13 fevereiro 2021

A hora e a vez da burrice

Buenos Aires, 1989

(...) Essas cicatrizes constituem deformações. Elas podem criar caracteres, duros e capazes, podem tornar as pessoas burras – no sentido de uma manifestação de deficiência, da cegueira e da impotência, quando ficam apenas estagnadas, no sentido da maldade, da teimosia e do fanatismo, quando desenvolvem um câncer em seu interior. (...) 

Adorno e Horkheimer, Sob a gênese da burrice, in: Dialética do Esclarecimento, 1947.


Há um cansaço que se espraia pelas mentes, um desgaste que alcança nossa forma de refletir. Digo nossa porque considero as pessoas de minha geração e mesmo os jovens que aprenderam e apreenderam o mundo com base em modelos de análise civilizatórios. A desventura Trump foi um episódio político nefasto, do qual o mundo levará muitos anos para se recuperar, se isso for possível. Com ele remontaram de maneira distinta, porém igualmente vigorosa, o desprezo consubstanciado em ódio racial, o individualismo que formatou a indiferença social, a arrogância formulada em inúmeros matizes, dentre eles, em presunção anticientífica. 

Na esteira sobrevieram pequenos seguidores, sem o mesmo poder econômico e sem a mesma aura imperial, para expandir formas de hipocrisia política de decisões e atitudes inconsequentes. Responsáveis pela reprodução de hordas fanatizadas, que finalmente encontravam maneiras de sair de seus casulos para provocar, sem o menor senso. Há uma série de figuras tidas como ultradireitistas espalhadas pelo mundo, Orbán, Salvini, Duterte, e por aqui, o capitão que desgoverna o país. A impressão é que todo o esforço para compreender os limites da desventura política, tal como ocorreu no mundo nos anos 1930, com suas trágicas consequências, desaparece e dá lugar às vagas sem controle de delinquência, que num passe de mágica liberta recalcados e sociopatas para agir, tomar o proscênio do processo histórico.

Nada parece ser mais difícil do que encontrar estratégias que interrompa a destruição desse populismo caricato cujas lideranças, com suas bazófias grotescas, engendram movimentos espectrais que multiplicam alucinações. Triste ver um tipo de comando político robustecendo espectros que, sem um projeto comum, alimentam-se das mais extremadas fantasias. O recente ataque ao Capitólio estadunidense é a forma mais acabada dessa realidade. Ao mesmo tempo, tornou-se perigosa utopia se pensar em restabelecer o Estado com suas funções plenas de ator para promover investimentos, em nome de políticas públicas que consolidem o desenvolvimento social.

De modo mais objetivo, um Estado que tenha competência e protagonismo para delinear um plano de saúde pública que combata de modo eficaz a atual pandemia. Ou de elaborar um programa de renda mínima, que impeça a necropolítica e consequentemente, a demonização do pobre. Ou que estabeleça leis que criminalizem de vez a manifestação do preconceito, seja ela o matiz que for. Isso não é pedir demais. Ao contrário, me parecem bases razoáveis para um convívio social minimamente amparado na tolerância ao outro, no respeito às diferenças culturais, religiosas, raciais, de gênero.

Chegamos ao ponto em que o simples fato de se exprimir o conhecimento científico virou chacota, algo definitivamente dispensável em um mundo regido pela alucinação, para que a burrice como método - e como mérito - possa de maneira resignada expandir os sistemas produtivos ao ponto de motivarem o indivíduo a um mísero ganho monetário, como forma de um empreendedorismo cínico, de parcas proporções.



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