11 janeiro 2022

As ternas memórias de Julio Escobar


Zurique, 1989

O final de semana foi no casarão de meus pais, uma curta e tranquila estada como costuma ser. Tenho especial predileção pelo meu quartinho, na parte de cima, nos fundos, onde aproveito o silêncio de uma vizinhança inexistente e das árvores, onde durante as chuvas ouço o estalido da água caindo nas folhagens, e pelas manhãs, a cantoria dos pássaros itinerantes. A casa está envelhecida, assim como meus pais. Lembro-me vagamente do tempo de sua construção, que levou quase um ano inteiro, com caminhões trazendo terra para nivelar a inclinação natural do solo e materiais diversos para a edificação. Longe de ter orgulho daquela mansão, eu na verdade odiava sua imponência, que transformava a pacata rua em um lugar de desigualdade e de cismas. Acabamos nos distanciando dos vizinhos mais simples e menos ambiciosos, o que aprofundava meu desejo de revolta, de ruptura com os padrões sociais capitalistas e sei que por anos a fio alimentei os impulsos de desaparecer. De fato, por dois anos, estive longe, nas selvas erráticas da província, trabalhando para uma empresa de crédito, acumulando recursos e coragem para um ato revolucionário, do qual não fazia a menor ideia. Os textos de Guevara e Camilo Torres me inspiravam, enquanto me distanciavam de alguma atitude consistente. Regressei e passei a aceitar o casarão e suas circunstâncias. 

Hoje, estar ao lado de meu velho pai tem sido uma experiência serena, já que na maior parte do tempo ele mantém o silêncio dos sábios, alternando um olhar distanciado e o cochilo em sua poltrona. Desperta pouco antes do jantar e quando está lúcido, faz observações breves, nem sempre relacionadas com o tema da conversa ou do que eventualmente pensa. A grande sala, imersa em sua penumbra permanente, o auxilia a manter-se tranquilo, olhando para a enorme vidraça que o separa da vegetação abandonada. Seus momentos de confusão mental são menores e menos persistentes. Fisicamente, de um modo geral está muito saudável, porém cada vez mais se distancia da realidade. São raras as vezes em que aceita caminhar pela rua de terra, descendo no sentido do clube hípico, onde podemos por uns momentos ver os cavalariços circulando pelo imenso campo de polo, gramado onde, quando criança, brincava de futebol. Logo se cansa e fazemos o caminho de volta, quando lhe pergunto sobre as poucas casas e os antigos vizinhos, que não mais existem na vida real e em sua memória. 

Já não identifica por si seus primos-irmãos, ou mesmo o retrato de sua mãe, pendurado à entrada da copa. A mim, se confunde regularmente, mas há momentos em que me chama por meu nome, Baltazar, me diga... Normalmente sua pergunta não tem muito a ver com o momento, então invento uma resposta, procurando acrescentar alguma ação para atrair seu interesse, que se dissipa novamente pela paisagem através da vidraça. Minha mãe é o seu oposto, com boa memória e decidida nos atos, embora com o corpo fragilizado, castigado pelas vicissitudes de uma longa vida dedicada ao trabalho da casa e à família. Suas dores nas pernas não a impedem de se mover, e isso, apenas isso, mantém a vida do casarão, onde luz e sombras revelam a precariedade esmaecida dos quadros, das fotografias, dos objetos. Vida que se equilibra por um fio. Desse modo, a cada visita que faço à casa e fico na companhia deles, procuro extrair o máximo, conversando sobre o cotidiano, sobre as memórias familiares, sobre as coisas... 

Despertam vagarosamente para a jornada diária, por volta das 3 da tarde. Ercília, a ajudante de minha mãe desde sempre, também se arrasta na organização do café da manhã. Meus pais descem do quarto rezando o pai nosso e abrem um sorriso quando me veem, na entrada da copa. Comemos e conversamos, tomam as infindáveis medicações e então reconduzo meu pai para a grande sala de cima, em sua poltrona, diante da televisão e da imensa vidraça. Retornamos para o jantar, por volta das 8 da noite. As comidinhas preparadas por minha mãe mobilizam as lembranças do que comíamos na infância, arroz, feijão, salada, e sempre uma sobremesa surpresa, um doce de goiaba ou de abóbora, e do lugar onde éramos mais felizes, na casa geminada em frente. O tempo escorre pelos dedos das mãos, e quando fico sozinho na sala de baixo, lendo ou rabiscando ideias para um novo conto, não deixo de apreciar a suntuosa espacialidade com as mesinhas carregadas de delicados ornamentos, os móveis limpos, a estante ao fundo com as bebidas, a tapeçaria acumulada ao longo dos últimos 40 anos. Uma época se dissipa, e com ela, seus atores. A perda de minha mãe será muito mais significativa que a de meu pai, que, nestes anos todos, mal teve interesse em conhecer os hábitos da casa. Mamãe organizou tudo aquilo com zelo, emprestando muitas vezes o carinho que dedicou a nossa formação. Hoje, sua destreza prejudicada não a impede de arrumar cada peça do que se tornou um desolado casarão. Gosta de repetir, entre uma conversa e outra, que A vida é bela... sem outras adjetivações, querendo dizer com isso que, mesmo não sendo bela, a vida deve ser vivida até o fim. Uma amarga sensação me envolve, pois também sinto um vento frio soprar junto com essas palavras. E então constato que a casa não resistirá a metade dos anos que já durou. 

Nesse sentido, fico feliz em ver que eu e meus cinco irmãos nos arranjamos bem em nossas vidas, com o amor solene e muitas vezes distante de nossos pais, com a frieza daquele casarão. A existência longeva de meus pais é desfrutada de maneira pacata e serena, nada mais contraditório que a suntuosidade decadente da isolada mansão de concreto, e em nossa memória, reproduzimos os aprendizados que, bem ou mal, recebemos. Em poucos dias completarei meus 73 anos e também não me restará muito mais tempo. Seja lá como for, realizamos uma bonita aventura, que neste momento, está muito atenta ao presente. 



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