Cracóvia, 1994 |
A vida
significa o que ela sempre significou.
Santo
Agostinho
Fomos testemunhas de um tempo que nos parecia infinito. Vivíamos
situações em que desfrutávamos os prazeres ou sofríamos as consequências. Não
nos incomodávamos com as dores prolongadas, sabíamos muitas coisas sobre como
superá-las, e então nos envolvíamos em novas aventuras repletas de reticências,
bebíamos nas mesas dos bares que curtíamos, acompanhados ou não, frequentávamos
os cinemas alternativos com seus filmes da nouvelle vague ou do realismo russo,
e assim seguíamos a vida, irreverentes, irresponsáveis, apaixonados.
Comecei a desconfiar das armadilhas do destino ao
ver que sobrevivíamos ao passar dos anos. Sobrevivíamos relativamente intactos,
com algum problema financeiro a resolver, com essa ou aquela nova tarefa no
trabalho, com as comemorações mais frequentes do que os infortúnios gerados por
doenças ou mortes. Os amigos, os bons amigos, continuavam ao redor, instigando
renovados desejos. A família, e digo de maneira mais específica, os pais, os
irmãos, os sobrinhos, estavam sempre no lugar que sabíamos onde os encontrar. E
assim forjamos uma existência estimulante, que nos permitia avançar enquanto
acumulávamos bons momentos. Disso resultou que a memória de nossas ações fosse
paulatinamente se sobrepondo.
Não sei dizer exatamente quando isso passou a me
cativar, talvez naqueles primeiros cafés com amigos que deixávamos, pelas
injunções da vida, de ver regularmente. Nesses encontros gostávamos de nos
trair, promovendo o futuro em forma de recordações mais e mais inalcançáveis,
Penso que pouco depois foi o corpo, em sua fragilidade ontológica, a cobrar
menos movimentos, mais esforços imaginosos, para lembrar ou para realizar. Um
bom amigo anunciou-me, em voz vinda do fundo da alma, que a vida nos tinha
contemplado com muitas flores, que agora começariam a ser levadas. Estávamos em
um desses cafés, após o enterro de sua mãe, e aquelas palavras me pareceram
mais um ato de coragem do que um lamento para o futuro.
Deixávamos aos poucos de sermos testemunhas de um
tempo infinito, sem saber exatamente o que sobreviria. Os alegres encontros
foram rareando, os silêncios tornaram-se mais inquietos ao redor, como se aos
poucos as novas experiências dos novos agentes sociais que compunham os novos
tempos soprassem seus ritmos, novas harmonias, outros comportamentos. No lugar
das esperanças, novas dores causadas por trágicos desenlaces, ou tão somente
pelo sibilino movimento do tempo. Dos meus tempos sem lei, onde tudo valia e
conseguíamos sobreviver com o improviso no peito, me acudia uma estranha
certeza, a de que não permaneceria mais tempo que as pessoas que amava, e mais
tarde, aos meus alunos e aos meus leitores.
Entrar nesse túnel encantado que nos remete a um
destino impreciso, já sem forças para nos remir de uma espécie de sonambulismo
cotidiano, me fez sentir o drama da vida com mais vivacidade. Do meu reduto, só
consegui sinalizar para um ou outro vivente que as contas seguiam em dia, que
meus novos escritos poderiam ser concluídos. Isso significou uma espécie de
contínuo inventário, a ser lavrado em vida, com a consciência ainda intacta
acerca do mundo ao redor. Eu e minhas tarefas, nada além de um réquiem, o qual me esforço para eu mesmo
terminá-lo. Incapaz de viver novas aventuras, crio novas aventuras. Tive a
oportunidade de contar ao meu irmão, Hernán, um derradeiro segredo de nossa mãe
e que lhe dizia respeito. Ele chorou como uma criança abandonada no meio de um
parque de diversões. Percebo que, além de criar aventuras, posso rememorar
surpresas recônditas, com algum amigo ou ex-aluno, ou mesmo um antigo leitor
sobrevivente, isso, quando houver interesse. O estilo das narrativas passadas não se encaixa no
novo presente, e os afetos tão bem preservados se diluem, como as sombras do
entardecer.
O certo é que prevaleço em um mundo estranho, que me desperta curiosidade. Não são apenas as luzes de neon das naves que se aproximam, mas também me enternece a vassoura que recolhe pausadamente as folhas mortas no terraço vizinho, conduzida por um homem vagaroso que não tem pressa em terminar, mas recolher o disperso com cuidado. A sonoridade dos gestos contínuos e sem fim me remete ao murmúrio de minha mãe quando me punha a dormir. Hoje, acomodo-me com as leituras de Graciliano, de Clarice, elas passaram a fazer sentido para mim,
isso quando posso recuperar o contexto de cada escritura, os objetos, os costumes,
as expressões idiomáticas... enquanto presencio polêmicas sobre linhas de impedimento eletrônicas, ou tento compreender onde começa e como termina o discurso xenófobo. Acompanho as narrativas desoladas de novos
escritores, felizes com seus personagens fugidios e com a publicidade midiática, e quando cito os labores
geniosos de um Garrincha, as experimentações de um Coltrane ou a ternura poética de um Benedetti, percebo que descrevo
uma outra linha de tempo, um mundo paralelo superado pelo arrojo das máquinas digitais e pelo
valor intrínseco do indivíduo, em seu móvel pelo individualismo.
Sobrevivi a todos os que não esperava sobreviver e
agora me resta a consciência de mundo, o que não me entristece, ao contrário,
me anima em permanecer, como imprescindível fosse descrever as memórias de
casa, as loucuras de meus amigos, as partidas de buraco, os debates políticos
ao redor da mesa, os fracassos, os estorvos, a inclemência, as singelezas em se
caminhar para o horizonte desconhecido, demarcado pela força da utopia humana,
que não se perde e sempre nos fascina.
(Dedicado a E. M.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário