19...), e à futilidade política de Macri, remonta o peronismo kirchnerista, nem tanto de Massa, mas de Cristina, de Kicillof, e tal como diz a letra do começo da marcha, Los muchachos peronistas/ todos unidos triunfaremos/ Y como siempre daremos/ Un grito de corazón: Viva Perón, Viva Perón!     

(atualizado em 01.11.2023, às 10h).