Lula strikes again! |
"E que, por coragem de prova, estava disposto a se apresentar, desarmado, ali perante, dar a fé de vir, pessoalmente, para declarar sua forte falta de culpa, caso tivessem lealdade."
Guimarães Rosa
Bastou a decisão isolada de um ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, anular as condenações de Lula, e no dia seguinte, um forte e inspirado discurso do próprio Lula, para o quadro política sair do marasmo controlado pelos desmandos do capitão e contagiar em emoção toda a sociedade. São esses estranhos casos brasileiros em que as revoluções ou os meros aquecimentos de alguma coisa mais séria prescindem da presença popular, definindo-se em salas ou corredores do poder.
Em 1954 o caldo político entornou não nas ruas, mas nos gabinetes militares, o que imobilizou o executivo, criou a República do Galeão e condenou Vargas ao suicídio, solitário no Catete. Dez anos depois foi o gesto tresloucado de um general em Juiz de Fora que desencadeou o que por um tempo se denominou 'revolução redentora', e que hoje conhecemos como golpe cívico-militar de 1964. A resistência heroica se contava na pena dos intelectuais e na brava luta dos estudantes, que mesmo quando guerrilheiros não alcançaram o apoio popular.
Cinquenta anos mais tarde Dilma e o governo de base social do PT cairia praticamente sem qualquer oposição nas ruas, a contrapartida esperada das mobilizações de sindicatos e agremiações, o que abriu caminho para o exercício de tiro ao pato manco proporcionado pelo crescente desvario do lawfare de Moro e seus procuradores de Curitiba, com as bênçãos da mídia corporativa, neopentecostais e outros setores conservadores.
Agora, duas manifestações de caráter distinto e isolado, produziram a efervescência política que deve perdurar até outubro de 2022. A esquerda adormecida, os obstáculos da pandemia, o silêncio subserviente das instâncias jurídicas possibilitaram que os gestos escabrosos da desgovernança federal prevalecessem de maneira dolorosa. A revolta parecia conter-se no silêncio indignado e de uma certa esperança mítica que não se vislumbrava no horizonte. Não havia cavaleiros intrépidos com bandeiras pela revolução, nem políticos audazes organizando do parlamento movimentos de resistência.
O que aconteceu foi um juiz tomar uma decisão que tardou pelo menos três anos e um político mais do que carismático assumir o proscênio de um sindicato, ambos iluminados por convenientes luzes vindas dos mais diversos setores sociais. A mídia corporativa regurgitou, aquele movimento do bebê que depois de saciar a fome, dá um soluço esperado. Esse soluço me parece sugestivo, a chance animar as plateias com novas variantes de estratégia conservadora.
Lula, sem a condenação nas costas surge, como uma liderança para enfrentar a hegemonia do obscurantismo político. Os primeiros posicionamentos do maior conglomerado midiático desse país foram surpreendentemente simpáticos ao reaparecimento de Lula. Destacaram sua fala de estadista, seu esforço conciliatório, o desejo de elaborar um plano de ataque à pandemia e à recuperação econômica. É impressionante como o comportamento camaleônico pode ser demoníaco - como foi quando apoiaram veladamente o capitão desnaturado nas eleições de 2018 - e estranhamente generoso - como agora nessa cruzada contra o capitão desnaturado.
Acrescente-se ao desespero brasileiro as mais de duas mil mortes diárias pela Covid-19, ultrapassando os 270 mil mortos, com mais de 11.200.000 casos. Os hospitais, públicos e privados, seguem superlotados, os lockdowns se multiplicam e a indignação bate à porta de todos. É nesse quadro grave da vida cívica brasileira que se insere a expectativa da decisão de um juiz e a fala de um político. Não foi preciso um tiro, uma manifestação com quebra-quebra, para que um ânimo inusitado despontasse no seio da sociedade. Como ontem, em meio às compras no supermercado deparo com um jovem empregado empurrando um carrinho de frutas e falando ao celular, voz atenta, "O Lula ainda está falando?" E logo abriu um sorriso e completou, "que bom, que bom...". Esta cena simples me permitiu algumas saudáveis considerações com meus botões.
Talvez a relação do governo do capitão desventurado com o conto de Guimarães Rosa, Os irmãos Dagobé, seja muito oportuna. São "gente que não prestava", mas a morte do Damastor possivelmente faça com que os demais irmãos "sorriam apressurados", esqueçam a vingança e partam para outra vida, por outras paragens. É a chance de uma esperança que, longe de ser revolucionária, apenas oferece a possibilidade de Liojorge colocar as coisas nos devidos lugares.
(atualizado, 12.03.2021)
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