Retirou-se do tablado mais cabisbaixo do
que nos últimos dias, alheio aos aplausos entusiastas que não cessavam e aos
primeiros admiradores que o solicitaram na coxia e nos camarins. Presenciei os
passos titubeantes, o vago olhar, pausado e insatisfeito, sem que imaginasse
que algo de anormal ocorresse. Uma falha grave ocorrida ao longo da
apresentação já teria sido exposta com veemência ainda nos corredores. Mas
seguíamos todos imersos nos afagos e no fog de tabaco. Aos poucos ele se
esquivou da cena, com seus gestos gentis, para enfurnar-se no anexo pessoal,
pedindo que trouxessem uísque e fechassem a porta. Repetiu silenciosa e
furtivamente um ou dois takes,
incorporando em gestos uma sequência de floreados moderados, o cigarro entre os
dedos. Foi como se, por algum motivo específico, precisasse se concentrar para
repassar sua performance.
Mais tarde, já no hotel, dispensou as duas
amigas que nos acompanhavam e sentou-se à minha frente, no confortável sofá
branco, segurando um copo de scotch. Não durou muito a introspecção inquieta e
logo se levantou e caminhou até o terraço, apreciando o movimento adormecido da
avenida, como se isso o inspirasse. As luzes dos automóveis projetavam manchas
luminosas na pista, vez ou outra um bonde rugia sobre os trilhos, com o
tilintar característico de alerta, anunciando sua passagem. O ar fresco da
noite espargia a garoa fina e persistente, imersa na neblina que borrava os
letreiros luminosos.
Retornou com a expressão facial menos
grave, o si maior não saiu hoje, Tom. Não
entendi na primeira vez e ele repetiu, com a ajuda das mãos, o si maior... e gesticulava com as duas
mãos, como se tocasse um trompete imaginário, ... não saiu como eu queria... Era o desalento por não ter alcançado
uma nota em sua devida intensidade melódica, por entender que isso afetara a
força espiritual em sua performance. Permaneceu por um instante estático, sem
nada dizer, os olhos baços em algum ponto de outra dimensão, a penetrar a
parede às minhas costas. Não reagi ao seu comentário por não saber exatamente o
que dizer. Estava hipnotizado pela ausência de reação daquele cara tão
expressivo com seu instrumento. Os minutos arrastaram-se por uma eternidade
envolvendo o último gole e a retirada para o quarto.
Seu corpo, mais alquebrado que de costume, desistia da noitada mal começada e deslizava para o refúgio solitário. Estirei-me no sofá, contagiado pela letargia da noite. Fechei os olhos e aos poucos repassei os detalhes da apresentação, cada take, os solos, os riffs fraseados e adormeci em meio à jovialidade shibui de um magnífico trompete.
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