16 fevereiro 2021

Continuidade dos martírios

 

Se preciso for, organizemo-nos.

"Pobre de America Latina, los pillos y los vivos siempre juntos"

(José Abelardo Ramos)


Tudo anda assim, muito estranho e chato. Seja o futebol, que não parou e cujas análises das mesas-redondas são verdadeiros exercícios de estatística, a romper com a paciência do espectador; seja a política, com o absoluto distanciamento das análises essenciais; seja a presença constante desse capitão e seu desgoverno, que desgovernando coloca-se em plena campanha para as próximas eleições. Há um martírio que plana sobre as cabeças das gentes, expandindo uma percepção de desânimo que sufoca e impede uma esperança cívica. As vacinas surgem a conta-gotas, muito a contragosto desse desgoverno, competente apenas para disseminar a tragédia de cada dia, o imobilismo e a agressividade espúria de sua face visível. 

Uma tristeza absoluta. Uma desesperança construída pedra por pedra, canalhice por canalhice. Um punhado de gente tosca guindada ao ministério, aos postos de administração federal, incluindo o corpo militar, que com esmero realiza a destruição do frágil Estado do bem-estar social. Perdemos aos poucos as funções e os valores públicos da saúde, da educação, da cultura, perdemos o controle sobre a Amazônia e o Pantanal, perdemos a vivacidade do povo brasileiro, que se transforma em uma maçaroca que se extenua competindo no mercado, nas atividades mais abjetas como realizar serviços em tempo integral, sem mais proteção trabalhista. Surgem os modernos empreendedores, que se esfalfam para sobreviver.

Estava a organizar meus diários de anos passados, acrescentando ao final os apontamentos diários das agendas utilizadas. Foram os anos de 2018 e 2019, pois 2020 não precisou de agenda. Anos intensos, de congressos, artigos, cafés e jantares com amigos, uma vida afetiva intensa, organização e produção de textos enviados para concursos, para meus editores... Um tempo de convívio urbano, ainda que sob o horror dos caminhos políticos, que penetraram as frestas e como ervas daninhas, foram destroçando a vida política. 

A grande orquestração destrutiva veio como ordem das corporações, dos departamentos de justiça do exterior, com a finalidade de conceber a terra arrasada, o regresso à submissão alienada. Em 2018 iniciei minha transferência da vida ativa para uma espécie de aposentadoria compulsória, e nesse processo, vi as disciplinas em que atuava, Sociologia, Antropologia, Teorias Sociais, perderem espaço na educação, ou serem completamente alijadas. O empobrecimento do pensamento crítico já era sentido antes, quando em minhas visitas à outrora grandiosa livraria Cultura encontrava, nas estantes de Relações Internacionais, História, Economia, obras de temas como Gestão empresarial, autoajuda corporativa, investimentos financeiros, de marketing, merchandising e por aí afora. Desapareciam as bibliografias fundantes do pensamento social e político, para dar lugar a trabalhos insossos e com prazo de vencimento.

Só a expectativa do fim da pandemia e o processo eleitoral do próximo ano podem colocar de pé alguma esperança para o restabelecimento a energia da sociedade a mobilizar-se com dignidade e respeito a si mesma. Será uma luta insana. 

...

Em tempo: o título desta postagem é uma triste referência ao belíssimo conto de Julio Cortázar, Continuidade dos parques. A relação para por aí. No caso presente, lamentavelmente, não foi possível retomar o sabor da literatura, não há parque algum, não há desfrute que possa nos redimir.   


(atualizado em 18.02.2021)



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