04 março 2021

Quando a Terra se torna plana

 

Quadro do filme Linha Geral, de S. Eisenstein

Y así pasan los días por el alma,
y así en su daño, obsesionada, llora:
Cómo decir el mal que me devora,
el mal que me devora y no se calma?

Alfonsina Storni

E a Terra se torna cada vez mais plana, impressão que se tem com nitidez a partir do Brasil. Na semana que vem completa-se um ano nesse estado de coisas. Já são quase 260 mil mortes oficiais em razão do contágio pela covid-19 e ontem ultrapassamos a marca de 1.900 mortes em um único dia. O desgoverno não anuncia qualquer medida sanitária de emergência, as vacinas chegam a conta-gotas (até aqui vacinados os agentes de saúde e idosos com mais de 80 anos). Há um distanciamento inconsistente com a gravidade da situação, como se as pessoas estivessem sem um pingo de paciência para se cuidar. A população pobre segue tomando o transporte de massa porque precisa sobreviver. E também confraterniza, a exemplo da classe média, nos botecos e bares da vida, sem qualquer prevenção. O discurso canalha de que a máscara e o distanciamento não são importantes convence uma substanciosa parcela da população, que ajuda assim, a marcharmos para o despenhadeiro.

Nunca a bestialidade foi tão consagrada!! Ser idiota nesses tempos de argumentos não-científicos é o comportamento mais natural, seja em uma postagem no Facebook ou no trabalho ou no almoço de domingo com a família. Bom, sejamos francos, a idiotice já vinha cavalgando pela estrada, e era possível encontrar alguns sinais de que estava prestes a coroar-se. Lembro-me na última faculdade em que lecionei de certas atividades produzidas por professores que beiravam a plena estupidez, como os games, as gincanas, os ‘quiz’ de perguntas e respostas. Chegaram a montar uma rádio no saguão de entrada, com um professor-animador falando sem parar... Definitivamente um sinal de que as coisas, já na escola, não avançavam bem. Em meu último semestre de aula, estava com apenas quatro classes de sociologia, já antevendo o fim da disciplina na grade de aulas e meu desligamento.

A bestialidade grassa sem controle, o sujeito que entra em um estabelecimento sem máscara, ou que se nega a tomar vacina, ou que elogia os desmandos do capitão que desgoverna o país. Mas tal bestialidade não é o problema central. Ao contrário, parece ser vista sem problemas, e mesmo estimulada por um modo individualista de encarar o mundo. O Congresso paralisado, sem nenhum consenso sobre a pandemia ou qualquer outro projeto, a mídia em seu pequeno jogo dialético sobre a miséria política de cada dia, o supremo tribunal em seu imobilismo, mesmo envolto em uma montanha de provas que convalidam a revisão de sentenças. 

Nunca a alienação esteve tão legalizada nos discursos, nas conversas, no desempenho meritocrático em cada atividade profissional. Não me lembro de distanciamento tão desesperançado entre as pessoas. Nada parece mais natural do que criar falsos silogismos e bater-se por eles; nada é mais bem-vindo do que negar a pandemia e defender práticas mentirosas de prevenção, nada é mais certeiro do que afirmar que a Terra é plana. Diante desse quadro, a banalidade se instala.

(atualizado em 05.03.2021)



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