09 março 2022

Na cabina telefônica

 

Cabina telefônica, Berlim, 2010


O texto abaixo foi reencontrado nos arquivos de uma associação cultural há duas semanas, após uma solicitação de minha parte. Isso só foi possível porque o conto ganhou o concurso de literatura da associação daquele longínquo ano de 1990, e foi publicado em um jornal interno, com ampla circulação entre seus associados. O prêmio, uma máquina portátil elétrica, era o sonho de consumo de qualquer jovem que alimentasse o sonho de ser escritor. 

O conto possui características de época que se perderam no tempo, como por exemplo, as cabinas telefônicas. Hoje, sua proposta seria absolutamente inviável, o que não minimiza os pontos principais da narrativa, como a tensão psicológica e o impasse existencial. A concepção do conto teria nascido de uma ideia, se a memória não me trai, de Orson Welles, que teria comentado o desejo de realizar um filme todo rodado em uma cabina telefônica. 

Sendo fato ou não, optei por escrever um texto em que o personagem sente-se tolhido nos limites desse espaço, e ao cabo de explorar as possibilidades disponíveis, se vê absolutamente impotente. O texto original passou por correções de sintaxe e de semântica, além da reelaboração e do corte de pequenos trechos, o que, ao final, não modificou sua estrutura.  


Na cabina telefônica

Ao tentar sair da cabina a qual entrara para um rápido telefonema, João notou que estava preso, inesperadamente imobilizado dentro de uma arapuca de vidro com pouco mais de um metro quadrado. Forçou insistentemente durante alguns minutos a porta, logo percebeu que era um esforço inútil, ela emperrara de um modo definitivo. Procurou rememorar como fizera ao entrar na cabina, como fizera para fechar a porta atrás de si e não se lembrava de qualquer movimento mal executado que propiciasse o ignominioso problema. Deu duas pancadas no vidro com a mão direita, forçou a porta com o ombro, nada. Ergueu a cabeça e pôde sentir como a noite estava aprazível, as estrelas pipocando no céu límpido, assim como nas noites anteriores de um verão deliciosamente quente e límpido. O calor não chegava a sufocar ali dentro, e não saberia dizer se pelo espaço pouco ventilado ou pelo desespero que começava a invadi-lo, entrava em um processo de transpiração desagradável.

Olhou para as ruas que demarcavam a esquina em que se encontrava, semivazias, com poucos veículos transitando àquela altura da noite. Maldita a hora em que se decidiu a dar o telefonema, um simples recado à amada que se atrasaria meia hora no encontro em que teriam, em razão de uma reunião de trabalho que se estendera além do esperado. Mais três golpes na porta de vidro, na tentativa de forçar o fecho. Não conseguia entender como isso pudera lhe ocorrer. Tateou os bolsos à procura de uma moeda, nada, lembrara-se que tinha gastado a última no telefonema.

O seu carro estava parado a poucos metros, inerte, mergulhado no silêncio do momento. Nas calçadas, também nenhuma viva alma, ninguém o ouviria se passasse a gritar. Considerava a situação cada vez mais tola e tentava manter a calma para encontrar uma solução. O que teria acontecido? A cabine estaria inutilizada por algum problema na porta, e haviam esquecido de colocar uma notificação? Algum engraçadinho havia passado e escorado de algum modo a saída? Se assim fosse, devia estar nas proximidades, observando e rindo às tontas. Se fosse nas imediações da universidade, poderia desconfiar do pessoal do Mathias, com seu humor tosco, de gosto duvidoso. Até nas aulas gostavam de provocar e perturbar o aprendizado. Porém, estava bem longe do campus, do outro lado da cidade. Estava preso como um rato numa ratoeira de vidro, este era o fato. Avaliou o espaço interno, havia uma pequena fresta no alto que permitia alguma ventilação. Não dispunha de nenhum objeto para, em caso extremo, romper a porta. Pensou que poderia apoiar-se nela e forçar com um dos pés fixado na parede oposta. Tentou com cuidado uma primeira vez, uma segunda, e quando começava a perder a paciência e projetar-se com toda a energia, viu, do outro lado da avenida, uma mulher caminhando ligeira, “ela também deve estar atrasada para o seu compromisso”, pensou. Por um momento imaginou que atravessaria na faixa de pedestre e passaria bem próximo, mas logo notou que ela prosseguiria na avenida, desaparecendo aos poucos. Até onde podia perceber era bonita, meia idade, talvez secretariasse um dos milhões de escritórios ao redor, naquela região empresarial. Ainda acreditou que no derradeiro instante ela mudasse seu trajeto e viesse em sua direção, e assim poderia não só apreciar seu elegante modo de caminhar, como poderia pedir ajuda.

De algum modo logo compreendeu que não cabia afobação, que seria preciso paciência para sair dali. Passou a tatear a caixa de vidro que o retinha, por trás do telefone, em baixo, junto ao piso, em cima, nas frestas do teto, em uma desesperada tentativa de encontrar alguma esperança. Abaixou-se até ficar de cócoras e através do vidro, constatou a presença de um vira-latas a poucos metros da cabina, como se tentasse entender o que se passava dentro dela. Mirou-o por instantes, sem imaginar como poderia ser auxiliado pelo animal. Suava com mais abundância, mas por alguma razão, conseguia manter a tranquilidade, o que, definitivamente, não era seu forte. Deu duas pancadas mais fortes na parte de baixo do vidro, inútil. Ergueu-se e tomou o fone para ouvir o sinal de ligação, nada, estava mudo. Tentou linha, mas era como aquele aparelho não tivesse mais vida. Começou a considerar as alternativas mais extremadas, como arrancar o aparelho inútil e atirá-lo contra o vidro, ou então forçar a cabina a deslocar-se e de alguma forma tombá-la, espatifando-a contra o solo... mas claro que isso não seria possível, aquele vidro estava fixo no solo, e parecia ser inexpugnável, como nunca antes houvera percebido. Distanciava-se do encontro com sua Helena, e começava a compreender que sua justificativa seria ridícula, e se somaria a mais uma tola explicação por um novo atraso.

Poderia, também, sentar-se ali no acanhado espaço que dispunha e esperar, abrindo mão de qualquer iniciativa, o que não seria novidade em sua vida, “quantos atrasos e quantos impasses já acumulados”... pensava sem se dar conta do que pensava, como se um tsunami de situações de estagnações o varresse e o condenasse por um momento. Mas pela primeira vez se justificava sua inação, bem ou mal estava detido e aquele era um fato, poderia então relaxar, acomodar-se no chão frio e sujo da cabina e aguardar até que surgisse alguém que pudesse ajudá-lo. Correu a mão no rosto molhado, havia em frente um antiquário com uns objetos expostos na vitrina, abajures, tapetes, livros antigos, pôsteres... Mais perto, observou o deslocar suave de uma pequena mancha escura, que deslizava longitudinalmente na porta da cabina. A luminosidade era suficiente para ele perceber que se tratava de um inseto. Subia despreocupadamente em linha quase reta, sem se esquivar. Estava preso também, mas por pouco tempo se quisesse, pois bastaria dirigir-se à uma das pequenas frestas da cabina e seu tamaínho o permitiria passar sem problemas para o lado de fora, para a liberdade. Por um instante, invejou pela primeira vez um inseto. Iria ele ao encontro de sua Helena? Olhou para a esquina e notou que estava mais nua, uma abertura que entrava e perdia-se num fundo escuro, marcada pela mudança automática das luzes do semáforo. Recostou a cabeça no vidro e soltou-se. Não tinha sono, não queria pensar em nada, apenas sentir o tempo perder-se. Algumas impressões imaginárias o assediaram, a urgência de certos papéis, a inépcia de determinadas decisões, o fragor da rebentação, ia um pouco mais longe, as falas de sua mãe que nada tinham que ver com suas morosas decisões. Retomava aos poucos as aulas de filosofia, as justificativas sartrianas para o que se denominava de má-fé e que o incomodava tanto, talvez pelo desejo de fuga, de não se decidir sobre o futuro, nem mesmo de se aventurar por aí...

Suava em bicas e a camisa dava a impressão de estar empapada, pois ao desejar enxugar o rosto com a manga, notou que a umedecia ainda mais. Não queria se abater, mas sentia-se em um processo de imobilização físico e mental, zwgzwang no termo enxadrístico, paralisia completa, nenhuma chance de se mover sem afetar a estratégia do jogo... Talvez lhe fizesse bem entregar-se à paixão de Helena, isso poderia abrir caminho para um comprometimento mais sério na vida, sem subterfúgios.... Como seria bom sentir-se assim acolhido, nos braços de uma mulher tão forte, carinhosa... “Fique comigo, meu amor...”... ouvia-a em meio a suas carícias... Ouviu repentinamente passos, que, em um primeiro momento, atravessavam seus devaneios, logo estancaram. João olhou para cima e lá estava o rosto de um homem que, do lado de fora, o olhava aturdido. Estava com uma moeda nas mãos, quis forçar a porta e não conseguiu. João não se sentiu impelido a ajudá-lo, como se quisesse retomar seu idílio imaginário... Por fim, o movimento brusco do homem fez com que a porta se abrisse, João se levantou e a contragosto saiu da cabina, mas o mundo externo não se definia em meio à bruma inesperada, isso o entorpeceu de tal modo que ouviu novamente um golpe surdo, e dessa vez despertou de seu torpor, e percebeu que uma freada brusca na avenida, passageira, o trazia de volta à realidade. Dera uma cochilada imperceptível e agora constatava que tudo continuava imutável. Faria um esforço para manter-se acordado, mesmo sabendo que poderia permanecer ali por horas.

 

(1990/2022)


Nenhum comentário: