Na cabina telefônica
Ao tentar sair da cabina a qual entrara para um rápido telefonema,
João notou que estava preso, inesperadamente imobilizado dentro de uma arapuca
de vidro com pouco mais de um metro quadrado. Forçou insistentemente durante
alguns minutos a porta, logo percebeu que era um esforço inútil, ela emperrara
de um modo definitivo. Procurou rememorar como fizera ao entrar na cabina, como
fizera para fechar a porta atrás de si e não se lembrava de qualquer movimento
mal executado que propiciasse o ignominioso problema. Deu duas pancadas no
vidro com a mão direita, forçou a porta com o ombro, nada. Ergueu a cabeça e
pôde sentir como a noite estava aprazível, as estrelas pipocando no céu
límpido, assim como nas noites anteriores de um verão deliciosamente quente e
límpido. O calor não chegava a sufocar ali dentro, e não saberia dizer se pelo
espaço pouco ventilado ou pelo desespero que começava a invadi-lo, entrava em
um processo de transpiração desagradável.
Olhou para as ruas que demarcavam a esquina em que se encontrava,
semivazias, com poucos veículos transitando àquela altura da noite. Maldita a
hora em que se decidiu a dar o telefonema, um simples recado à amada que se
atrasaria meia hora no encontro em que teriam, em razão de uma reunião de
trabalho que se estendera além do esperado. Mais três golpes na porta de vidro,
na tentativa de forçar o fecho. Não conseguia entender como isso pudera lhe
ocorrer. Tateou os bolsos à procura de uma moeda, nada, lembrara-se que tinha
gastado a última no telefonema.
O seu carro estava parado a poucos metros, inerte, mergulhado no
silêncio do momento. Nas calçadas, também nenhuma viva alma, ninguém o ouviria
se passasse a gritar. Considerava a situação cada vez mais tola e tentava
manter a calma para encontrar uma solução. O que teria acontecido? A cabine
estaria inutilizada por algum problema na porta, e haviam esquecido de colocar
uma notificação? Algum engraçadinho havia passado e escorado de algum modo a
saída? Se assim fosse, devia estar nas proximidades, observando e rindo às
tontas. Se fosse nas imediações da universidade, poderia desconfiar do pessoal
do Mathias, com seu humor tosco, de gosto duvidoso. Até nas aulas gostavam de
provocar e perturbar o aprendizado. Porém, estava bem longe do campus, do outro
lado da cidade. Estava preso como um rato numa ratoeira de vidro, este era o
fato. Avaliou o espaço interno, havia uma pequena fresta no alto que permitia
alguma ventilação. Não dispunha de nenhum objeto para, em caso extremo, romper
a porta. Pensou que poderia apoiar-se nela e forçar com um dos pés fixado na
parede oposta. Tentou com cuidado uma primeira vez, uma segunda, e quando
começava a perder a paciência e projetar-se com toda a energia, viu, do outro
lado da avenida, uma mulher caminhando ligeira, “ela também deve estar atrasada
para o seu compromisso”, pensou. Por um momento imaginou que atravessaria na
faixa de pedestre e passaria bem próximo, mas logo notou que ela prosseguiria
na avenida, desaparecendo aos poucos. Até onde podia perceber era bonita, meia
idade, talvez secretariasse um dos milhões de escritórios ao redor, naquela
região empresarial. Ainda acreditou que no derradeiro instante ela mudasse seu
trajeto e viesse em sua direção, e assim poderia não só apreciar seu elegante
modo de caminhar, como poderia pedir ajuda.
De algum modo logo compreendeu que não cabia afobação, que seria
preciso paciência para sair dali. Passou a tatear a caixa de vidro que o
retinha, por trás do telefone, em baixo, junto ao piso, em cima, nas frestas do
teto, em uma desesperada tentativa de encontrar alguma esperança. Abaixou-se
até ficar de cócoras e através do vidro, constatou a presença de um vira-latas
a poucos metros da cabina, como se tentasse entender o que se passava dentro
dela. Mirou-o por instantes, sem imaginar como poderia ser auxiliado pelo
animal. Suava com mais abundância, mas por alguma razão, conseguia manter a
tranquilidade, o que, definitivamente, não era seu forte. Deu duas pancadas
mais fortes na parte de baixo do vidro, inútil. Ergueu-se e tomou o fone para
ouvir o sinal de ligação, nada, estava mudo. Tentou linha, mas era como aquele
aparelho não tivesse mais vida. Começou a considerar as alternativas mais
extremadas, como arrancar o aparelho inútil e atirá-lo contra o vidro, ou então
forçar a cabina a deslocar-se e de alguma forma tombá-la, espatifando-a contra
o solo... mas claro que isso não seria possível, aquele vidro estava fixo no
solo, e parecia ser inexpugnável, como nunca antes houvera percebido.
Distanciava-se do encontro com sua Helena, e começava a compreender que sua
justificativa seria ridícula, e se somaria a mais uma tola explicação por um
novo atraso.
Poderia, também, sentar-se ali no acanhado espaço que dispunha e
esperar, abrindo mão de qualquer iniciativa, o que não seria novidade em sua
vida, “quantos atrasos e quantos impasses já acumulados”... pensava sem se dar
conta do que pensava, como se um tsunami de situações de estagnações o varresse
e o condenasse por um momento. Mas pela primeira vez se justificava sua inação,
bem ou mal estava detido e aquele era um fato, poderia então relaxar,
acomodar-se no chão frio e sujo da cabina e aguardar até que surgisse alguém
que pudesse ajudá-lo. Correu a mão no rosto molhado, havia em frente um
antiquário com uns objetos expostos na vitrina, abajures, tapetes, livros
antigos, pôsteres... Mais perto, observou o deslocar suave de uma pequena
mancha escura, que deslizava longitudinalmente na porta da cabina. A
luminosidade era suficiente para ele perceber que se tratava de um inseto.
Subia despreocupadamente em linha quase reta, sem se esquivar. Estava preso
também, mas por pouco tempo se quisesse, pois bastaria dirigir-se à uma das
pequenas frestas da cabina e seu tamaínho o permitiria passar sem problemas
para o lado de fora, para a liberdade. Por um instante, invejou pela primeira
vez um inseto. Iria ele ao encontro de sua Helena? Olhou para a esquina e notou
que estava mais nua, uma abertura que entrava e perdia-se num fundo escuro,
marcada pela mudança automática das luzes do semáforo. Recostou a cabeça no
vidro e soltou-se. Não tinha sono, não queria pensar em nada, apenas sentir o
tempo perder-se. Algumas impressões imaginárias o assediaram, a urgência de
certos papéis, a inépcia de determinadas decisões, o fragor da rebentação, ia
um pouco mais longe, as falas de sua mãe que nada tinham que ver com suas
morosas decisões. Retomava aos poucos as aulas de filosofia, as justificativas
sartrianas para o que se denominava de má-fé e que o incomodava tanto, talvez
pelo desejo de fuga, de não se decidir sobre o futuro, nem mesmo de se
aventurar por aí...
Suava em bicas e a camisa dava a impressão de estar empapada, pois
ao desejar enxugar o rosto com a manga, notou que a umedecia ainda mais. Não
queria se abater, mas sentia-se em um processo de imobilização físico e mental,
zwgzwang no termo enxadrístico,
paralisia completa, nenhuma chance de se mover sem afetar a estratégia do
jogo... Talvez lhe fizesse bem entregar-se à paixão de Helena, isso poderia
abrir caminho para um comprometimento mais sério na vida, sem subterfúgios....
Como seria bom sentir-se assim acolhido, nos braços de uma mulher tão forte,
carinhosa... “Fique comigo, meu amor...”... ouvia-a em meio a suas carícias...
Ouviu repentinamente passos, que, em um primeiro momento, atravessavam seus
devaneios, logo estancaram. João olhou para cima e lá estava o rosto de um
homem que, do lado de fora, o olhava aturdido. Estava com uma moeda nas mãos,
quis forçar a porta e não conseguiu. João não se sentiu impelido a ajudá-lo, como
se quisesse retomar seu idílio imaginário... Por fim, o movimento brusco do
homem fez com que a porta se abrisse, João se levantou e a contragosto saiu da
cabina, mas o mundo externo não se definia em meio à bruma inesperada, isso o
entorpeceu de tal modo que ouviu novamente um golpe surdo, e dessa vez
despertou de seu torpor, e percebeu que uma freada brusca na avenida,
passageira, o trazia de volta à realidade. Dera uma cochilada imperceptível e
agora constatava que tudo continuava imutável. Faria um esforço para manter-se
acordado, mesmo sabendo que poderia permanecer ali por horas.
(1990/2022)
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