02 janeiro 2022

Instruções a John Howell

 



Chego ao final da leitura de Instruções a John Howell, depois de oito meses. Aguardava minha vez de tomar a primeira dose da vacina contra o Covid-19 e a demora foi de tal ordem que alcancei ler dois terços do conto, até o momento em que Rice foi expulso do teatro, sem concluir sua estranha atuação como John Howell. A partir daí ocorre uma ruptura no ritmo e nas circunstâncias da narrativa: ela se acelera – e isso literalmente, Rice se espreita em fuga pelos becos escuros de Londres – e ao abandonar o palco do teatro, o que não significa o fim da ficção, ele ganha o palco do espaço urbano, sem que alcance o retorno para a vida cotidiana. Para Rice, há um mistério inicial ao receber um convite inapropriado para assumir um papel na peça que desejava apenas assistir como espectador, e um drama inusitado ao final, quando aparentemente procura escapar pela vida. O jogo de espelhos ao final se estabelece, mais precisamente, onde começa e termina o jogo da representação? A princípio, pareceu um tanto fortuito o complemento do conto, ou melhor dito, sua resolução em uma chave distinta dos caminhos paulatinamente elaborados das narrativas de Cortázar, onde os planos simultâneos da vida se desvelam com o desdobramento dos impasses. Estabelece-se uma espécie de círculo vicioso: John Howell, o personagem "alternativo" da peça, experimenta uma tensão progressiva que o atravessa e atinge o cidadão Rice, que por sua vez não se desvencilha das dúvidas que perseguem seu personagem, John Howell. A ousadia e o improviso que alimentam a representação de Rice culminam em seu esforço pela sobrevivência, e aqui, o absurdo da situação, o risco do crime que se visualiza na peça se estende para a vida real, no universo do espaço urbano. Sobrevém a sutil composição de planos que insinua o jogo de artimanhas, de onde não se pode eludir. Comme d’habitude em Cortázar, a conclusão não é dada de maneira fácil, isso para não dizer que está longe de ser uma conclusão.

Que seja bem-vindo o ano de 2022, em cujo horizonte se prenuncia muita luta e importantes conquistas!

(atualizado em 04.01.2022)



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