30 maio 2021

Mortos sem sepultura

 

Ahora juguemos a desaparecer, Carlos Garaicoa


Por que você se preocupa com esses homens? Em seis meses eles serão enterrados em um porão e a primeira granada lançada através de uma claraboia porá fim a toda essa história. É todo o resto que conta. O mundo e o que você faz no mundo, os companheiros e o que você faz por eles.

Canoris, em Mortos sem sepultura (Jean-Paul Sartre).


Na tarde deste domingo nublado de outono, me detenho e penso, enquanto preparo o café, como foi bom ter trabalhado os conceitos de sociologia antes da vigência dessa pasmaceira toda, que paralisa e destroça moralmente o país. Não suportaria estudar Milton Santos, Celso Furtado ou Sérgio Buarque de Holanda com meus alunos, conhecendo a vil opressão intelectual que predomina, sem caminhos viáveis para escapar das profundezas desse precipício abismal que nos bordeja. 

Se existia uma justificada alegria em estudá-los antes, era porque podíamos ir e vir nas ideias, acreditando que de algum modo um outro mundo era possível. Havia uma complexa esperança ao ler nossos intelectuais, ao estudarmos nosso passado para avançarmos ao futuro. Havia uma tola crença de que podíamos superar as mazelas produzidas pelo escravismo, pela violência das ditaduras e dos coronéis. Terminávamos as aulas e conseguíamos refletir sobre uma consciência crítica que nos posicionava diante das dificuldades de cada dia.

Os negacionistas hipócritas que tomaram o poder se assemelham em perversidade aos colaboradores da peça Mortos sem sepultura, de Jean-Paul Sartre. Agora que tomaram o proscênio agora circulam como heróis. São em grande parte uns canalhas, servem ao ocupante estrangeiro, e no caso presente, são articulados com o grande capital, que está aí para financiar a confusão civilizatória. 

Os Clochets, Landrieus e Pellerins circulam em meio a banqueiros, magnatas, empresários, milicianos, que recebem e pagam para destruir projetos autóctones, para desinformar, para desestabilizar. Recuperam a autoridade do capitão do mato, e o que é pior, com uma função social devidamente reconhecida. Uma vez subordinados no infindável desejo por dinheiro e poder, as Lucies, os Canoris, os Henris perdemos paulatinamente qualquer constrangimento para abandonar os valiosos segredos históricos de nossa resistência, para naturalizarmos a miserabilidade de uma nação de joelhos. 

A doutrina da especulação destroça o conhecimento e remunera os tolos de vida breve: os zumbis que sobrevivem ganhando hoje um punhado de dólares a mais, cumprindo tarefas anunciadas como empreendedorismo, amanhã estarão abandonados à beira da estrada, sem uma lembrança honrosa a preservar. 

Quanto mais avançamos para o futuro, mais vemos o quanto nos distanciamos das distopias românticas de Wells ou Verne, para enveredar na lúgubre pedagogia bancária das corporações, de onde não há imaginação, nem tampouco regresso. 

(atualizado em 01.06.2021)



27 maio 2021

Y así caminamos

 



PASIÓN

(para Moniquita)


Por qué se que te amo?

por verte soñar los vuelos

de pájaros de presa con sus colores

encendidos por tu pecho laborioso


Por qué se que te amo?

Porque miro tus ojos de topacio

solemnes, brillantes, que hablan

por tu apacible respiración


Y así cobierto por esa manta

de fragancias que escuchan y acogen

el profundo azul del otoño


Tu mirada amable se vuelve puro afecto 

que se pone con las delicadas manos

a manejar nuestro barco bajo la luna llena.



24 maio 2021

A revolução chilena

 

O Chile que renasce com a nova constituição

As forças populares obtiveram uma vitória espetacular nas eleições para a Assembleia Constituinte, que emociona por seu peso histórico. E começa, bom que se frise, com a contundente derrota da direita, ou podemos dizer, do ranço pinochetista, que obteve apenas 37 das 155 cadeiras, menos de um terço dos votos. Nas eleições municipais, realizadas concomitantemente, perdeu em Santiago para a candidata do Partido Comunista, o que sinaliza que colherá nova derrota, agora nas eleições presidenciais no final deste ano. 

Alvíssaras! Poucos acontecimentos na política latino-americana poderiam ser tão generosos! Ainda me recordo do mal-estar de minha primeira visita ao Chile, três meses depois do plebiscito de 1988 em que o NO venceu com boa margem e decretou o fim da ditadura de Pinochet. Ainda era possível tropeçar em militares à paisana, como foi o meu caso, defendendo com energia o ditador. Seu fim apenas decretou o início de uma suave e pouco transformadora transição política. A vitória não seria coroada, ao longo dos trinta anos seguintes, com a efetiva presença no poder das forças populares. O pacto da governabilidade, a chamada concertación, optou por não restabelecer um estado efetivamente voltado para o bem-estar social, em que os direitos sociais, o acesso gratuito ao ensino, uma aposentadoria digna, fossem de fato restituídos.  

O mais espetacular talvez tenha sido a vitória dos movimentos que, há dois anos, convulsionaram o país. De lá para cá, fizeram o que muitos duvidavam, se organizaram ainda mais, com vistas à Assembleia Constituinte. Os candidatos independentes, a maioria progressista, conseguiram 48 cadeiras, tornando-se a principal força, enquanto 17 cadeiras foram conquistadas por representantes dos povos indígenas. Esses números indicam claramente um ponto final a esse Chile de linhagem pinochetista. Mesmo em minha última viagem ao país, em 2008, a presença do neoliberalismo urgia em cada canto - uma forte desigualdade da qual não eu desconhecia. O que senti foi uma situação estranha, a percepção de uma liberdade claramente restringida pela rudeza do sistema econômico, claramente desfavorável à população.

Agora se nota claramente uma mudança completa no astral político do país. Torço muito para que o Chile retome e mesmo ultrapasse a beleza e a participação da Unidade Popular, há cinquenta anos. Em um aspecto os progressistas de hoje levam vantagem: demoliram cabalmente a estrutura granítica de uma direita retrógrada, que sempre esteve presente e que, desde Pinochet, não deixou de ser dominante. Viva o Chile!!

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Em duas semanas, as eleições presidenciais do Peru, cujas pesquisas apontam a vitória do candidato de esquerda, o professor Pedro Castillo. Não sei o que isso pode significar, pois outras candidaturas mais à esquerda no passado naufragaram diante do poder econômico. De todo modo, sua vitória significa a derrota de Keiko Fujimori, esta sim, uma autêntica representante da direita mais conservadora e autoritária. 

Aguardemos.



17 maio 2021

Sobre um outro mundo possível

O aprendizado em algum recanto dos Andes

Só existe uma forma deste pérfido sistema distorcido da moral oportunista prevalecer sobre a vontade da população: pela deliberada e concatenada difusão da mentira, aliado ao imenso poder do capital financeiro. De outra maneira, como é possível conceber o aumento exponencial da miséria geral em favor da multiplicação da fortuna de uns tantos bilionários? Como é possível tolerar semelhante aprofundamento das desigualdades sem o concurso da violência dos órgãos de segurança? Como é possível suportar a disseminação da mentira pelo conjunto da mídia corporativa, agora respaldada pela mediosfera de grupos radicais de direita? São evidentes os sinais do descaso de governos peleles, capitães do mato impostos por um regime supranacional não democrático, que administram como feitores a exploração neocolonial do orçamento público.
  
Simultaneamente o homem comum se distancia da democracia, do Estado de direito, à medida que essa miséria institucionalizada avança. Daí a proliferação dos canalhas morais, os acima denominados capitães do mato. São os aditivos do sistema exploratório. Sem eles, os senhores do capital não teriam os tentáculos que penetram e esgarçam o bem-estar social. Falo desses pequenos governantes que espocam aqui, ali, em nossa Latinoamerica, Macri, Lênin Moreno, Jeanine Áñez, Bolsonaro, aprendizes subservientes sob o comando de corporações e poderes supranacionais. De um ponto de vista mais abrangente, como nos diz Wolfgang Streek em seu denso ensaio econômico Tempo Comprado - a crise adiada do capitalismo democrático: A utopia da gestão atual da crise também consiste na conclusão - por meios políticos - da já muito avançada despolitização da economia política, cimentada em Estados nacionais reorganizados sob o controle de uma diplomacia governamental e financeira internacional isolada da participação democrática (...).

Simplificando, a presença dos tentáculos do capital financeiro em todos os domínios da vida cotidiana nos alijou do poder de decisão, e nossa capacidade de sobrevivência - falo do ponto de vista da população como um todo - passa pelos desígnios de uma burocracia de intermediários. A face visível desse autoritarismo do capital, comandada pelos estafetas de sua confiança, atua na cooptação de corações e mentes do homem comum. Nesse processo, estão amparados pelo controle da informação. E a produção da mentira surge como elemento mediador de um mundo paralelo, criado para extirpar o conhecimento científico. Trata-se de sepultar a serenidade, ou o desejo sincero de uma realidade justa e democrática.

O mundo torna-se a passos largos em um grande mercado de oportunidades exploradas a ferro e fogo, onde competir, subornar, especular, eliminar, são expressões corriqueiras, utilizadas em gradações específicas e definidas pelos agentes que controlam o campo econômico, algo absolutamente compatível com a moral desejada em um capitalismo sem regulação. Ainda nas palavras de Streek, a solução consiste em integrar (a democracia dos Estados nacionais) num regime supranacional não democrático - uma espécie de super-Estado internacional sem democracia, (...) (eliminando-se) a soberania nacional enquanto um dos últimos bastiões da aleatoriedade política numa sociedade de mercado integrada internacionalmente.

(Por outro lado, atente para a áspera beleza da imagem acima. Seu significado nos diz muito de nossos verdadeiros sentimentos, onde se situam a crença infatigável de que um outro mundo é possível).

(atualizado em 17.05.2021).



15 maio 2021

Terra Devastada, a peça

 

A propósito do drama palestino

O sol retorna, um pouco tímido entre nuvens passageiras, Moniquinha tomou a primeira dose da AstraZeneca, a mesma que tomei há uma semana, anteontem uma pesquisa acachapante do Datafolha coloca Lula com 55% contra o capitão desgovernado, que soma 32%. Ouço um saboroso mix de Pet Shop Boys, quem diria, música efervescente, alegre, para comemorar as boas notícias, em uma paisagem de destruição social e econômica. Destruição que ocorre neste momento em Gaza, mais de 100 mortos em poucos dias de intenso bombardeio israelense, o horror de volta. Essa tragédia me convoca a prosseguir e quem sabe concluir minha peça em dois atos, Terra Devastada, sobre o martírio da Palestina.

Vou e volto com esta peça, que originalmente possuía um ato e não passava de meia dúzia de páginas. Agora ela tem esse projeto de crescer para o tempo atual, que parece relatar mais do mesmo, violência e destruição contra o povo palestino. Lá atrás, quando saiu, foi vencedora de concurso, e já há algum tempo tento dar a continuidade natural, baseada no personagem Hassan, fio condutor entre dois tempos, dois acontecimentos trágicos, Sabra e Shatila, nos acampamentos palestinos em Beirute em 1982, e o ataque de 2014 a Gaza, a operação Chumbo Fundido. 

O problema é que a cada vez que a retomo tenho uma ideia de organização e continuidade. Recentemente optei por acrescentar as designações em árabe para os termos referentes à cultura palestina. A peça em 1986, apenas um ato quando concluí a primeira versão, era exageradamente “ocidental”; agora, um pouco mais extensa, com a inclusão do indispensável segundo ato, se vincula mais a um contexto palestino, ou pelo menos me esforcei nesse sentido, ao pesquisar a realidade cultural palestina.

Neste momento do desenvolvimento, procuro escrever um roteiro consistente para o segundo ato e ao fazê-lo, inevitavelmente tenho de reorganizar o primeiro. Por exemplo, a peça ganha a introdução nos dois atos de uma dança típica palestina, o dabke, quase uma peça dentro da peça, onde um kawil masculino inicia uma dança que longo envolve os personagens do primeiro ato enquanto declama a poesia de Mahmud Darwish, enquanto uma kawil declama Fadwa Tuqan com os personagens do segundo ato.  

Surgirá uma dificuldade aqui, em adaptar a poesia a uma dança, com os próprios personagens, que ao final se dispersam para a coxia ou para seus lugares no palco, um exercício de distanciamento brechtiano. Em um momento anterior, uma voz narrará os contextos das situações históricas vivenciadas em cada ato. Há um projeto em definir cenas em dois planos, a dança gradativamente tomando lugar no fundo obscurecido até desaparecer, enquanto a peça passa em primeiro plano.

O primeiro ato está concluído; já produzi duas laudas de roteiro para a escrita da segunda parte. Falta abandonar a preguiça crônica que me domina desses dias, semanas e meses.


A primavera que foi, Ismail Shammout, 1966



10 maio 2021

Terruquear

 

Pedro Castillo

Em um artigo publicado há mais de três anos na revista da Universidade de Piura, Peru, a docente Nelly Trelles Castro analisou o neologismo que ganhava as manchetes midiáticas e dessa maneira nomeou seu texto, Terruquear, terruqueo, terruqueadores. Em longa análise, trouxe as referências onde o termo aparecia e as analisou detidamente. Teria sido Gabriela Wiener, colunista do diário La República, quem o utilizava pela primeira vez para denunciar o terrorismo praticado por atos e palavras de censura do governo, El terruquear viene fuerte desde este gobierno, que es igual de trucho que sus métodos (...). 

O neologismo verbal logo ganhou seus derivativos substantivos, terruqueo, terruqueadores, sendo assimilada rapidamente nos comentários políticos, denotando um sentido de prática terrorista. Segundo Nelly, no contexto sociopolítico peruano, terruquear (...) resulta el más adecuado para referirse a políticos, periodistas e ignorantes del arte, que consideran terroristas a personas, acciones, etc, que no son.

O termo, por sua vez, parece decorrer de uma palavra de uso coloquial no Peru, terruco. Ainda conforme o artigo de Castro, no dicionário de peruanismos DiPerú, de 2015, terruco significa persona que pertenece a un movimiento terrorista o practica actos de terrorismo, e sabemos que a experiência do Sendero Luminoso nos anos 1980 foi suficientemente poderosa para permanecer nas mentes e no léxico peruano uma compreensão indelével e muitas vezes distorcida sobre quem é, de fato, o agente do terrorismo.

Tudo isso para falar sobre a campanha eleitoral para a presidência no Peru, a trinta dias do segundo turno, que entra em sua reta final. Os embates são cada vez mais açodados, transformando-se em uma luta feroz - e muitas vezes sob argumentos falaciosos - pelo poder. De um lado o poder corporativo se une em torno do autoritarismo conservador de Keiko Fujimori como sendo a última barricada em defesa da democracia, e de outro, o forte movimento esquerdista de Pedro Castillo, que aglutina as massas populares, principalmente fora de Lima. 

A primeira aprofundará as reformas neoliberais no país, sob as bênçãos do capital financeiro, acentuando um autoritarismo de direita, a exemplo do que foi o governo de seu pai, Alberto Fujimori. Talvez, por trás de sua carinha quase angelical, seu governo tenha capacidade de ser muito mais cruel que o do pai, muito mais trágico e sem o desfecho policial, pois é notória a penetração da prática do lawfare nas instituições jurídicas de nossa Latinoamerica nos últimos sete ou oito anos. Cada vez mais as governanças conservadoras são atiçadas a mostrar uma cara mais brutal par agir contra os direitos constitucionais e trabalhistas da população.

De outro lado, uma proposta que promete - mas no Peru essa promessa vem de longe, e logo se dilui como água na água - transformações radicais à esquerda, com a proeminência do Estado e com a recuperação dos direitos trabalhistas. Sua base de apoio é poderosa, vem das comunidades tradicionais e populares do interior do país, do altiplano, organizadas politicamente em defesa da Pachamama. Uma candidatura com raiz, com expressividade, mas fragilmente exposta, se considerarmos as armas políticas que têm jogado (sujo) nos últimos anos. 

A mentira e a ameaça dos grupos de direita se estruturam sob forte apoio financeiro, cooptando corações e mentes pelo medo, fundadas sob alegações muitas vezes caluniosas, impondo o terrorismo aberto contra o perigo comunista, e para isso agem sem qualquer sanção jurídica, criando uma nebulosa "terra de ninguém", onde todos são potencialmente ameaçados.

Então fica claro compreender a profundidade e a extensão do neologismo peruano terruquear