Cena da peça As Mãos Sujas, de Jean-Paul Sartre |
É no mínimo curioso recordar o momento em que o meu
pai chegou à casa e expôs para nós, na mesa da copa de nossa antiga casa de
Flores, que saía do seu trabalho para se aposentar. Cumpria 30 anos de serviço e havia
duas possibilidades, aposentadoria pelo banco ou arregaçar as mangas e cuidar
de um pombal, em Quilmes. Optou pela primeira hipótese. Eu estava para
completar 20 anos e vi ali a necessidade de começar um trabalho. Era a primeira
vez que o via, naquela mesa da copa, com um olhar que o fazia mais temeroso do
que qualquer um de nós. Surpreendeu-nos sua disposição em compartilhar a
situação e os próximos passos. Não mudaria muito seus hábitos: ler os jornais
matinais, cuidar do nosso gato, jogar dominó na praça e ir ao Juan Domingo
Perón para assistir La Academia. Aprendi a compreender meu pai
pelos olhares. Algumas vezes parávamos no seu café predileto, Los Galgos, para
um sanduíche com queijo e uma cerveja, insinuando que comentaria algo
importante. Mas não, as palavras permaneciam apresados em pensamentos distantes,
como se não houvesse motivos para que expressar opinião ou sentimentos, mesmo
nos momentos mais intensos. Para mim, era mais fácil entendê-lo quando não
falava, e tomei aos poucos o meu jeito introspectivo, resignando-me aos mundos
imaginários, sem me preocupar em criar assuntos para conversar. Bastava-me
entregar à lufada contínua de vento que penetrava pela janela do carro e tudo
bem para ele e para mim. Quando passei a frequentar por minha conta os jogos do
Racing, perdia-me com o desenho das noites estreladas, sem me incomodar com o
uivo da hinchada a cada ataque
comandado por Raffo, JJ.Rodriguez e o chango Cárdenas.
Os últimos anos foram muito estranhos, pois coincidiram com o final da presença ativa de meu pai, de sua lucidez reflexiva, e o meu ocaso como professor. Sobreveio de chofre a debacle econômica, com a razzia nos direitos dos trabalhadores patrocinada pelo aprofundamento das políticas liberais, o que me levou a retomar os escritos com a diminuição das aulas. Mal me recordo do dia em que cheguei em casa e, sentando-me à mesa, comentei com minha querida Mônica a chegada da aposentadoria, sem dispor da opção de cuidar de um pombal.
(atualizado em 30.08.2022)
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