29 janeiro 2022

O senhor Gastón

 

Cracóvia, 1994
 

Sem nenhum traço de sombra ou tristeza,

A vida significa o que ela sempre significou.

Santo Agostinho

 

Fomos testemunhas de um tempo que nos parecia infinito. Vivíamos situações em que desfrutávamos os prazeres ou sofríamos as consequências. Não nos incomodávamos com as dores prolongadas, sabíamos muitas coisas sobre como superá-las, e então nos envolvíamos em novas aventuras repletas de reticências, bebíamos nas mesas dos bares que curtíamos, acompanhados ou não, frequentávamos os cinemas alternativos com seus filmes da nouvelle vague ou do realismo russo, e assim seguíamos a vida, irreverentes, irresponsáveis, apaixonados. 

Comecei a desconfiar das armadilhas do destino ao ver que sobrevivíamos ao passar dos anos. Sobrevivíamos relativamente intactos, com algum problema financeiro a resolver, com essa ou aquela nova tarefa no trabalho, com as comemorações mais frequentes do que os infortúnios gerados por doenças ou mortes. Os amigos, os bons amigos, continuavam ao redor, instigando renovados desejos. A família, e digo de maneira mais específica, os pais, os irmãos, os sobrinhos, estavam sempre no lugar que sabíamos onde os encontrar. E assim forjamos uma existência estimulante, que nos permitia avançar enquanto acumulávamos bons momentos. Disso resultou que a memória de nossas ações fosse paulatinamente se sobrepondo. 

Não sei dizer exatamente quando isso passou a me cativar, talvez naqueles primeiros cafés com amigos que deixávamos, pelas injunções da vida, de ver regularmente. Nesses encontros gostávamos de nos trair, promovendo o futuro em forma de recordações mais e mais inalcançáveis, Penso que pouco depois foi o corpo, em sua fragilidade ontológica, a cobrar menos movimentos, mais esforços imaginosos, para lembrar ou para realizar. Um bom amigo anunciou-me, em voz vinda do fundo da alma, que a vida nos tinha contemplado com muitas flores, que agora começariam a ser levadas. Estávamos em um desses cafés, após o enterro de sua mãe, e aquelas palavras me pareceram mais um ato de coragem do que um lamento para o futuro. 

Deixávamos aos poucos de sermos testemunhas de um tempo infinito, sem saber exatamente o que sobreviria. Os alegres encontros foram rareando, os silêncios tornaram-se mais inquietos ao redor, como se aos poucos as novas experiências dos novos agentes sociais que compunham os novos tempos soprassem seus ritmos, novas harmonias, outros comportamentos. No lugar das esperanças, novas dores causadas por trágicos desenlaces, ou tão somente pelo sibilino movimento do tempo. Dos meus tempos sem lei, onde tudo valia e conseguíamos sobreviver com o improviso no peito, me acudia uma estranha certeza, a de que não permaneceria mais tempo que as pessoas que amava, e mais tarde, aos meus alunos e aos meus leitores.

Entrar nesse túnel encantado que nos remete a um destino impreciso, já sem forças para nos remir de uma espécie de sonambulismo cotidiano, me fez sentir o drama da vida com mais vivacidade. Do meu reduto, só consegui sinalizar para um ou outro vivente que as contas seguiam em dia, que meus novos escritos poderiam ser concluídos. Isso significou uma espécie de contínuo inventário, a ser lavrado em vida, com a consciência ainda intacta acerca do mundo ao redor. Eu e minhas tarefas, nada além de um réquiem, o qual me esforço para eu mesmo terminá-lo. Incapaz de viver novas aventuras, crio novas aventuras. Tive a oportunidade de contar ao meu irmão, Hernán, um derradeiro segredo de nossa mãe e que lhe dizia respeito. Ele chorou como uma criança abandonada no meio de um parque de diversões. Percebo que, além de criar aventuras, posso rememorar surpresas recônditas, com algum amigo ou ex-aluno, ou mesmo um antigo leitor sobrevivente, isso, quando houver interesse. O estilo das narrativas passadas não se encaixa no novo presente, e os afetos tão bem preservados se diluem, como as sombras do entardecer. 

O certo é que prevaleço em um mundo estranho, que me desperta curiosidade. Não são apenas as luzes de neon das naves que se aproximam, mas também me enternece a vassoura que recolhe pausadamente as folhas mortas no terraço vizinho, conduzida por um homem vagaroso que não tem pressa em terminar, mas recolher o disperso com cuidado. A sonoridade dos gestos contínuos e sem fim me remete ao murmúrio de minha mãe quando me punha a dormir. Hoje, acomodo-me com as leituras de Graciliano, de Clarice, elas passaram a fazer sentido para mim, isso quando posso recuperar o contexto de cada escritura, os objetos, os costumes, as expressões idiomáticas... enquanto presencio polêmicas sobre linhas de impedimento eletrônicas, ou tento compreender onde começa e como termina o discurso xenófobo. Acompanho as narrativas desoladas de novos escritores, felizes com seus personagens fugidios e com a publicidade midiática, e quando cito os labores geniosos de um Garrincha, as experimentações de um Coltrane ou a ternura poética de um Benedetti, percebo que descrevo uma outra linha de tempo, um mundo paralelo superado pelo arrojo das máquinas digitais e pelo valor intrínseco do indivíduo, em seu móvel pelo individualismo.

Sobrevivi a todos os que não esperava sobreviver e agora me resta a consciência de mundo, o que não me entristece, ao contrário, me anima em permanecer, como imprescindível fosse descrever as memórias de casa, as loucuras de meus amigos, as partidas de buraco, os debates políticos ao redor da mesa, os fracassos, os estorvos, a inclemência, as singelezas em se caminhar para o horizonte desconhecido, demarcado pela força da utopia humana, que não se perde e sempre nos fascina.

(Dedicado a E. M.)



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